#11 Corpos [In]Visíveis | Jalecos brancos e narizes vermelhos para receitar esperança
Imagem – Tato Guion | Arte – Rodrigo Sarmento
‘No hospital, o palhaço se adapta a um espaço que não está preparado para receber um espetáculo e, na construção do brincar, as crianças deixam de ser uma estatística. Elas voltam a ser uma pessoa com um nome e podem viajar pelo mundo inteiro dentro quarto pelo poder da imaginação.’ A partir de suas vivências como artista nos Doutores da Alegria, Ronaldo Aguiar (SP) colabora no nosso dossiê Corpos [In]Visíveis conversa com nosso editor-chefe, Márcio Andrade, pensando como levar a arte do palhaço em hospitais cria condições para nos encontremos uns com os outros de forma mais humana.
Ronaldo Aguiar é Diretor Artístico dos Doutores da Alegria, em São Paulo, formado em Licenciatura em Dança (Faculdade Paulista de Artes – FPA), tendo atuado e dirigido vários espetáculos de circo. Passou por companhia de circo como UniverSoul Circus, Circo Zani e Circo Roda, e colaborou com artistas como Fernando Sampaio, Domingos Montagner, Hugo Possolo etc..
Ronaldo, primeiro, fala um pouco sobre a tua formação e como começou tua relação com as artes cênicas.
Comecei nas Artes Cênicas com a dança. Sempre sonhei em ser bailarino, mas cresci em um bairro que não tinha nada disso: Caetés 1, em Abreu e Lima. Até hoje nessa cidade, não tem teatro e acho isso um absurdo, inclusive. Quanto ao teatro, comecei na escola com Zezo Oliveira, um professor de biologia que fazia parte de um grupo de teatro de rua mais político chamado Vem Cá Vem Ver, do qual participei depois como ator.
Ainda no meu processo de ser bailarino, estudei dança popular (maracatu, coco, frevo etc.), mas o que eu queria mesmo era dança clássica e dança contemporânea. Nesse caminho, enfrentei esses desafios de ser homem e a família não aceitar o ‘ser artista’ e terminei indo trabalhar nas Lojas Americanas, carregando mercadorias para pagar as minhas aulas de balé.
Nesse processo, descobri que Zezo era fundador da Escola Pernambucana de Circo (EPC) e falei com ele sobre o desejo de trabalhar lá. Entrei na EPC para trabalhar como professor de dança, mas o circo me chamou de uma maneira muito potente e comecei a treinar acrobacia aérea, trapézio, tecido e, por último, veio o palhaço.
Não queria muito trabalhar como palhaço, mas Fátima Pontes, atual coordenadora da EPC, insistiu para que eu entrasse em cena como palhaço e fiz um espetáculo chamado Brincadeiras do Picadeiro e funcionou. Quando os Doutores da Alegria criaram a unidade em Recife em 2002, Fátima Pontes me disse para que fizesse o teste para entrar no elenco. Na hora, disse a ela que não sabia o que era esse trabalho, mas ela insistiu, dizendo que eu perceberia que seria um projeto bom pra mim.
Quando vi o trabalho de Wellington Nogueira, criador dos Doutores, e Fernando Escrich, que na época era diretor artístico, percebi que era aquilo que eu queria fazer para a minha vida.
Nessa minha formação, fiz Licenciatura em Dança (Faculdade Paulista de Artes – FPA), dirigi vários espetáculos de circo, fui indicado a prêmios de direção e ganhei prêmios como ator com um espetáculo chamado Sinbad, o Navegante. Trabalhei no UniverSoul Circus e nas principais companhias de circo de São Paulo, como o Circo Zani e o Circo Roda, colaborando com pessoas como Fernando Sampaio, Domingos Montagner, Carla Candiotto, Rodrigo Matheus, Hugo Possolo etc. e ministrando cursos na Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro.
Então, tenho essa vida artística muito potente e, hoje, olho para mim com 41 anos e uma bela trajetória, trabalhando com arte há 20 anos.
Você poderia fazer um panorama do trabalho dos Doutores da Alegria. Como ele surge e se dissemina aqui no Brasil?
O projeto Doutores da Alegria surgiu em 1991. Na época, Welington Nogueira, o fundador, trabalhava nos EUA com Michael Christensen, que fundou um projeto chamado Big Apple Circus. Nogueira experimentou trabalhar de palhaço no hospital nos EUA enquanto tinha ido para lá estudar teatro musical.
Quando ele volta para o Brasil, o pai dele pergunta se ele poderia fazer esse trabalho de com hospitais aqui no país e apareceu essa indecisão entre ser ator de teatro musical na Broadway ou ficar no Brasil. Quando ele decide começa a observar o cenário de palhaçaria em São Paulo, encontra uma atriz chamada Vera Bude, que foi a primeira palhaça a entrar nos Doutore depois da sua fundação.
Hoje, os Doutores têm uma equipe que chega a cem pessoas e já atenderam, em cerca de 27 anos, mais de um milhão e setecentas mil crianças. Então, se trata de um projeto que foi se consolidando: começou com uma dupla de palhaços que fica no hospital e, até hoje, funciona com a dinâmica de dupla de palhaços em São Paulo, em Recife e em outras cidades.
O palhaço no hospital é a identidade dos Doutores da Alegria, comunica muito sobre a instituição, como ela surge e o que ela se propõe a fazer: levar a arte do palhaço para crianças em situação de vulnerabilidade social. Esse objetivo, inclusive, foi alterando nossa dinâmica: antigamente, os Doutores atendiam aos hospitais particulares, mas, hoje, priorizamos os hospitais públicos. Nesse local, temos mais acesso a pessoas que não têm acesso ao teatro e o palhaço leva arte para crianças atendidas pelo SUS.
Hoje, os Doutores têm 27 anos, uma equipe com 26 palhaços em São Paulo, quatorze em Recife e um projeto chamado Plateias Hospitalares no Rio de Janeiro. Além disso, desenvolve um programa de formação para palhaços jovens que não têm condições de pagar um curso de teatro.
Ao olhar para esse trabalho hoje, identificamos como foi algo que inspirou vários grupos, sendo a primeira prática sistematizada com a frequência de duplas de palhaços trabalhando duas vezes por semana em um hospital público atendendo crianças. Por se tratar de um trabalho remunerado com encontros para treinamentos, o palhaço no Doutores da Alegria não acontece de forma voluntária.
Não existe nada contra trabalhos voluntários (achamos bem importante, inclusive), mas os Doutores acreditam que, para aprofundar a construção de vínculo entre o palhaço e a criança, é importante que o artista esteja duas vezes por semana no hospital. Dessa forma, o palhaço vai ganhando a confiança e entendendo a história de cada família, podendo transformá-las em jogo e aprofundando a relação com o artista.
Assim, os Doutores terminaram também estimulando e profissionalizando muitas práticas da palhaçaria no Brasil, que existiam há bastante tempo, mas não eram tão disseminadas como hoje.
Em que consiste e como funciona a linguagem do ofício artístico que vocês realizam nos hospitais? Quais as qualidades que um ator/palhaço precisa desenvolver para criar a conexão com o trabalho de vocês?
Os Doutores da Alegria é uma associação com uma diretoria que se modifica bienalmente a partir do voto, significando que o diretor, que faz parte de uma função pública de uma associação, desenvolva e tenha fluxos importantes entre a sociedade e a instituição.
A captação de recursos acontece a partir de pessoa física e da Lei Rouanet, para que se possa mobilizar a sociedade para realizar doações financeiras para uma prática potente e especializada em trabalhar com arte e cultura dentro de hospitais públicos.
Na escola de formação de palhaço, os Doutores atendem jovens em situação de vulnerabilidade social que passam dois anos e meio estudando a arte do palhaço e saem como artistas profissionais que podem solicitar a emissão de DRT.
Para nós, é muito importante ver pessoas fundando companhias de trabalho oriundas da nossa escola e fomentando as atividades culturais em seus bairros, fazendo com que os artistas se tornem pessoas engajadas dentro da sociedade. Além das intervenções artísticas que acontece duas vezes por semana no hospital, os Doutores realizam treinamentos artísticos em um dia da semana para criar e aprofundar repertório e desenvolvem núcleos para discussões sobre políticas públicas.
Muitas pessoas acham que seja fácil entrar para o núcleo de trabalho dos Doutores, mas se trata de um processo muito rigoroso que dura entre dois e três meses, envolvendo seleção de currículo, carta de intensão e portfolio. Para essas seleções, exigimos que o artista comprove, no mínimo, cinco anos de trabalho e formação em algum segmento das artes cênicas com especialidade na linguagem do palhaço.
Em 2018, fizemos uma seleção: em São Paulo, recebemos 250 currículos e escolhemos sete artistas; e, em Recife, foram 89 currículos para aprovar apenas onze artistas. Então, para selecionar esses artistas, consideramos que a formação profissional do palhaço não pensa somente se o sujeito é ‘engraçado’ ou ‘leva jeito’, mas qual conteúdo ele pode levar ao hospital. Pensamos nisso porque o Brasil está mudando e nós trabalhamos com todos os tipos de pessoas em que vamos lidar com questões étnico-raciais, de gênero, de sociabilidade etc.. Tudo está envolvido no trabalho com pessoas.
O trabalho no hospital exige delicadeza e engajamento para que arte que se estabeleça ali seja, de fato, pensada para aquele público, pois a geografia diz muito sobre aquilo que você faz e faria em um determinado espaço. Geralmente, quando se vê um espetáculo de teatro, aquele espetáculo está pronto, mas no hospital, o palhaço cria uma obra diferente todos os dias a partir dos encontros que realiza.
Então, o palhaço precisa desenvolver uma especialidade na improvisação pois as pessoas te abordam com temas e histórias diferentes. Nesses encontros, você encontra crianças doentes, pobres (em sua maioria, negras), com sexualidades diversas, famílias que começam unidas e que, depois de um tempo de tratamento, se separam.
