#07 Cidades e Intercâmbios | Dos pastéis de Belém às tapiocas da Sé
Imagem – Sérgio Paciência | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Quanto mais bebo do mundo, maiores são as possibilidades de recriação estética do mundo, pois minha capacidade de exercitar a alteridade se expande. Estarei sempre em busca de gente: de diferenças, semelhanças, trocas, brigas e tudo que os encontros nos dão’. Como o ‘estar em outra cidade’ influencia em um processo de intercâmbio do mesmo jeito que as técnicas que são aprendidas? Nosso dossiê Cidades e Intercâmbios continua com um papo do nosso editor-chefe, Márcio Andrade, com Andrezza Alves (Cia. Circo Godot | Gambuzinos com 1 Pé de Fora), que comenta sobre os intercâmbios entre Brasil e Portugal que vêm realizando nos últimos anos.
Andrezza, primeiro queria que você começasse falando como surgiu a oportunidade de fazer o intercâmbio com a Comuna Teatro de Pesquisa (Lisboa/PT), em 2015.
Na Companhia Circo Godor, estávamos pensando sobre qual seria nossa próxima montagem, sobre o que gostaríamos de falar e chegamos a pensar sobre as intolerâncias que começavam a dar indícios lá nos idos de 2014. Então chegamos um livro, chamado A Nova Idade Média, de Alain Minc. Foi quando nos surgiu a idéia de montar um Auto Medieval, uma abordagem profana do nascimento de Cristo recontextualizado para esta nossa nova era de intolerâncias (seria uma rede de paralelos históricos e de metáforas para falar “daquele hoje” e do “nosso hoje de agora”, que, à época, parecia se anunciar).
Então, a residência surgiu de uma ideia que tive para submetermos nossa pesquisa ao programa de Intercâmbio e Difusão Cultural, do Ministério da Cultura. Iríamos a um país com expressiva paisagem medieval conservada e a primeira nação constituída nos moldes atuais. Levantaríamos material vivo, in loco, veríamos coisas antigas e compararíamos com as questões atuais que queríamos tratar. Em paralelo, faríamos um intercâmbio com a Comuna Teatro de Pesquisa (Quiercles e eu fomos alunos de João Mota em três de suas vindas a Recife e queríamos retomar este contato). Então, escrevemos o projeto de residência artística da Companhia Circo Godot de Teatro e inscrevemos no edital sob o título Projeto Godot in Comuna. Fomos aprovados.
Como foram os processos para conseguir financiamento para chegar e se manter em Portugal pelo período que vocês ficaram?
Nós ganhamos uma bolsa do MinC, que era pouco mais de 30 mil reais. Com o valor do câmbio à época que enviamos o projeto, este valor era suficiente para nos manter em Portugal por três meses. Contudo, o desembolso atrasou e a viagem prevista para ser iniciada em março de 2015 aconteceu somente em agosto. A essa altura, com início dos movimentos que culminariam no Golpe de 2016, o câmbio começou a enlouquecer e o Euro deu um salto atroz. Então, precisamos fazer uma “vaquinha virtual” pra angariar mais fundos. Os amigos e a família foram bem importantes neste movimento e, graças a eles, complementamos o que nos faltava para custear nossa temporada de investigação. Os valores do MinC e do crowdfunding custearam as passagens, dois meses de aluguel em Lisboa, os custos com alimentação, transporte e acesso aos monumentos e museus.
Depois do retorno, como vocês percebem as contribuições e desdobramentos desse período de residência? Como o ‘estar em outra cidade’ influenciou no processo de vocês e na volta a Recife?
