#01 Cena e Censura | Por uma descolonização dos modos de fazer e de receber arte
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Primeiramente, gostaria de começar este texto fazendo uma necessária distinção entre colonialismo e colonialidade. Como atestam os principais estudiosos sobre o assunto, colonialismo correspondeu a um projeto político-econômico de países europeus economicamente desenvolvidos, onde a classe burguesa emergente e próspera financiava a aventura rumo a descobertas e dominação de novos territórios globais. Esse projeto foi responsável por criar a ideia de modernidade, a qual está intimamente relacionada com o capitalismo e com o colonialismo. Mesmo com a independência política de muitas colônias no século XIX e de outras tantas no século vinte, a mentalidade e práticas coloniais continuaram a ser reproduzidas, tanto pelas metrópoles quanto pelos países periféricos. Assim sendo, se colonialismo deixou de existir na História enquanto projeto político-econômico, ficou a colonialidade como consequência daquele. Tudo isso para dizer o que pode parecer óbvio: os brasileiros são profundamente colonialistas – colonizados e, pior, colonizadores, sempre que lhes é concedida uma posição de prestígio.
O que me motivou a escrever essas linhas foram alguns casos noticiados na mídia, dos quais destaco três. O primeiro foi o espetáculo de dança, Zoe, da coreógrafa Francini Barros, que, em junho deste ano, foi advertida pela direção do Teatro Apolo – Recife/PE – a “vestir” o bailarino que começa a ação cênica fazendo uma releitura da performance “Puxador”, de Laura Lima. Seu corpo, puxado por fitas elásticas, extrapolava o hall do teatro e recebia o público na calçada do Apolo. Justificativa: “Alguns pedestres que passavam na frente do Apolo e não iam assistir o espetáculo chegaram até a se queixar para a guarda municipal. (…) A lei vigente diz que sair sem roupa em via pública configura atentado ao pudor e a secretaria de cultura, como poder público, tem que cumprir a lei. (…) Quando um ator sai do teatro entendemos que ele também já está saindo do âmbito da criação artística e indo para o campo público” (Leia a máteria completa AQUI).
O segundo caso ocorreu com o artista e performer paranaense Maikon Kempinski, conhecido como Maikon K., que foi preso pela Polícia Militar do Distrito Federal em junho deste ano, durante a apresentação da performance artística DNA de DAN. O trabalho, que fazia parte da programação do Palco Giratório, trazia ao ambiente público o performer nu, envolto numa bolha de plástico. “Ato obsceno” foi a razão que fez os policiais interromperem a performance e conduzirem o artista à delegacia. “Na versão da PM, eles foram avisados por transeuntes que haviam visto ‘um homem nu’ nas imediações do Museu da República. Os policiais foram informados de que K. realizava um trabalho artístico, mas já que ‘não foi apresentada nenhuma documentação/autorização do museu tampouco da administração de Brasília, foi determinada a paralisação da referida exposição e foi dada voz de prisão ao elemento nu’” (Leia a matéria completa AQUI).
O terceiro caso foi a detenção do ator Caio Martinez Pacheco, da Trupe Olho da Rua, que estava apresentando, numa praça de Santos/SP, o espetáculo Blitz – O Império que Nunca Dorme, o qual representava o poder do estado e da mídia nacionais. Justificativa da PM: “desrespeito ao símbolo nacional”, desacato e resistência. No momento da intervenção da PM, a bandeira brasileira estava hasteada de cabeça para baixo enquanto o hino do Brasil era cantado. Os atores estavam vestindo fardas e saias que remetiam às ruas da PM paulista (Leia a matéria completa AQUI).
Estado e Censura
Oficialmente, como Estado democrático, o Brasil não tem censura. A Constituição Federal de 1988 proíbe qualquer espécie de censura, seja de natureza política, ideológica ou artística (art. 220,§2°). De acordo com Edmilson Farias, “do ponto de vista do direito constitucional, censura significa todo procedimento do Poder Público visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias aos interesses dos detentores do Poder Político”. A condição fundamental para o exercício da democracia é a livre circulação de ideias e o pluralismo das concepções políticas, ideológicas e artísticas.
