#11 Corpos [In]Visíveis | Teatro na Perspectiva de uma Educação Inclusiva
Por Manaíra de Melo Pereira
Licenciada em Teatro (UFPE) e Licencianda em Dança (UFPE)
Para discutir os conceitos de inclusão e integração voltados às questões pedagógicas relacionadas ao teatro, sobretudo no que diz respeito ao trabalho com pessoas com deficiência, necessitamos entender como é vista e tratada a educação de pessoas com deficiência, de acordo com as leis brasileiras, partindo dos conceitos de Educação Especial e Educação Inclusiva. A Educação Especial nasce no intuito de colocar pessoas com deficiência nas escolas, mas a forma ela se dá não pressupõe a inclusão do sujeito, mas sua integração:
Em 1994, é publicada a Política Nacional de Educação Especial, orientando o processo de ‘integração instrucional’ que condiciona o acesso às classes comuns do ensino regular àqueles que ‘[…] possuem condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino comum, no mesmo ritmo que os alunos ditos normais’. (MEC, 1994, p.7 apud ANDRADE; ANTÔNIA, 2010, p. 133).
A integração parte do princípio de que o estudante com deficiência precisa se adaptar à “realidade da escola”, pois se tem a compreensão de que, sendo ele uma pessoa diferente naquele espaço, precisa se integrar ao ritmo da instituição. Isso, no entanto, não estimula a inclusão. Caso a pessoa com deficiência não consiga se adaptar, deve ir para uma instituição especializada.
A reflexão sobre diversidade e igualdade ampliou a discussão sobre educação especial e questionou seus princípios, conflitando-os com as ideologias da LDB e da Constituição Brasileira. Desse modo, em 2004, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão analisou esses documentos e passou a defender o conceito de Educação Inclusiva no sistema educacional brasileiro:
A educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola. (BRASIL, 2007).
Essa mudança de Educação Especial para Educação Inclusiva deve interferir na postura dos professores, dos pais, dos estudantes com deficiência e dos outros estudantes, ou seja, da comunidade escolar como um todo, pois todos os estudantes devem passar a conviver, realizando-se, assim, a inclusão escolar. Quando passam a ter esse direito garantido por lei, as pessoas que vivenciam um espaço escolar inclusivo podem perceber suas contribuições para a inclusão social: “a inclusão é, ao mesmo tempo, motivo e consequência de uma educação de qualidade e aberta às diferenças” (PRIETO apud SANTOS, 2007, p.5).
Na prática, enquanto professora de artes em escola pública – mais especificamente de Teatro -, observo que o entendimento sobre educação inclusiva fica reduzido a manter o estudante com deficiência em sala com os demais, mas as formas como esses atos vêm se dando talvez não pressuponham a inclusão. Por exemplo, em uma das turmas em que trabalho, tenho uma estudante com autismo severo e, quando a turma se encontra agitada, ela fica extremamente incomodada com o barulho. Nesse caso, esse educando com deficiência poderia ser atendido pela educação formal em um espaço especial, mas a orientação da escola é que a estudante permaneça em sala, mas será que essa permanência será positiva para a aprendizagem?
Em relação a isso, são perceptíveis várias lacunas: alguns estudantes com deficiência estão no 6º ano do ensino fundamental II e não sabem ler nem escrever minimamente. Em atividades em que todos os alunos trabalham, a pessoa com deficiência, geralmente, está acompanhada por um estagiário de Psicologia ou Pedagogia e o professor precisa passar uma atividade diferenciada para esse estudante. Como uma professora de artes que trabalha com 25 turmas conseguiria ministrar atividades diferenciadas, considerando a situação de cada estudante em turmas e séries diferentes? Na prática, o que normalmente fazemos é conversar com o estagiário sobre o tema e pedi-lo para pensar em atividades que o estudante consiga fazer, já que ele lida diariamente – o que termina não sendo o caso dos professores do fundamental II, porque são aulistas.
Diante desse cenário, como trabalhar artes com todos sem excluir?
Em meio a esses questionamentos, o potencial inclusivo do teatro me fez pensar em algumas categorias que poderiam sugerir e transformar algumas metodologias trabalhadas, partindo do pressuposto de que o teatro
proporciona experiências que contribuem para o crescimento integrado da criança e do adolescente sob vários aspectos. No plano individual, proporciona o desenvolvimento de suas capacidades expressivas e artísticas; no plano coletivo, por ser uma atividade grupal, oferece o exercício das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão sobre como agir com os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia, como resultado de poder agir e pensar com maior ‘liberdade’ (CAMARGO, 2003, p.39).
Assim, conseguimos inferir que o Teatro tem diversos elementos que podem favorecer uma prática inclusiva, dependendo somente de como o processo será desenvolvido. Desse modo, elegemos alguns elementos baseados nas propostas de práticas pedagógicas apontadas por Paulo Freire, que se aproximam do conceito de educação inclusiva – autonomia, diálogo, percepção e reflexão crítica -, relacionando-as às práticas apontadas pelo diretor de teatro Peter Brook sobre o processo de estudo da interpretação e a inclusão.