Então, o artista, no trabalho com os Doutores da Alegria, se trata de um profissional que vive constantemente nessa linha entre a vida e a morte. Essa é a primeira premissa. Segundo, ele tem que ter um olhar sensível. Terceiro, ter habilidades que conquistem.
Por isso, a música, a graça e a poesia são tão importantes dentro do hospital. Então, termina sendo impossível contratar pessoas que não são artistas ou que não tenham uma carreira consolidada com a arte.
Que contribuições e diferenças você percebe na socialização dos enfermos com a participação dos Doutores nos hospitais?
Os Doutores têm uma publicação chamada Soluções de Palhaço em Hospital, uma pesquisa que mostra o antes e o depois da criança com a intervenção do palhaço. Nessa publicação, a gente percebe, a partir de desenhos, como a criança passa a elaborar mais cores, formas e histórias em seus desenhos após a intervenção artística dos Doutores da Alegria.
A gente fala que o palhaço no hospital trabalha em palcos improváveis, porque ele chega em um espaço em que ele não está preparado para receber um espetáculo e se adapta a esse espaço. Nesse trabalho, existe uma construção do brincar em que a criança deixa de ser um número, uma estatística e passa a ter uma autonomia, voltando a ser um ser vivo com identidade, com um nome.
Por exemplo, em outras situações, a criança tem a liberdade de dizer ‘não’, mas que, por uma série de circunstâncias, não está sendo escutado: ela precisa tomar medicamentos mesmo quando não quer, precisa se alimentar mesmo quando não quer e assim por diante. Mas, quando o palhaço bate na porta e pergunta a ela se pode entrar, ela tem a chance de dizer ‘não’ e o palhaço vai aceitar e dizer que passa outro dia, contrapondo imediatamente essas outras situações anteriores.
Esse brincar do palhaço com a criança cria laços com a mãe e até com o próprio profissional da saúde, que, muitas vezes, se envolve com as brincadeiras, tornando essas relações mais humanas e próximas. O hospital termina sendo um lugar de muita tensão porque o profissional da saúde trabalha para evitar ao máximo os erros, mas o palhaço está lá para errar, se divertir e mostrar a vulnerabilidade que nos torna humanos.
Nessa situação, o palhaço pode transformar o quarto da criança em qualquer lugar dentro da ficção, podendo viajar pelo mundo inteiro dentro do hospital.
Como a tua relação com a arte no trabalho desenvolvido nos Doutores influencia nas tuas formas de criar em outros espaços e espetáculos?
O trabalho dos Doutores é inspirador para o artista porque ele trabalha com a vulnerabilidade, em um lugar com a vida em uma linha bastante frágil em que as pessoas entram para se curar. Então, o palhaço termina desenvolvendo um movimento bastante esperançoso.
A primeira palhaça dos Doutores, Vera Bute, fala que, quando saiu do palco e para o hospital, levou o repertório dela como atriz, mas, quando saiu do hospital e foi ao palco, levou mais delicadeza, sensibilidade e um desenvolvimento de escuta. Ela percebia que o trabalho dela faria parte de um todo e se adequaria a um contexto – no caso dos Doutores da Alegria, um contexto hospitalar.
Esse trabalho influencia suas escolhas, faz com que o artista pense uma forma mais potente de se comunicar, pois são encontros que trabalham com a construção de memória e de vínculos e ficam impregnados nas pessoas. Existem pessoas que passaram pelos Doutores e se lembram das intervenções de palhaço que aconteceram quinze anos atrás.
Falando por mim, sou artista e trabalhar na cena de forma independente me ajuda a entender como o cenário cultural está funcionando a partir dos projetos de outros coletivos, pois o ator ganha potência se trabalha dentro e fora dos Doutores da Alegria.
Por se tratar de uma instituição que tenta estar muito presente nessa vida cultural, em São Paulo, estreamos um espetáculo chamado NUMVAIDUÊ, que traz o palhaço brincando no hospital ressignificando seus adereços: por exemplo, uma luva de borracha que vira um instrumento musical. Esse espetáculo trata desse lugar da imaginação que o palhaço habita, transbordando para os palcos quando você faz parte dos Doutores da Alegria.
Hoje, tenho uma relação muito consistente e presente com o palco justamente por fazer parte de um trabalho em que eu, como artista, preciso me fazer menor, pois o palhaço abre mão da própria voz para dar palco a vozes invisíveis – pessoas que, por inúmeros motivos, teriam suas histórias apagadas.
Quando os Doutores pensaram em trazer essas experiências para o palco e dividir com a sociedade, estão dizendo ao mundo que, no hospital, existem histórias muito bonitas que podem servir de exemplo para uma sociedade. Ao passar pelos Doutores e trabalhar em outros espetáculos, o artista ganha a prática de olhar para o outro e enxergar o lado saudável para se relacionar, tentando potencializar o seu espetáculo para que seja um encontro potente.