No entanto, no sistema constitucional, nenhum direito é absoluto: ou ele está limitado por outros direitos, ou por valores coletivos da sociedade, também eles, amparados pela Constituição. A liberdade de expressão e informação deve estar em consonância com os direitos fundamentais dos cidadãos afetados pelas opiniões e pelas informações, assim como com outros direitos constitucionalmente protegidos: moralidade pública, saúde pública, segurança pública, integridade territorial, por exemplo.
Essa contradição entre o Estado democrático que protege o direito à liberdade de informação e de expressão e o mesmo Estado que cerceia essa mesma liberdade por uma série de interdições amparadas no sistema constitucional vigente faz parte da concepção de democracia tal como ela é pensada e praticada pelas sociedades que exercem ou sofrem o impacto do neoliberalismo, sistema político e econômico hoje hegemônico. Trata-se de um sistema que se fundamenta nas suas contradições: faz a guerra para garantir a paz; assume atitudes antidemocráticas para garantir a democracia; cerceia a liberdade de informação e de expressão para proteger essa mesma liberdade.
Se a censura não existe hoje como dispositivo constitucional, ela se capilariza numa série de outros dispositivos legais, nas mais variadas esferas sociais; basta assistir à intervenção constante dos aparelhos repressivos e ideológicos do Estado na vida dos sujeitos, vigiando-os, controlando-os e punindo os que, em suas informações e expressões, extrapolam os limites políticos e epistêmicos impostos por esse mesmo Estado. Só para lembrar Louis Althusser[1], os aparelhos repressivos do estado correspondem ao governo, à administração, ao exército, à polícia, aos tribunais, aos sistemas carcerários; os aparelhos ideológicos, por sua vez, são os religiosos, os escolares, os jurídicos, os políticos (diferentes partidos), os sindicais, os culturais (letras, Belas Artes) e os de informação (imprensa, radio, TV).
É certo que o sistema constitucional brasileiro, bem como o das outras nações modernas, foi e continua sendo elaborado a partir do projeto da Modernidade, que pressupõe o respeito e proteção aos valores capitalistas, colonialistas e patriarcais, os quais formam uma superestrutura normativa para o funcionamento eficaz do Estado moderno. O que foge a isso está sujeito a sanções jurídicas, fato que se agrava pelo atual estado de judicialização da vida social em que nos encontramos.
Arte e Censura
Não tratarei aqui da arte frente aos órgãos oficiais de censura, porque, até o momento, não dispomos desse dispositivo na Constituição de 1988. Felizmente, pois sabemos o quão desastrosa foi a censura para as atividades artísticas, nos diversos momentos históricos em que ela se fez presente. Quero me ocupar da censura silenciosa que atua, sobretudo, nos aparatos oficiais de judicialização da vida social.
No caso das artes, como em outros, o direito à liberdade de expressão está sujeito a outros direitos, como vimos. Se tomarmos os três casos que serviram de ponto de partida para este artigo, veremos que, em dois deles, o argumento usado pelos órgãos interditores é de ordem moral (moralidade pública): transeuntes foram se queixar à guarda pela presença de um homem nu na rua. No segundo caso, a justificativa oficial foi também de moralidade pública, mas não de ordem sexual: ao pôr a bandeira do Brasil de cabeça para baixo, o grupo teatral mostrou “desrespeito ao símbolo social”. Como se vê, a liberdade de expressão existe, mas não é absoluta. Cerceia-se a liberdade para garantir a liberdade.
“Há metafísica bastante em não pensar em nada”, já dizia Pessoa, na voz de Alberto Caeiro. Todavia, quando certas categorias metafisicas são tomadas umas pelas outras e interferem na vida prática (política, econômica, cultural) dos sujeitos, vale a pena esclarecer seus valores semânticos, a fim de repensar nossas próprias condutas em sociedade. Por exemplo, ética e moral são duas categorias usadas muitas vezes como sinônimas. Mas não é isso o que revelam suas etimologias, respectivamente.
De acordo com Ana Paula Pedro, “o termo ética deriva do grego ethos, que pode apresentar duas grafias – êthos – evocando o lugar onde se guardavam os animais, tendo evoluído para ‘o lugar onde brotam os actos, isto é, a interioridade dos homens’ (Renaud, 1994, p. 10), tendo, mais tarde passado a significar, com Heidegger, a habitação do ser, e – éthos – que significa comportamento, costumes, hábito, caráter, modo de ser de uma pessoa, enquanto a palavra moral, que deriva do latim mos, (plural mores), se refere a costumes, normas e leis, tal como Weil (2012) e Tughendhat (1999) referem”.