A residência visava recolher material iconográfico e escrito sobre o período medieval e o desenvolvimento artístico de uma companhia que atua há mais de quatro décadas, a Comuna Teatro de Pesquisa, de Lisboa, Portugal. Além disso, objetivava o registro (em fotos, vídeo e textos) de todo o processo e a reciclagem prática dos integrantes da Companhia Circo Godot de Teatro ao acompanhar processos criativos e participar de oficinas. Este conjunto de experiências seria revertido em um espetáculo de teatro através do qual iria se tratar desta “nova idade média” que o mundo contemporâneo parece mergulhar e também investigar múltiplas possibilidades de escrita, linguagem e atuação ao tratar de tema urgente aos nossos dias.
No entanto, ao longo do percurso, novas cores e formas nos foram apresentadas, novas perspectivas conhecidas e um mundo de possibilidades se abriu. Diante dos inúmeros caminhos, o espetáculo não mais pareceu um “fim” urgente e a poesia nos levou para a necessidade de elaborar criticamente toda aquela vivência. Deste modo, a formação e a continuidade das pesquisas, postas no projeto inicial como contrapartida ao MinC, ganharam maior valor, gerando novos desdobramentos sequer imaginados no início da residência, tal como nossa participação no Janeiro de Grandes Espetáculos 2016 com a mesa redonda Godot in Comuna: A Poesia do Percurso, sobre a residência, bem como no V Congresso Internacional SESC de Arte/ Educação, minha candidatura ao Mestrado em Criação Artística Contemporânea, a montagem de Alguém pra fugir comigo (quando estivemos em Portugal em 2015 o drama com os refugiados estava no auge).
Neste fluxo, seguimos até o 23º JGE numa bela parceria através da qual conseguimos concretizar a vinda da Comuna ao Recife com três espetáculos e duas oficinas, num ano em que a companhia comemora 45 anos de atividades ininterruptas. Se ainda existirá o espetáculo que motivou nossa saída para Portugal, ainda não sabemos, mas temos a certeza de que os frutos nascidos e vindouros da residência plantada em 2015 são muito mais abundantes do que poderíamos supor no início desta história.
Se, quando, ou como haverá o espetáculo que nos motivou a saída ainda não sabemos. Não sabemos nem mesmo se, AINDA, temos um grupo ou como o colocaríamos pra caminhar mesmo que cambaleante, caso ainda exista… Mas, independente de qualquer coisa, temos a certeza de que os frutos nascidos e vindouros desta residência plantada em 2015 já são muito mais abundantes do que poderíamos supor no início desta história.
Agora, em 2017, você está com outro trabalho, desta vez, produzido em Portugal, com o espetáculo ‘(…) E a vida, afinal, é como as Orquídeas’, junto com os Gambuzinos com 1 Pé de Fora. Como foi o processo desse trabalho?
No rescaldo do período com Quiercles e Ana Paula em Portugal e da vivência com a Comuna, voltei sentindo que qualquer coisa me faltava: uma vontade de voltar a estudar mais formalmente. Então, me inscrevi para um Mestrado em Criação Artística Contemporânea, na Universidade de Aveiro. Um mês depois que estava lá, conheci José Saramago (o que ainda está vivo) (risos), Sofia e Catarina Serrazina, que integram a Associação Cultural Gambuzinos com 1 Pé de Fora. Isso aconteceu num jantar com amigos na casa do Alentejo em Lisboa, e a Sofia me intimou a conhecer Benedita (distrito de Alcobaça) para ver o trabalho deles. Na época, fui assistir a um dos espetáculos com que eles estavam em cartaz – O Torcicologologista, Excelência de Gonçalo M. Tavares.
Um tempo depois, comecei a fazer contatos com grupos e pessoas que conhecia por lá, pois estudar, somente, já parecia pouco. Queria trabalhos em teatro, queria dar aulas, sei lá… Então, eles me convidaram pra fazer um trabalho com eles. Estivemos juntos de março a novembro de 2016. No início, fizemos uma oficina que tinha por base um trabalho com Viewpoints e as técnicas de Michael Tchecov. Depois, seguimos para o processo de montagem propriamente dito, orientado pelos pontos e questões que norteiam a minha investigação no mestrado.
