#16 Urgências do Agora | Terra alheia, pisa no chão devagar
Imagem – | Arte – Rodrigo Sarmento
Natural de Recife e morador do Alto Santa Terezinha, o fotógrafo Kayo Ferreira (artisticamente, Kayo na Real) desenvolve uma prática que transita entre o político e o documental, associando seu ofício artístico aos trabalhos que desenvolve em movimentos sociais e de militância, como é o caso do Coletivo Fala Alto, que coordena com outros jovens ativistas moradores do Alto do Pascoal e do Alto Santa Terezinha, na Zona Norte do Recife.
Nessa entrevista realizada pelo colaborador editorial Elilson, Kayo comenta sobre como, por meio da fotografia, tem documentado manifestações políticas, atos públicos, ações artísticas, educativas e eventos culturais e desenvolvido, desde 2014, uma pesquisa fotográfica a partir de sua inserção nos terreiros de Candomblé e Jurema. Seus trabalhos integraram exposições como Olharxs Negros sobre a Jurema Sagrada (Museu Murillo la Greca, 2019) e Afrografia (Museu da Abolição, 2019).
Kayo, quando você ainda era estudante secundarista, a fotografia e os movimentos sociais surgiram quase que simultaneamente em tua vida. Poderia nos relatar essa dupla atividade partilhando sobre tua trajetória de formação e como isso tem se desdobrado em teu trabalho artístico atualmente?
A militância no movimento social veio primeiro, quando comecei a estudar no Centro. O incentivo à leitura nas escolas da favela é bem escasso. Só se lia um poema nos livros de português. E só se escrevia muito, quando a professora colocava o estudante para fazer cópia de textos enormes, como forma de castigo.
Estudei no Colégio Municipal Pedro Augusto, na Boa Vista, da 5ª série à conclusão do Ensino Médio, escola onde as periferias do Recife se encontravam e onde também havia uma movimentação política. Em 2005, com o aumento da passagem, foi quando eclodiu em mim a necessidade da ação direta e da construção coletiva da luta, e comecei a participar das manifestações.
Ainda não imaginava que essa luta ia muito além dos 15 centavos daquele reajuste. Comecei a ler mais, tendo acesso a bibliotecas e livrarias. Também foi importante conhecer referências musicais, artistas que me despertavam e levavam do pensamento para a voz questões que eu também pensava.
Também nesta época, várias atividades culturais e artísticas geravam na cidade, como a Terça Negra, o SPA das Artes e o Teatro do Parque, que além do projeto Seis e Meia, tinha sessões de cinema no valor de R$1,00. Nesses rolês conheci muita gente boa. Alguns anos depois, junto com outros companheiros, criamos o Cabeça Ativa, que era um braço do Movimento Via Alternativa Socialista, onde organizávamos ensaios abertos no Totó e em seguida no Alto Sta. Terezinha, em parceria com o Espaço Cultural Suburbano, lá em 2007.
Além dos ensaios abertos, rolava também a produção de fanzines. Em 2008 comecei o curso de vídeo na Escola Oi Kabum!!! de Arte e Tecnologia, que me deu um norte para o que eu gostava e gostaria de fazer. Mas depois do curso, fiquei parado por quase 5 anos, devido ao custo dos equipamentos.
Quando finalmente consegui a grana, investi numa câmera fotográfica, por ser mais barata do que uma filmadora, além de poder também trabalhar com fotografia. Então continuo associando, atualmente, o trabalho como fotógrafo e minha trajetória nos movimentos sociais.
Tua atuação artística tem um viés político não só pelo registro fotográfico de manifestações políticas e movimentos sociais, mas também pela atividade ativista que exerce na comunidade com atividades formativas, por exemplo. Pensando neste aspecto, você poderia nos contar sobre a criação e as atividades do Coletivo Fala Alto?
O Coletivo Fala Alto, inicialmente, era um grupo apenas de mulheres, criado a partir de um caso de violência doméstica sofrido por parte de uma das companheiras. Mas existiam outras pautas, outras demandas na comunidade, que precisavam, também, serem discutidas, daí o Coletivo se ampliou para participação dos homens e foi então “batizado”.
