O sonho e a memória | Entrevista – Márcio Abreu
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Imagem – Nana Moraes
No dia 22 de agosto, a companhia brasileira de teatro estreia AO VIVO [dentro da cabeça de alguém] no Teatro do Sesi-SP. A peça, criada de forma coletiva, conta com Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo. O texto e a direção são de Marcio Abreu, que também assinou a pesquisa e criação com o núcleo criativo da companhia.
Inspirada na obra de Anton Tchekhov, especialmente em A Gaivota, a peça reflete os tempos atuais por meio de um diálogo inventivo com os clássicos. Temas como o valor da arte, o papel do artista e os espaços de criação são explorados. A narrativa é formada por memórias dos artistas e convida o público a entrar em uma lógica de sonho, onde o passado e o futuro se entrelaçam.
A cenografia é assinada pelo cineasta Batman Zavareze, com figurinos de Luís Cláudio Silva, música de Felipe Storino e direção de movimento de Cristina Moura. As apresentações, gratuitas, ocorrem de quinta a domingo até dezembro de 2024, com acessibilidade.
Em entrevista ao co-editor-chefe da revista Quarta Parede, Márcio Andrade, o diretor Marcio Abreu reflete sobre a multiplicidade de ser e a importância do diálogo entre o individual e o coletivo na arte contemporânea.
Como surgiu a ideia de criar “AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]” e quais foram as principais inspirações por trás da peça?
Geralmente, meu trabalho segue um fluxo contínuo, em que uma experiência leva diretamente à outra. De certa forma, minhas criações se comunicam entre si, pois as buscas são as mesmas, embora dinâmicas e em constante transformação. Portanto, não é fácil identificar onde e quando surge a ideia que resulta em uma nova montagem. No caso de AO VIVO, há minha relação artística e pessoal com Renata, construída em anos de parceria dentro e fora da companhia, e uma necessidade de reafirmar os espaços de criação como vitais para todos nós, especialmente após os últimos anos de desmonte e violências múltiplas. Essa peça é um gesto de afirmação da vida, voltado para as relações entre memória íntima e coletiva, algo que me parece urgente abordar. Foi a partir daí que escrevi o texto e montei a peça.
O espetáculo faz uma conexão direta com a obra de Anton Tchekhov, especialmente “A Gaivota”, buscando atualizar essa referência com questionamentos que refletem o presente. Como essas perguntas influenciaram o processo criativo?
Há, sim, um diálogo com Tchekhov. Esse autor sempre foi uma referência para mim, uma fonte de renovação e reaprendizado de valores essenciais, tanto em relação à vida quanto à linguagem. Nesse sentido, escrevi cenas em que personagens e questões de Tchekhov entram em fricção com o nosso tempo. Relações de amor, entre mãe e filho, conflitos geracionais, visões de mundo e movimentos em direção a certas noções de futuro, temas recorrentes em sua obra, aparecem em AO VIVO de maneira singular, articulados com outros elementos numa ficção que ocorre dentro da cabeça de uma atriz. Esse é o argumento da peça.
O espetáculo explora a memória como um campo de produção de sentidos, a partir da ideia de se passar dentro da cabeça dos artistas que integram o elenco. Como isso se manifesta na encenação e na experiência do público?
Propomos uma linguagem que convida o público a experimentar os saltos entre memória, sonho e imaginário, dentro da cabeça de uma personagem ficcional que tem uma epifania a caminho do teatro. Essa epifania foi inspirada em um fato real que aconteceu com Renata e me levou a escrever a peça. No espetáculo, há um campo rico de interações entre memórias individuais e coletivas. A dramaturgia não segue uma cronologia linear ou um encadeamento realista de fatos. Há simultaneidades e múltiplos tempos distintos que se atravessam diante do público, sugerindo uma atmosfera com lógica própria, criando possibilidades sensíveis de percepção.
Dentre os outros colaboradores do espetáculo, a instalação cenográfica e os vídeos foram criados pelo artista visual Batman Zavareze. Como foi o processo de integrar essas linguagens com os outros elementos da peça?
A criação dos elementos do espetáculo é, para mim, um território essencial de articulação dramatúrgica. Tudo está interligado e pensado para gerar sentidos, mover percepções e sensibilidades. Sempre considero o espaço; por isso, criei junto com Batman, Nadja Naira e José Maria essa instalação, onde as telas não servem apenas de suporte para imagens, mas também como sólidos que redefinem o espaço e os corpos. Queríamos criar a sensação de um espaço vazio, onde cabe tudo: o sonho e a memória. As imagens, os sons e a luz foram pensados com função dramatúrgica. Trabalhar com Felipe Storino, Nadja Naira, Batman e outros artistas com quem já tenho uma troca constante nos permitiu alcançar a profundidade que o trabalho exige.