Mas, para além desses projetos pontuais, acredito mesmo que fui mordida por algum tipo de “bicho da troca”, porque, antes desses dois trabalhos dos quais falamos aqui, a Companhia Circo Godot realizou um intercâmbio com a Teatro C’Art (Italia) no período da montagem de Le Petit – Grandezas do Ser, em 2013, participei também de uma montagem chamada Histórias de Além Mar, em 2009, com o Teatro Munganga da Holanda. Por mais dores de cabeça que isso cause (e causam), eu sou mesmo incorrigível nessa seara: neste momento, já estou, juntamente com Enne Marx e Rafael Serrazina, conversando sobre a criação de uma Rede de Artistas em Cooperação Internacional, uma cooperativa de artista sediada em Portugal que tem como premissa o intercâmbio de saberes e a troca de conhecimentos adquiridos.
O objetivo em criar essa cooperativa é agregar realizadores das mais diversas linguagens e nacionalidades de modo a trabalhar coletivamente na produção de projetos em várias frentes artísticas, contando com os saberes individuais como agente aglutinador para a elaboração de propostas que tenham como meta arregimentar artistas de diversas áreas e nacionalidades. A questão é que eu não acredito em arte feita de outra maneira, não vejo como a arte pode ser dinâmica e transformadora se for apenas sustentada pela autofagia. Quanto mais eu bebo do mundo, mais eu sei de mim, quanto mais me encontro com esse não eu (independente de onde ele esteja, se em Cabrobó ou em Oslo), maiores são as minhas possibilidades de recriação estética do mundo, pois maior a minha percepção do outro e com isso a minha capacidade de exercitar a alteridade se expande.
O ato criativo é um ato de amor, de doação e a criação no âmbito das artes da cena implicam, ainda, companhia, não se faz teatro sozinho. Estas são artes para quem gosta de gente, de estar com gente (no que isso há de bom e de ruim). Eu estarei sempre em busca de gente e de trocas e de diferenças e de semelhanças e de brigas e de afagos e de tristezas e de alegrias e de tudo o mais que os encontros nos dão. Porque eu concordo com Guimarães Rosa (em seu imenso Grande Sertão, Veredas) “a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”
Além disso, em março, o pessoal do Resta 1 Coletivo de Teatro vai a Portugal para outro período de residência. O que vocês pretendem com esse outro processo de intercâmbio e como pretendem dialogar com os trabalhos desenvolvidos no grupo?
No meio desse trabalho com os Gambuzinos, comecei a intuir que eles poderiam dar um bom caldo com o pessoal do Resta 1: tinham uma energia muito semelhante, mas, especialmente, sentia que o “fogo no rabo” do Resta 1 já estava aceso e o dos Gambuzinos tinha medo de faiscar – além disso, os Gambuzinos tinham uma estrutura que o Resta 1 merecia ver funcionando. Então, numa conversa com Paulo de Castro, produtor do Janeiro, perguntei o que ele achava da ideia de mais um intercâmbio lusófono no festival. Ele gostou, mas já advertiu que, pela atual conjuntura, nesse ano seria difícil. Porém, mesmo reticentes, seguimos vendo o que poderia ser feito. Ao mesmo tempo, falei com Quiercles Santana que achou que poderia ser uma boa ideia e por fim, conversei com o Saramago, já com uma proposta.
Depois que todos concordaram começamos a trabalhar, pra fazer a ideia ganhar corpo. Batizei o projeto de Pulando a Cerca, cujo objetivo consiste em investigar esse lugar do ator/personagem no jogo teatral e o instrumento para esta investigação será a montagem de um espetáculo que funcione com os dois elencos juntos ou com cada elenco em separado. Pensamos nisso porque não tínhamos interesse em participar de um daqueles projetos onde o espetáculo até pode ser incrível, mas morre logo porque o elenco se separa. Com essa premissa (de que a vida do espetáculo era plural), comecei a pensar possibilidades e foi quando pensei que o melhor modo de fazer isso era construir o trabalho combinando o uso do Sistema Coringa de Boal com o jogo de cena dos espetáculos de tradição popular de Pernambuco.