A discussão que fazemos permeia a questão da luta de classes, de mostrar para o povo que só existe pobreza porque uma pequena parte de pessoas (a burguesia) lucra em cima da nossa força de trabalho, e para eles é importante alimentar e manter a miséria social para a manutenção de seus privilégio.
Uma das atividades que realizamos é uma oficina de fotografia para jovens estudantes das escolas da comunidade. Foi massa a primeira edição! Infelizmente não rolou de fazer a exposição das fotografias, mas creio que logo mais acontecerá.
Em um depoimento publicado pelo portal retruco, ao falar sobre exercer a profissão de fotógrafo, você afirmou: “Sou porque os meus e os que vieram antes de mim precisam de imagens que são negadas há muito tempo ou feitas sem responsabilidade, sob o olhar do exótico”. A partir desta consideração, gostaria de perguntar sobre a pesquisa que você desenvolve desde 2014 nos terreiros de candomblé e jurema. Poderia falar como se deu essa inserção e como você avalia o ainda persistente olhar fetichizador de fotógrafos eurocentrados sobre os cultos de matriz africana? E em relação às tuas fotografias, você tem pensado a imagem como um ‘lugar de onde se fala’?
A minha avó paterna desde criança frequenta reuniões de mesa de Jurema. Mas devido ao preconceito, sempre era um assunto restrito, que ela não costumava falar com facilidade. Só em 2014, quando comecei um trabalho para a Rede de Povos Tradicionais, foi que essa relação se estreitou e muitas coisas que eu via quando criança, num quartinho da casa de vovó, vieram à tona, solucionando várias dúvidas que eu carregava ao longo da vida: da vela acesa ao lado de um copo d’água às frutas, que uma vez eu inventei de comer e levei uma pisa (risos), passando também às questões organizacionais dos próprios terreiros.
Sobre o olhar fetichizador, ainda é presente. Vemos muitas fotógrafas e fotógrafos que não têm a preocupação do retorno que as comunidades tradicionais de terreiros podem ter com seus fundamentos sagrados sendo expostos. Esses artistas muitas vezes visam a “estética do exótico” nas suas imagens, para serem aprovados num edital, ganhar uma grana e o terreiro é que segure os B.O. se, por acaso, uma imagem de uma imolação, por exemplo, cair nas mãos de um grupo fundamentalista de evangélicos, que muitas vezes estão associados ao narcotráfico para destruírem e expulsarem as famílias de Axé das comunidades.
Nessa questão dos editais, ser fotógrafx brancx, que estudou nas melhores escolas da cidade, com vários privilégios que a sua classe proporciona é totalmente diferente de um preto e de uma preta que tenta escrever um projeto, mas sem água na torneira há 15 dias, com uma menina de 1 ano aperreando, com um calor infernal das telhas brasilit, a casa cheia de escorpião e uma barreira no quintal. Como é que se concentra?
Sem contar com a pressão da família, porque se você fica no computador, mesmo que trabalhado, já pensam que você é preguiçoso e sutilmente soltam frases como: “Olha, o Atacadão tá pegando currículo, visse?!”. Não estou querendo segregar! Nem tampouco restringir.
Até porque a conjuntura política atual requer que estejamos juntes, para conter o avanço do conservadorismo neofascista. Enquanto não tivermos uma proporção grande de negros e negras como maioria nesses espaços de representação, não só estar ali para bater a cota, temos sim que “botar queixo”.
Acontece que uns e outros brancos, com pseudônimos e trabalhos sobre a temática indígena, por exemplo, estão aí gerando nas galerias de arte, sendo considerados, porém, arrogantes e vaidosos, nos usando como ponte para estar nos nossos espaços de convivência ou de religiosidade sem dividir o bolo na hora dos parabéns.
E quando eu falo “o branco”, não me refiro à pessoa branca em si, querendo generalizar, mas a um sistema racista como um todo, pois não houve reparação significante nas políticas públicas, e o pouco avanço que tivemos nos últimos 20 anos vem sendo rápida e drasticamente desmontado. