#09 Queer | Talk Shows e Artivismo para uma Ditadura Gay

Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Para transformar a sociedade, precisamos de liberdade para nos posicionarmos sem alianças nem jogos políticos. Ao extrapolar os anseios da esquerda e intensificar os medos da direita, expresso as incoerências e absurdos de ambos os lados a partir do riso e da performance.’ Com performances que ironizam a chamada ‘ditadura gay’ em manifestações de rua, o artivista multimídia Rafucko colabora no nosso dossiê Queer por meio de entrevista ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade, pensando as relações entre arte e política como modos de imaginar (e lutar por) outras realidades por meio de outras compreensões de cena.
Rafucko, queria que você se apresentasse ao nosso público, falando um pouco sobre a tua formação e como começou teu interesse em unir humor e política nas tuas produções.
Meu primeiro vídeo se chama Versões e é um documentário falso sobre preconceitos de gênero e sexualidade. Eu o fiz na época da universidade, na Escola de Comunicação da UFRJ. Eu acho que o tema discriminação sempre me interessou pessoalmente: venho de um meio onde a discriminação sempre ocorreu, seja contra a raça, contra a sexualidade ou o lugar de onde a pessoa nasceu. Eu queria tratar desse assunto porque, ao longo da minha vida, percebi que tinha alguma coisa errada nessas coisas ao meu redor.
Então, por uma questão pessoal, comecei a fazer vídeos sobre discriminação homossexual, mas também falava das favelas e da cor da pele. São questões que eu sei que não me afetam diretamente, mas, ao perceber como funciona o mecanismo da discriminação, comecei a fazer essas associações e falar de todos os tipos de discriminação.
Em relação à performance e a interpretar todos os gêneros e sexualidades, isso terminou acontecendo por um acaso: pelo conteúdo crítico dos meus vídeos, muitas pessoas recusaram convites para participar. Aqui no Rio, muita gente se recusa a criticar – ainda mais quando se critica a mídia – porque as pessoas precisam dela para fazer seus trabalhos. Então, tive que começar a fazer todos os personagens e, dessa forma, chegaram as diferentes sexualidades ou gêneros.
Você costuma ser definido como um ‘artivista’, alguém que dispõe dos meios artísticos para fazer suas provocações políticas. Como você percebe o seu trabalho dialogando com diversos segmentos políticos e artísticos?
Tem duas questões sobre o que você levantou: a primeira está nas relações entre arte e política. Acredito que o posicionamento político do artista, assim como o conteúdo da sua arte, quase sempre vai ser político, mesmo quando não fala diretamente sobre política. Afinal, ele pode ser usado de uma maneira política para alienar, para distrair etc..
É uma questão que tem que ser pensada não só na influência da arte na política, mas da influência da política na arte e, também, em como a política usa essa arte e vice-versa. Acredito que a arte é um instrumento transformador porque, através da arte, conseguimos inventar e acreditar em novas realidades.
Para transformar, de fato, essa sociedade precisamos de liberdade para nos posicionarmos sem alianças nem jogos políticos. Acho muito triste que, por dependência financeira, muitos artistas terminem adotando posicionamentos políticos fracos ou inexistentes.
Acho muito problemático porque muita gente ouve o que essas pessoas dizem e, quando elas não se pronunciam sobre assuntos importantes, ajudam para que o público não discuta ou tenha opiniões equivocadas sobre fatos, muitas vezes, tão graves. Não que o artista precise definir o pensamento de ninguém, mas entrar nas discussões traz um monte de gente para discutir, visto que o papel da arte é justamente ajudar a inventar realidades possíveis.
Dentre os teus personagens, o Ditador Gay e outros participam tantos dos vídeos como de uma diversidade de manifestações ligadas a movimentos de esquerda como de direita. Como funciona para ti realizar essas intervenções?
Acho igualmente divertido fazer essa crítica da ‘Ditadura Gay’ tanto em contextos de direita quanto de esquerda, porque, de certa forma, termino ironizando ambos os lados. Mesmo que que meu posicionamento político esteja mais identificado com a esquerda, também trabalho esse personagem com ironia e autocrítica quando performo um homem cis gay e branco que se impõe como quebra do padrão e, na verdade, estabelece outro. Muitas dessas críticas são voltadas para mim também, claro.
Em uma performance que fiz na Marcha das Vadias, por exemplo, havia uma quantidade de policiais totalmente desproporcional em relação ao número de manifestantes. Então, me posicionei em frente a eles e comecei a comandá-los como se fossem meu exército. Ao extrapolar os anseios da esquerda e intensificar os medos da direita, expresso as incoerências e absurdos de ambos os lados a partir do riso e da performance.
Em alguns dos teus trabalhos, você mescla um teor mais didático a um tom mais satírico e irônico, o que abre espaço para muitas incompreensões ao teu trabalho. Como tu pensas esses ‘ruídos de comunicação’ como potências na recepção ao teu trabalho?
Acredito que a ironia é minha forma de fazer humor e criticar da forma mais eficiente – ao menos, é a forma que mais me emociona. Não penso muito no efeito que vai causar porque sempre acho que todo muito vai entender o que quero dizer.
Acredito que todo mundo tem potencial de entender o que estou falando, mas comecei a perceber depois de um tempo que, dependendo do contexto que meu conteúdo seja visto, pode ser lido como o contrário do que estou falando. Eu não sei se você ficou sabendo, mas teve um trabalho que fiz em 2016, uma exposição de souvenirs olímpicos que retratavam, basicamente, a violência policial, a manipulação da mídia e remoções forçadas para a realização das Olimpíadas no Rio. Com essa intervenção, minha intenção era botar na vitrine as monstruosidades que acontecem no Rio e mostrar para aos turistas um outro lado da cidade olímpica, mas familiares de vítimas da violência nas favelas terminaram protestando. Entendi a dor deles.
Em outro caso, produzi um vídeo em que interpreto um hétero preocupado com a ditadura gay e apareceram muitas pessoas compartilhando o vídeo com frases como ‘É isso mesmo que tá acontecendo!’ ou ‘É assim que essa ditadura tá tomando o país!”. Essa foi a primeira vez que percebi como minha ironia poderia ser tratada de outra forma, mas talvez isso termine dizendo mais sobre as pessoas do que sobre o próprio trabalho.
Então, termino não fazendo muita questão de ser entendido exatamente como estou querendo, porque, às vezes, essas outras compreensões dizem coisas até mais importantes do que eu pretendia.
No Talk Show do Rafucko, você também cria personagens para entrevistar personalidades conhecidas por sua verve artística e também política, como Laerte e Gregório Duvivier, por exemplo. Como desenvolver essa forma tão particular de diálogo com outras personalidades te influencia nos modos de fazer arte e política?
Para fazer o talk show, decidi vestir diferentes personagens para entrevistar diferentes personalidades, sejam intelectuais, artistas, políticos, para também construir os personagens dos meus entrevistados. Como cada uma desses entrevistados, de algum modo, representam imagens e estereótipos que lhes precedem, ao entrevistar, por exemplo, Jean Willys vestido como o Ditador Gay ou Eduardo Viveiros de Castro como Pedro Álvares Cabral, termino vestindo também o personagem do entrevistado.