O Desenho de Moda como Garantia (Performativa) da Identidade | Entrevista – Billi Costura (RJ)
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Imagem – Perfil @rosanopreto.co
Por Lucas Bebiano
Estudante de Teatro (UFPE) e Artes Visuais (IFPE)
‘Por vezes, quando o encontrei na companhia de seus amigos, os próprios afirmavam: “nunca saberemos como ele virá, se vem de boy ou montada’
(Rodolfo Viana, 2018)
“@Billid0g, o famoso Billi” tem 23 anos, é costureiro e mora na cidade do Rio de Janeiro. Fundador da marca de roupas Rosano Preto, que começou sendo, para ele, um lugar de experimentação no desenho de moda. Atualmente, para além de um espaço criativo e sensível de onde ele projeta sua visão de mundo, sua marca e a moda são sobretudo seu ganha pão, sua fonte de renda. Recentemente, o trabalho de Billi ganhou projeção nacional, quando a Rosano Preto foi escolhida como uma das marcas a comporem o figurino da multiartista e intelectual dos estudos de gênero Linn da Quebrada, em sua participação no reality show Big Brother Brasil 22 (Rede Globo).
Nesta entrevista, Billi compartilha um pouco de sua experiência de trabalho no desenho de moda e na técnica da costura. Na epígrafe do texto, trago os trabalhos dos artistas visuais Rodolfo Viana e Agrade Camíz, ambos também da cidade do Rio de Janeiro. Acredito na potência de relacionar trabalhos de artistas, sobretudo em uma pesquisa qualitativa como esta, onde não se analisa dados, probabilidades e quantidades, mas sim, se utiliza de conceitos, fundamentos e analogias para a construção do raciocínio lógico. Assim, encontrei na dissertação de mestrado de Viana alguns atravessamentos que dialogam com o trabalho de Billi, sobretudo, a relação feita entre fotografia e um grupo de bichas pretas da cidade do Rio de Janeiro. Viana trabalha as visualidades desse grupo que é atravessado por marcadores identitários de raça, com ênfase na fluidez das expressões de gênero e sexualidade.
Já no mural de Camíz, provoco um diálogo com as peças de Billi, por identificar que, em ambos os trabalhos, é possível fazer debates sobre conforto, bem-estar, conexão com o próprio desejo e autoestima. Camìz, que tem uma pesquisa em torno da estética da arquitetura popular carioca, dilata o debate de seus trabalhos para as moradas do corpo, chegando ao sonho do amor próprio, ao autoconhecimento. Me interessa pensar o trabalho dos três artistas juntos: o corpo pensado por Camíz enquanto a nossa primeira moradia; a roupa pensada por Billi enquanto a vestimenta expressiva desse corpo, conectados ainda àgarantia performativa dos nossos desejos, dos nossos marcadores identitários, bem como Viana destaca em sua pesquisa com as bichas pretas.
Dessa forma, a partir da influência do trabalho desses três jovens artistas da “cidade maravilhosa”, direcionei uma conversa com Billi Costura, a fim de escamar os fundamentos estéticos e performativos em seu processo de criação de roupas.
Billi, como você começou na costura e de onde veio a idealização da marca Rosano Preto?
Na verdade, eu comecei fazendo figurino para teatro. Sempre gostei das artes cênicas, pensei que seria legal começar a fazer teatro, achava que era isso. Entrei em um curso de figurino para teatro, onde aprendíamos a costurar e a dressar roupas. Ao longo do curso, fui percebendo que não era sobre teatro, era outra coisa. Então, o que comecei a fazer: como eu não tinha máquina de costura naquela época, eu levava qualquer pedaço de tecido que tinha em casa para as aulas, costurava, criava peças, tirava fotos e falava que eram da minha marca. Foi assim que a Rosano Preto nasceu. Eu falei “gente, eu tenho uma marca de roupas agora”. No começo era horrível… Era horrível (risos), mas foi ali que aconteceu.
Eu não imaginava que você tinha um pezinho no teatro.
Tinha, tenho sim. Amo, inclusive; mas acho que não no figurino. Hoje em dia eu amo mais da plateia.
