Mistérios no mundo | Entrevista – O Bando Coletivo de Teatro
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Imagem – Morgana Narjara
Nos debates que integram a programação da edição 2024 do Palco Giratório, as obras voltadas para a infância e juventude conquistaram uma forte presença nos palcos e o Seminário Nacional de Teatro para as Infâncias no Recife possibilitou refletir sobre as temáticas e as dramaturgias voltadas para esse público.
Dentre os espetáculos pernambucanos, Quatro Luas, do Bando Coletivo de Teatro, cumpriu essa presença a partir da combinação entre formas animadas, música ao vivo e o universo do escritor espanhol Federico Garcia Lorca. O espetáculo é contado e interpretado por um grupo de ciganos reunidos sob a sombra de uma velha árvore e a narrativa é baseada na história de Federico, um jovem ciganinho órfão que era fascinado pela Lua Cheia e tinha o sonho de subir em um cometa e voar bem alto em direção às estrelas, até conseguir alcançá-las.
Para saber um pouco mais sobre o processo de criação deste espetáculo, o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com o diretor e dramaturgo Cláudio Lira sobre as influências de Lorca e a abordagem de temas sensíveis na infância.
O que te inspirou a criar “Quatro Luas” e como surgiu a ideia de conectar o universo de Federico Garcia Lorca com um espetáculo de teatro para a infância?
Venho pesquisando a obra de Federico Garcia Lorca há bastante tempo, em 2012, dirigi o espetáculo inspirado na trilogia Rural de Lorca (Bodas de Sangue, A Casa de Bernarda Alba e Yerma) que era Um rito de mães, rosas e sangue, onde eu dava o enfoque no feminino na obra de Lorca. Na dramaturgia Lorquiana, existem algumas peças para crianças, como Os títere de Porrete e o Malefício da Mariposa, mas seus texto mais conhecidos e montados são os dramas rurais com temas adultos. Lendo a biografia de Lorca, vi a influência na sua infância das brincadeiras de bonecos (coisa que ele gostava muito de fazer), reunindo seus familiares e fazendo pequenas peças como uma brincadeira descompromissada de criança, onde misturava elemento do seu cotidiano, animais falantes e seres imaginários.
Então, eu pensei: ‘Por que não levar esse universo tão rico e poético de Lorca para as crianças, resgatando essa criança de Lorca e levando a cena, como se fosse uma brincadeira de faz de contas?’. Sei que existem autores consagrados na história da literatura que, usualmente, não são relacionados ao universo da criança – e Lorca é um deles. Entretanto, acredito que faz parte da função do artista transpor essas barreiras. Apesar de frequentemente densa, as temáticas contidas nas obras de Lorca são reais, são sempre dilemas humanos que estão presentes. A criança também tem o direito de se conscientizar a respeito da condição humana e seus dilemas. Esse foi um primeiro pensamento meu e, observando tanto as suas poesias, num primeiro momento, quanto as suas peças, observei que havia elementos suficientes para construir algo poético e potente que atingisse todas as infâncias.
Por que você escolheu um jovem ciganinho órfão como protagonista e de que maneira esse personagem ressoa com a obra de Lorca?
O primeiro poema de Lorca que me inspirou a criar Quatro Luas é um poema do Romanceiro Gitano chamado Romance de Lua, Lua, que conta exatamente a história de um ciganinho órfã que encantado pelo reflexo da Lua cheia em um poço, tenta alcançá-la e acaba caindo dentro desse poço. Na encenação, a gente reproduz esse acontecimento, que como Alice nos Países das Maravilhas, leva o menino, no caso do espetáculo, para outra dimensão cheio de mistério e encantamento, inclusive a palavra “Mistério” se repete várias vezes no espetáculo, é a nossa forma de levar a criança para esse universo onírico e fantasioso da poética Lorquiana, e a fazê-la se perguntar: ‘O que há por trás dos mistérios no mundo?’. Há, em alguns poemas de Lorca, a citação de um fato que aconteceu na sua infância e que o marcou profundamente, que é a história de um menino afogado, aí vem a relação de Lorca, desde o início da sua obra, com a morte e ele repete esse fato em alguns de seus poemas.
Como o uso de formas animadas e música ao vivo contribui para a narrativa e a atmosfera do espetáculo? Pode compartilhar alguns detalhes sobre a criação desses elementos?
Como todo esse texto traz animais fantásticos e luas que falam, para mim é quase inevitável que esses elementos me remetessem de cara às formas animadas. E esse tipo de recurso, além de ser presente na minha infância, menino do interior do sertão do Pajeú – onde havia os mamulengueiros que encantavam as festas populares – na infância de Lorca, a presença dos Títeres também era muito forte. Nada mais justo, então, que esses elementos das formas animadas estarem presentes nessa encenação.