No que diz respeito à produção do conhecimento, ambos os autores afirmam a necessidade do estímulo à criação (autonomia) e à reflexão (criticidade). Quando afirma que a “forma não precisa ser inventada exclusivamente pelo diretor. […] O processo de dar forma é sempre um compromisso que temos que aceitar, dizendo ao mesmo tempo: ‘É provisória, tem que ser renovada’. Trata-se de uma dinâmica que nunca terá fim.” (2005, p.43-45), percebe-se como o espaço cedido à autonomia para o processo de construção oferece oportunidade para que os envolvidos se posicionem, provocando possibilidades de mudança, a reflexão crítica dos sujeitos e a disposição para dialogar.
A categoria autonomia está ligada ao respeito à liberdade do sujeito e o estímulo ao posicionamento crítico: tanto Freire quanto Brooks supõem uma prática democrática que provoca a inclusão. No que se refere à categoria diálogo, observamos o incentivo ao respeito e a disposição para discussão; e sobre percepção e reflexão crítica, a provocação à sensibilidade para a reflexão que envolve um movimento dialético. Acredito que, se essas categorias forem minimamente exercitadas em sala de aula, contribuiremos com uma educação inclusiva.
Na minha prática, mesmo que, nem sempre consiga trabalhar com essas categorias, às vezes, algumas situações possibilitam que esse exercício aconteça. Por exemplo, em uma turma em que criávamos cenas baseadas em enredos que eles construíram com a temática traição, um dos estudantes pessoa com deficiência começou a participar da cena. Os outros alunos queriam que ele interpretasse o personagem de um menino que eles denominaram de ‘doente’ que não falava nada, justamente por esse estudante ser uma pessoa calada.
Percebendo isso, sugeri aos estudantes que a cena poderia ser justamente a oportunidade para que ele se pronunciasse e escutarmos a sua voz. Os outros alunos não gostaram da sugestão, mas o menino, para minha surpresa, adorou e, depois da aula, constantemente me procurava para saber quando teríamos aquele tipo de exercício novamente. Ao criar a oportunidade para que esse estudante exercitasse autonomia por meio da palavra, o teatro o deixou entusiasmado e permitiu que, em alguns momentos, experimentasse a inclusão na sala de aula.
Contudo, mesmo que percebamos os avanços nas interações desse estudante com a turma, a avaliação da aprendizagem de conteúdos também podem atravessar as categorias autonomia, diálogo, percepção e reflexão crítica. Mesmo que tenha certeza de que não consigo atingir a todos de forma igualitária, creio que estar atenta e sensível pode fazer com que meus alunos guardem em suas memórias não somente conteúdos, mas a experiência de uma educação inclusiva possível.
Mesmo que, às vezes, pareça uma utopia, a educação inclusiva acontece nessas pequenas ações e se reflete nas pessoas por ela contempladas, mostrando-se essenciais à formação de estudantes de teatro em qualquer grau de escolaridade. A partir disso, esses estudantes podem questionar sobre sua realidade social, por exemplo, a relação estudante-mundo do trabalho, estudante-família, estudante-teatro, estudante-instituição, descobrindo outros modos de lutar pela inclusão, e construindo um ensino como meio de sensibilização e de intervenção no mundo.
Formar atores ou formar estudantes de teatro, qualquer um desses objetivos, deve favorecer a inclusão social, que compreende a inclusão escolar, estimulando os educandos a serem questionadores e reflexivos e a exercitarem a autonomia para a construção do conhecimento. O teatro pode ajudar a promover a inclusão social dos sujeitos, mas isso depende de uma série de fatores, tais como: a metodologia usada pelo professor, o posicionamento político do professor e da instituição, as famílias dos educandos, os próprios educandos.
Observamos que as análises e as observações feitas neste trabalho pretendem contribuir para uma reflexão crítica no que diz respeito às metodologias utilizadas na prática teatral envolvendo pessoas com deficiência, bem como apresentar os conceitos de inclusão no exercício da prática docente. Queremos contribuir para a reflexão das práticas das instituições e dos orientadores dos processos, considerando sempre o que Paulo Freire chama de “inconclusão do ser humano”, na qual se refere à constante aprendizagem e transformação de todos nós.
Referências
A formação docente na perspectiva da inclusão. In: Ix Congresso Estadual Paulista Sobre Formação de Educadores, 2007, São Paulo.
BRASIL. Conselho Nacional de educação, Câmara de Educação Básica, Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução CNE/CEB n. 2 de 11 de setembro de 2001. Brasília: Diário Oficial da União de 14 de setembro de 2001.
BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
CAMARGO, Maria Aparecida. Teatro na Escola – a Linguagem da Inclusão. Rio Grande do Sul. Editora da Universidade de Passo Fundo, 2003.
CARVALHO, Lívia Marques. O Ensino de arte em ONGs: um instrumento para a reconstrução pessoal e social. 2008. In: Portal Unesco. Disponível AQUI. Acesso em: mar.2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia- saberes necessários à prática educativa. 39ª ed. São Paulo. Paz e Terra, 2009.
SANTOS, Maria Luisa dos. Inclusão Escolar: análise dos fatores potencializadores da permanência dos alunos com necessidades educacionais especiais em classe comum. In: V Semana da Educação – A Universidade de São Paulo e a Formação Docente, 2007, São Paulo. Anais da V Semana da Educação, 2007.
LIMA, Priscila Augusta. Educação inclusiva e igualdade social. São Paulo: Avercamp, 2006.