“Não sei se chego. Mas vale a pena tentar…” – Entrevista – Grupo Magiluth
Imagens – Bob Sousa (centro) | Renata Pires
O Ano em que Sonhamos Perigosamente (leia mais sobre o espetáculo AQUI e veja o videocast AQUI), espetáculo mais recente do Grupo Magiluth vem gerando um burburinho grande na cena pernambucana por tratar de temáticas não somente com forte teor político, mas extremamente próximos e quase imediatos. Nosso editor-chefe, Márcio Andrade, bateu um papo com o queridíssimo Pedro Wagner, diretor do espetáculo, revelando como funcionou o processo criativo.
Confira logo abaixo os comentários pertinentes e sagazes do diretor.
De onde emergiu a demanda por construir um espetáculo que possuísse uma veia política mais forte e evidente do que os trabalhos anteriores de vocês?
Falar sobre o trabalho tem sido algo, ao mesmo tempo, prazeroso, pois é algo que nos tomou e nos toma por muito tempo, e uma coisa louca também, porque a gente não pensa estrategicamente nesse sentido do que iremos fazer… Se vai ser mais político ou não. Essas são mais coisas de quem vê a obra e a fruição artística mesmo, das sensações que se tira.
Mas eu acho que tudo isso aconteceu por um movimento inevitável. Foi inevitável que chegássemos no lugar em que estamos, que tocássemos nessa questão dessa maneira. É difícil falar, mas acho que seja isso mesmo: um movimento natural das coisas – da relação com o tempo, da percepções destas contradições todas que existem em nós mesmos, nos nossos quereres, na vontade de transformar, dos canais que utilizamos para isso e de como fazemos isso… Da própria visão crítica do que é estar em grupo.
Se estar em grupo é estar em sociedade, do que é essa relação do teatro com a relevância. Do tão judiado teatro e que ainda tem tanta gente fazendo. Deve ter um monte de gente que pensa “a única coisa que sabemos fazer é isso”. Mesmo em uma crise de existir, de estar, de permanecer, de relevância que é tirada, de permanência que é tirada, numa relação com a memória que não existe… De como reproduzo coisas danosas porque esqueço. Eu acho que é nessa pegada de movimento…
As montagens do Magiluth, mesmo que as que vieram como fruto de edital – como Viúva ou Luiz Lua… -, a gente sempre procurou fazer a curva e fazer diante da perspectiva que nos interessava e nos era possível. Porque só era possível estar com honestidade e, para estar com honestidade, precisava nos afetar. E a gente afeta o outro a partir do momento que estamos afetados. E nós estamos extremamente afetados por tudo que tá acontecendo agora, por todos os movimentos que estão acontecendo, de opressão, de esfacelamento da liberdade e dos direitos de todos. Sabemos de tudo isso e as nossas reações são sempre muito contraditórias. Revelamos os dois lados na gente. Há uma inércia…
Como vocês percebem a aparente dureza deste novo trabalho dialogar com as questões do Magiluth? Sentem que isso pode se tratar de um processo de amadurecimento?
Márcio, eu não faço ideia se isso faz parte de um processo de amadurecimento. É um olhar de fora muito grande… e quase pretensioso até, de pensar “estamos mais maduros” ou algo do gênero. Eu acho que cada coisa é o que é, cada coisa tá no lugar do possível naquele momento.
Eu acho que, independente do trabalho que estamos fazendo, a gente sempre sai do coração. É sempre do lugar da necessidade de afetar, de provocar e de interagir com e para nessa relação com o público. Então, essa coisa de perceber porque a gente saiu mais desse lugar do afeto, não sei… A gente muda junto com o mundo. Acho que ainda vem desse mesmo lugar, dessa mesma força motriz, do coração, sem ser piegas, mas no sentido de afetação e de algo que vem de um lugar genuíno.
E essa coisa de ser duro é porque os tempos são duros. Trata-se de olhar o mundo e perceber as coisas. O trabalho é violento, é seco, é duro, mas ainda tem momentos de delicadeza, porque ela vem como respiro dessa violência. E ela quase como uma contradição: é possível, num ato violento, estar contida a delicadeza? Onde eu posso encontrar esse momento de fricção bizarro e extremamente humano. Somos seres fractais, rizomáticos, que vivemos em uma realidade que não nos é possível… Então, acharia equivocado da minha parte pensar se estamos mais maduros. Não estamos mais nada… Somente estamos.