É uma forma de potencializar todo esse arsenal de elementos fantásticos e fictícios contido na obra, transpondo para um universo mais lúdico possível, em que posso brincar entre esse o real – por muitas vezes duro e cruel – de uma forma suave e poética. É a leveza e a beleza do boneco diante das dificuldades da vida. Aqui nesse espetáculo, a música tem grande importância, pois faz parte da dramaturgia da cena, do pulsar da cena. Aqui, a música entra como dramaturgia, também contando uma história, dando os climas e os contornos e acrescentando camadas de entendimento diante desse universo tão rico e particular que a encenação impõe.
O espetáculo mistura tradições mouras, ciganas e nordestinas. Quais convergências vocês percebiam nessas tradições que trouxe o interesse em integrá-las ao espetáculo e como se incorporaram na sua dramaturgia?
Há uma pesquisa na encenação entre as relações de elementos culturais presentes na Espanha e no Brasil, sobretudo em Pernambuco. Sabe-se que, tendo os Mouros dominado toda a Península Ibérica na Idade Média, Portugal e Espanha se hibridizam antropologicamente com costumes oriundos do norte da África. Esses costumes criaram raízes no Brasil, sobretudo no Nordeste e elementos da culinária, música, arquitetura nos aproximam do universo ibérico, por vezes, mais do que imaginamos.
Além disso, essas tradições mouras e ciganas estão presentes diretamente em toda a poesia Lorquiana e a inspiração inicial para criação do texto está diretamente ligada aos poemas Gitanos em Lorca e na região onde nasceu Lorca. Na minha infância, lembro que havia muitos ciganos andarilhos que passavam pelas cidades do interior e, hoje, esses ciganos já não são vistos com tanta frequência como antigamente. Essa relação das memórias da minha infância com o que estudei sobre a infância de Lorca e da região que ele nasceu, o sul da Espanha e o sertão nordestino, essa região quente e árida de texturas gris, de certa forma nos aproxima e me serve de inspiração sempre.
Questões como morte, velhice e solidão são abordadas no espetáculo. Quais foram os principais desafios para tratar esses temas de maneira adequada para o público infantil?
Este espetáculo investe na quebra de um paradigma de educação que delega à criança um local superprotegido, exclusivamente de fantasia, distante da realidade. No meu ver, não devemos menosprezar o potencial cognitivo da criança: uma das consequências de se compreender a criança como ignorante é incorrer no erro de acreditar que ela não é suficientemente inteligente ou sensível para fruir de um espetáculo por vias menos explicativas ou facilitadas. Para garantir um entendimento por parte das crianças, abre-se mão da poesia, da metáfora, das complexidades postas pelo mundo, e de suas contradições. Só que nesta encenação não abrimos mão disso, ao contrário, potencializamos isso, para podermos falar das coisas duras da vida, como por exemplo da morte.
Para mim, cabe ao artista e a obra artística, oferecer aquilo que ele tem de mais valioso a acrescentar: o seu trabalho artístico. E cabe à criança o processamento dessa experiência, e aos pais e educadores, a mediação, quando possível ou necessária. Nessa encenação, esses temas tidos como ‘polêmicos’, são falados através dos “mistérios” da vida, onde vemos o envelhecer, por exemplo, como um processo da vida que pode ser divertido, não há tristeza no envelhecer, assim dizem as personagens de uma rã quase cega e uma rã quase que quase não escuta, e assim é o destino, quem nasce também morre, é um processo natural do existir.
Em Quatro Luas, quem morre alcança as estrelas e encontra quem mais se ama, é uma forma poética de reencontro com os seus afetos que partiram e com você mesmo. Assim sendo, esse que poderia ser um desafio, tratar de temas não comuns no universo da infância, torna-se mais fácil, mais natural e mais palatável em se falar, pois estão na boca de seres, lúdicos, poéticos, por vezes engraçados, misteriosos e fantásticos.
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O Bando Coletivo de Teatro é formado por um grupo de artistas com experiências de vida diferentes, mas com o um desejo em comum de estabelecer uma discussão viva e criativa sobre o fazer teatral, e suas múltiplas formas e práticas. Alguns dos componentes desta equipe já vêm desenvolvendo um trabalhando juntamente com o diretor Claudio Lira desde 2015, e de lá pra cá realizaram alguns trabalhos de relevância, como a montagem do espetáculo destinado ao teatro para infância e juventude “Sebastiana e Severina”, que conquistou nove prêmios no 22 Janeiro de Grandes Espetáculos de 2016, entre eles o de melhor direção e espetáculo. Este trabalho já circulou pela Paraíba, participou do Aldeia do Velho Chico 2016 promovido pelo SESC/PE, do XIX MIT Valongo em Portugal e do 18 Festival Recife do Teatro Nacional, entre outros festivais.