Propus a Quiercles, que gostou da ideia e seguimos pensando o projeto. Além de montar um espetáculo, eu gostaria de contribuir para a construção de novos olhares sobre a obra hermiliana. Acho que conhecemos cada vez menos da literatura pernambucana e, dentro desse menos, é ínfimo o que se conhece da obra de Hermilo Borba Filho, Joaquim Cardoso e Osman Lins. Então, queria contribuir com isso, dar um grão de areia que fosse, para fazer chegar Hermilo a um conjunto jovem de público e de artistas que começam a se fazer presente na cena pernambucana e também apresentá-lo, bem como a sua obra, a artistas e público lusitano.
Deste modo, entendo o Pulando a Cerca como um projeto de compartilhamento de saberes, com previsão de desenvolvimento a médio prazo e três etapas: primeiro, apresentar os espetáculos (…) E a vida, afinal, é como as Orquídeas, mais recente criação dos Gambuzinos com 1 Pé de Fora (por mim dirigida) no 24º Janeiro de Grandes Espetáculos; segundo, realizar residência criativa de dez dias em Recife; por último, realizar intercâmbio entre os Gambuzinos com 1 Pé de Fora e o Resta 1 Coletivo de Teatro, tendo como eixo central Hermilo Borba Filho e mais especificamente do texto O Auto da Mula do Padre.
Além desses encontros, também convidei outros profissionais para realizar vivências com a equipe, pois acredito que, quanto mais propiciamos contatos com abordagens diversificadas de modos e meios de lidar com um mesmo objeto de conhecimento, mais amplificada é a nossa exegese daquele objeto e mais vertical a relação que se constrói. Como a nossa intenção era que aquela equipe de onze atores começasse a criar um vocabulário comum e uma vivência consistente do universo e das técnicas que trabalharemos no espetáculo, pensei que fazê-los entrar em contato com vários artistas, falando e experimentando um mesmo material. Ao mesmo tempo, eu queria que este processo de construção de conhecimento fosse prazeroso, que tivesse o mesmo espírito de festa, de brincadeira e de encantamento que o universo que vamos trabalhar tem. Não queria que eles se sentissem pressionados a “aprender tudo”, mas livres para vivenciar. Então, fui à caça de pessoas que eu acredito que têm esta relação com o conhecimento e as quais eu intuía: Andrea Veruska e Wagner Monteiro; Jorge de Paula; Marcondes Lima; Kleber Santana (musico do resta 1) e Daniel Machado (músico dos Gambuzinos).
Assim, ao longo dos dias, os grupos sentiram o cheiro das técnicas do Teatro do Oprimido, de Francois D, do Cavalo Marinho, do mamulengo e da música de tradição popular luso-brasileira. Além disso, beberam muita caipirinha, catuaba, axé e pau do índio, foram para a saída da Pitombeira em Olinda, para a Noite Cubana, para a Terça do Vinil, pro show Reverbo e para praia juntos. Em março 2018, estamos planejando as outras etapas desse intercâmbio: primeiro, apresentar Alguém para Fugir Comigo no AO Teatro! Festival 2018 (Alcobaça, Portugal); segundo, dar continuidade à residência criativa iniciada no Brasil; terceiro, apresentar o espetáculo O Auto da Mula do Padre, trabalho resultante do intercâmbio em Alcobaça e, depois, dar vida livre às duas montagens integrantes para temporadas, festivais e o que mais for. Depois disso, esperamos trazer o espetáculo O Auto da Mula do Padre no festival Janeiro de Grandes Espetáculos em 2019, realizando uma fala aberta ao público para apresentar o material documental fruto do desenvolvimento do projeto integrando as atividades pedagógicas do festival.