Como foi o processo de conexão das referências que vocês propõem – como os teóricos Adorno, Deleuze e Zizek e filmes como Dogtooth e Miss Violence – com a realidade do grupo, da cidade e dos movimentos sociais?
Acredito que uma função muito forte do artista é perceber seu momento. Perceber para tentar chegar a algum entendimento (que, provavelmente, não chegue nunca). Eu faço as coisas para tentar entender. Mas isso não significa que eu entenda. Quanto mais o tempo passa, menos eu entendo, mais eu vejo que eu tenho de buscar, de buscar… Então, nessa tentativa desesperada de fazer com que nosso pescoço vire em 180º como o da Regan, de O Exorcista (risos), tentando ver e entender tudo, a gente vai fazendo as conexões. Por isso que a peça é desse jeito: ela precisa que quem assista faça conexões. É necessário que você esteja ali e estabeleça fruição e sentido.
Ela não estabelece por si só: ela propõe muitas coisas. Quando a gente fala das referências, sempre sobra o triplo de fora. Por isso que, no nosso cartaz, aparecem boa parte delas… Porque são referências de movimento de vida. O livro do Zizek deu uma liga de perceber que era um fenômeno global. Todos os movimentos libertários e de ocupação, assim como o retorno de movimentos fascistas que botam para fuder em tantas “minorias”… Será mesmo possível falar em mulheres, negros, gays como minorias hoje? A gente sabe a quantidade de viado que existe em uma empresa como a TV Record, por exemplo. Então, a gente sabe de todas estas contradições de uma sociedade hipócrita e, ao mesmo tempo, não aguenta mais essa hipocrisia… Ela explodiu nas nossas relações, dentro da gente… e reverbera no trabalho. O cinema é uma coisa que, como tu me conhece, tu sabe, eu vejo pra caralho.
Durante o Palco Giratório, a gente viajou junto e a gente via muita coisa junto. E eu levava pros meninos muita coisa desse cinema grego contemporâneo junto com cinema austríaco. Haneke, Ulrich Seidl… Geralmente, filmes sobre temas desagradáveis, coisas que a sociedade finge que não tá lá, mas que existe o tempo inteiro… E muito dessa coisa de usar o micro pra falar do macro, de usar algo que é pequeno, mas que determina tanto poder. Dente Canino e Miss Violence são filmes que tem como núcleo principal a família e ela é, muitas vezes, esse lugar do intocável e onde situações absurdas acontecem. ATTENBERG!, filme de Athina Tsangari, que é um filme a descoberta das coisas e o fim das coisas. Acho isso muito importante: tentar descobrir e perceber o fim. O próprio Nelson Rodrigues já fez isso, de entender a família como gênese do mundo, a família original.. E, nessas relações, temos o Haneke e A Fita Branca, com as crianças e a criação de um pensamento nazista… Das nossas relações no grupo e das configurações que tínhamos até então.
Eu sou uma pessoa que lida muito com referência. Eu acho que muita coisa já foi dita, mas que é interessante se dizer de novo… Eu, por exemplo, tenho um fascínio por abraços. Não sei se as pessoas acham que a gente esteja se repetindo por conta disso, mas eu não acho que um abraço seja uma coisa inesgotável (senão, a gente não daria tanto na vida). Eu sou limitado também. Chego até a me comparar com Woody Allen (para além da magreza) (risos). Woody Allen faz sempre o mesmo filme, eu lido com as mesmas questões. Mesmo quando dirigi Um Torto, apareceram coisas muito determinantes para a criação do Aquilo….
E, agora, eu volto à direção. Então, são temas que voltam. Até outros projetos em que trabalhei fora do Magiluth no ano passado. Ser limitado também não é uma questão pra mim. Eu gosto de trabalhar com signos, desse auto-citar-se, desse fazer de novo, fazer num outro tom, de explorar o possível… O teatro tem tempo pra isso. Teatro é presença. A peça é sobre seres que estão criando a revolução, mas é uma peça de teatro. E a gente está criando, de fato, em cena. A peça é aberta pra caramba. E as referências estão todas lá, porque estão no corpo. Estão em mim, em todos… Ta poluído.
Quanto mais a gente tem, mais a gente dialoga. Se não dialogamos pelas referências, dialogamos por estas peças que se dispersam, se juntam e vão para outro lugar. Um lugar que eu não controlo. E isso que me encanta… As interpretações, fruições, reverberações, eu não controlo. E isso é um ato de construção livre, distante de autoritarismos e de tentar buscar no teatro uma relação fora dessa relação do poder, dessa hierarquia. De tentar estabelecer mais esse lugar da natureza das coisas, como fala Deleuze, estar mais no lugar da tentativa… Não sei se chego na intenção. Provavelmente, não. Mas vale a pena tentar.
Você fala sobre a criação artística como um “tentar entender”… Com a direção de Um Torto (junto com a dramaturgia de Giordano Castro) e deste novo espetáculo, o que você tentava entender na época e agora?
(Risos) Quer pergunta incrível. Márcio, tem uma instância em que a gente está tentando entender a mesma coisa: o que é essa vontade atroz de estar. Por que é tão importante estar? Isso está para além… Claro que certas coisas mudaram. A gente percebe como lida melhor com certas coisas, como certas questões não incomodam tanto, como a gente naturaliza… Mas e esse monte de outras coisas que permanecem na mesma bosta? Eu ainda sou aquele mesmo pivete que tem as mesmas confusões, eu repito os mesmos padrões. Eu acho incrível esse movimento confuso que a vida dá, mas tem também um lugar do seu olhar. Um Torto tinha muito um movimento do eu, de entender esse material que eu sou e como eu posso estar no mundo.
Eu acho que esse trabalho novo tem muito dessa coisa do “eu estou no mundo com essas pessoas e como é que a gente não se vê?” Como a gente pode se ligar, estabelecer contato? O que nos desprende e nos dispersa? Está mais nesse lugar da massa… Sair um pouco desse lugar do eu individualizado e ir para o lugar do rizomático, de se entender como partícula de um grande todo que não tem fim… De entender a sua insignificância, sua significância. E trabalhar com Giordano é uma coisa natural: ele já se coloca nesse lugar de dramaturgo e, nesse trabalho, eu me exercitei mais nesse papel. Tinha exercitado n’Um Torto, mas de maneira mais tímida e que, n’O Ano…, chegou ao ponto de a gente entender como uma dramaturgia compartilhada.
Foram vários recortes e pequenas cenas até a gente chegar no que temos hoje, quando Giordano disse que aqueles fragmentos eram uma peça só… Eu entrei em crise. Daí, eu percebi que não era uma peça só, mas um autor só, e entra Tchekov, o grande amor da minha vida (risos). A gente resolveu fazer um trecho de A Gaivota, um trecho de O Jardim das Cerejeiras e um de As Três Irmãs. Por que Tchekov é grande.
E o que vocês esperam dessa intervenção destes “eus” no mundo – dentro e fora do espetáculo? Isso se vocês esperam alguma coisa…
Que difícil, Márcio (risos)… Sim, eu acredito, porque a gente produz muita beleza no mundo. Deleuze fala nisso: a arte tira esse lugar do privilégio do homem enquanto produtor de arte. O grande início de uma obra de arte é a delimitação de um espaço. Quando um pássaro faz sua casa, ele faz uma arte, porque ele está delimitando um espaço social… na relação com a planta, com os elementos naturais e com a necessidade de estar.
Isso me faz pensar que passado e futuro é história. O presente, o “estar”, é relativo à presença. Então, mesmo o porvir é história. São possibilidades e eu acredito nelas, acredito no homem. A gente precisa perceber a nossa sombra cada vez mais, porque negligenciar a sombra é um grande problema. É o que gera toda esquizofrenia, eu acho. E a gente precisa entender o que é sombra e não ter medo das coisas, não prender os desejos… Mas, quanto às expectativas e do “esperar”, a gente espera…
A peça termina nitidamente com um “apesar de tudo, estamos aqui”. O mundo parece que está acabando, mas aquelas pessoas permanecem ali, porque existe um sentido e elas acreditam que existe um porvir. É um senso de responsabilidade, mas também muito ligado a como estamos agora, a uma relação de melhoria de convívio, de estar no mundo do agora. Não dá para se pensar no futuro se não se pensa no agora. Não dá para se projetar, nem para viver só de referência. A gente não pode esquecer, mas também não se pode só pensar no passado e só projetar o futuro. Tudo é construção do presente. E o estar em grupo (no nosso caso, estar no décimo primeiro ano) cada vez mais fortes, com projetos para dar conta, com gana de perceber e estar no mundo…
Então, é claro que temos esperança num porvir que seja melhor do que estamos, que seja mais consciente do que estamos, com mais consciência das nossas sombras… É isso.