Ou seja, enquanto a moral se refere a um conjunto de normas e princípios comportamentais de uma determinada sociedade ou cultura, a ética investiga os princípios e valores que subjazem a essas normas. A moral está na ordem dos juízos práticos: como devemos nos comportar e viver em sociedade? A ética encontra-se no nível especulativo: por que devemos nos comportar e viver de um determinado modo, e não de outro? Essa pergunta supõe outras três: quero? Devo? Posso?
A estética (incluindo a arte) e a ética foram tidas, ao longo da história, como categorias complementares. Coincidentemente, em português, a ética está contida na palavra estÉTICA. Não podemos deixar de considerar a dimensão ética no próprio fazer artístico. O fazer artístico, como fato social, é perpassado pelas três perguntinhas: eu quero? Eu devo? Eu posso? É aí que nos deparamos com os princípios morais de uma dada sociedade. Mas, convenhamos, a moral revela valores de alguns, não de todos. Numa sociedade complexa e multicultural como a nossa, cada cultura terá estabelecido seus princípios morais, ainda que os valores de algumas culturas se tornem hegemônicos e protegidos legalmente em detrimento de outros. Por exemplo, ficar nu em ambiente público é, em nosso código penal (art 233), um ato obsceno, mesmo que em muitas comunidades indígenas seus habitantes vivam nus. Caberia, aqui, uma pergunta de ordem ética: por que ficar nu em nossa sociedade é um ato obsceno e condenável? Atentemo-nos para as respostas e verificaremos nos argumentos que a moral sustentada pertence a determinados segmentos e instituições sociais, não a todos. Nossa moral é burguesa, colonial, cristã e patriarcal. E no Brasil, mais do que em outras sociedades, essa moral expressa uma grande hipocrisia, pois se exige esconder aquilo que obsessivamente se quer ver revelado.
Assim sendo, a performance artística deve ser orientada por princípios éticos, mas não deve nada à moral. Fazer uma performance atirando num transeunte qualquer desavisado fere um principio ético nosso, qual seja: não devo nem posso tirar a vida de outrem por um querer particular. Mas eu posso (e devo, caso queira) fazer uma performance artística me valendo da nudez, pois meu ato performativo suspende o cotidiano em que nos encontramos e constrói enquadramentos expressivos plenos de discurso. Ou seja, no terreno das artes, a expressão se reverte em discurso que pode questionar, inclusive, os valores morais cerceadores da expressão. Do ponto de vista ético, não há nesse caso problema algum, haja vista que, numa democracia, o principio de governabilidade deve se pautar no agenciamento de opiniões e pontos de vista os mais diversos. Um princípio moral não poderá jamais ser um impedimento para que eu possa (e deva) expressar um ponto de vista, inclusive sobre esse mesmo princípio. Se isso é válido para os mais variados tipos de interação social, por que não seria para as artes, também elas uma forma de interação social?
Descolonizando o olhar
O fazer artístico e sua apreciação constituem as mais variadas experiências estéticas. Ou os sujeitos envolvidos saem delas satisfeitos ou saem incomodados, jamais incólumes. Não faz sentido, dentro de uma sociedade democrática, que os incomodados abdiquem do dialogo intercultural e recorram a instrumentos legais para impedir a execução da obra de arte ou performática. Esses princípios legais, como dito, expressam, as mais das vezes, valores próprios de uma cultura burguesa, colonial, cristã e patriarcal. A arte pode ser uma expressão estética e ideológica desses valores, mas também tem o poder de enfrentá-los e de subvertê-los. A meu ver, no momento histórico em que estamos vivendo na política, de um ultraconservadorismo sem tamanho e de uma apologia desbragada aos valores coloniais (neoliberais e patriarcais), urge a cada dia defender a legitimidade de qualquer que seja a expressão artística ou performativa, como forma de desobediência civil e epistêmica, sob a bandeira de uma sociedade mais democrática que conviva com a diversidade e promova, não princípios morais relativos, mas uma ecologia dos saberes e dos viveres.
[1] Para quem quiser conferir, ler ALTHUSSER, L. P. Aparelhos ideológicos de Estado. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010.