Enquanto desenhista de moda, um diferencial perceptível em seu trabalho é o fato de você posar com as suas próprias peças. Gostaria que você falasse um pouco sobre essa relação entre o criador da roupa e o modelo. Como você é atravessado ocupando esses dois lugares?
Não foi uma coisa pautada, foi acontecendo. Eu ia criando e não tinha de imediato alguém para fotografar. Quando crio, sempre crio muito pensando em mim. Por exemplo, se eu for criar uma saia, eu penso “ah, eu vou fazer essa saia para eu usar”. Não que eu necessariamente use a saia depois, sabe, mas eu faço ela pensando em mim, pensando no feeling que eu estava no dia. Tenho muito isso, até hoje. Mesmo sabendo que vou ter um modelo para a peça, eu ainda costumo vestir a roupa, continuo experimentando as peças porque vai um pedaço de mim ali. Também acredito que entra nesse lugar de “eu vou botar essa roupa, e vou sentir o que a pessoa quando receber a peça em casa vai sentir”. Acho que todo mundo que trabalha com arte gosta de viver aquele momento um pouquinho antes de deixar ir, antes de deixar criar novas histórias.
Eu tenho um amigo que fala que todo artista só fala de si mesmo, seria o caso? (risos)
É, na verdade, é tudo sobre a gente, somos nossa principal referência (risos). Certamente, existem várias referências, pelo menos até a gente chegar nesse lugar de pensar e de criar com mais autonomia. Mas não é apenas sobre nós, é sobre tudo que a gente vive. Vamos vivendo e pegando as diferenças dessas vivências. No final, a gente é construído só disso, das nossas vivências.
Fala um pouco para gente sobre o patchwork, como essa técnica funciona? E como foi entender que ela poderia ser utilizada nas peças da Rosano Preto?
Bom, eu costumo dizer que patchwork vem da falta. Existem diversas formas de fazer, formas que eu ainda não conheço, porque é uma técnica muito extensa. É algo que vem de muito tempo, é algo inclusive nosso, é algo preto, mas que, como a gente sabe, é muito difícil de pesquisar o que a gente fez no passado, porque os materiais foram destruídos ou roubados. Então, também é difícil achar a origem exata do patchwork, que é uma origem preta. Então o patchwork nada mais é do que padronagens criadas a partir de fragmentos: você pode pegar um tecido e criar uma borboleta, um coração, uma flor etc. São retalhos que eu vou dando formas e montando figuras. É um trabalho muito artesanal.
Eu não lembro e não sei te dizer exatamente o momento que eu falei “não, Rosano Preto agora é patchwork”. Eu acho que eu fui fazendo, sabe? Quando tinha um tecido de dois metros, eu fazia uma calça. O que sobrava dessa calça eu fazia uma luva, por exemplo. E o que sobrava dessa luva eu fazia uma estrela e botava numa calça. Foi assim que a técnica do patchwork foi se inserindo no meu trabalho, nessa sequência de nunca desperdiçar, de nunca deixar algo ir embora. Eu tenho muito isso comigo, de reutilizar até onde der.
O que você foi descobrindo ao longo desses anos de produção de roupas sobre o seu corpo, seus desejos e os desejos de quem veste suas peças?
Eu acho que sempre usei muito meu corpo como ferramenta de fala para tudo. Eu fazia isso de forma inconsciente, seja no cabelo, seja numa saia que eu colocava aos 14 anos e minha mãe surtava. Sempre tive essa conexão com o corpo. A sexualidade veio vindo, se aflorando. Sempre me dei bem com ela, nunca tive vergonha. Acho que o teatro me tirou essa vergonha de me expor, tipo “se é para tirar a roupa vamos tirar a roupa, se é para colocar a roupa vamos colocar a roupa”. Acredito que isso vem muito do teatro, de ser desinibido, tipo “ah ok, temos órgão como qualquer outro, e ele está nesse momento aqui agora, e ele não está em um momento erótico”. Apesar de que eu também já circulei nesse mundo erótico, mas isso é outro assunto para outra entrevista (risos).
Aqui também dá para se assimilar o porquê de eu vestir a peça, sabe? Eu tenho reparado ultimamente, ficado bem fissurado de saber a reação das pessoas quando elas recebem a roupa. Então, quando a peça chega na casa de alguém, eu quero mandar mensagem, eu quero ouvir o áudio da pessoa, e isso me dá uma sensação muito boa. Pegando o gancho do patchwork, eu sou assim: quando me utilizo dessa técnica, vou fazendo e não vou gostando, e me pergunto “o que está acontecendo, o que é isso? Para onde que eu estou indo? ”. Aí, quando termina, eu me surpreendo, fico muito feliz. E quando a peça chega a alguém, eu vejo isso, essa felicidade se repetindo com a pessoa. Eu acho isso muito legal.
Como a gente pode olhar o catálogo da Rosano Preto e entender o que as suas roupas dizem sobre os marcadores identitários, principalmente para nós que transitamos entre os imaginários femininos e masculinos?
Desde o início, sempre fiz peças pensando nessas pluralidades que existem, então nunca fiz algo direcionado a um gênero ou a alguém de fato. Eu sempre penso que, se eu faço essa calça que eu estou usando hoje, ela também pode ser usada por você, ou pela minha tia. Sempre pensei nisso. Até hoje é meio difícil eu pautar as coisas a partir de uma lógica de gênero, isso me incentiva a também fazer peças que possam ser usadas por qualquer pessoa.
Deixa eu contar uma experiência: teve um cliente que comprou duas calças comigo, uma delas era de patchwork. Ele falou que, quando chegou em sua casa, a irmã dele pegou a calça e ele não conseguiu mais usar. Ele mandou foto da irmã com a calça, disse que não era mais dele e que ele ia ter que mandar fazer outra. Acredito que esse é o lugar das minhas peças: o cliente comprou para ele, e a calça virou dela.
E de onde partiu e partem suas vontades para atuar no desenho de moda até hoje?
Eu acho que foi aquela minha vontade aos dezesseis, dezessete anos de querer fazer as pessoas entenderem alguma coisa, de botar o dedo na cara da pessoa e dizer “olha só! Esse sou eu, e esse sou eu”. Comecei fazendo isso dentro de casa, que é o pior lugar de se fazer isso. Não aconselho (risos). Mas eu acho que era essa vontade, ela era mais intensa. Hoje em dia ela se ressignificou, se podou, é mais calma, mais sábia, sabe o momento de entrar e de se colocar. Ela ainda existe, isso que importa. É minha vontade de mudar, de falar coisas, de falar sobre mim, e ao mesmo tempo não falar necessariamente, deixar nas entrelinhas, e quem catar catou. Falar sobre visualidades, contar histórias da minha vida, contar acontecimentos da minha vida a partir de visualidades, de criar um visual com sentimento, pegar um sentimento e falar “vou fazer uma calça”.
E o que o Billi Costura gostaria de deixar como mensagem final?
Eu gostaria de falar uma coisa muito importante. Eu sei que tem momentos que a gente duvida da nossa capacidade, que a gente duvida do que a gente quer fazer. Eu sei que não é fácil. Geralmente, nesses momentos eu escuto muito “supera” ou “você é maravilhosa”. Mas não! Eu acredito que devemos aceitar esses momentos difíceis, mas nunca desistir. Então, viva esses momentos de altos e baixos, porque em algum momento as coisas acontecem. Isso é um fato para todo mundo e não tem religião, não tem teoria que desminta. As coisas acontecem com o tempo, se a gente persistir. Então, quando estiver triste, aceite e persista. Só não desista, entendeu? Fique triste, mas não desista. É isso que eu deixo para todo mundo, e para mim também, para eu lembrar disso todos os dias.
REFERÊNCIAS
VIANA DE PAULO, Rodolfo Rodrigo. O imundo, o funk e as bixas pretas: imagens, performances e as poses no portrait fotográfico. 2018. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Curso da Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
https://www.premiopipa.com/agrade-camiz-2/. Acesso em: 16 nov. 2021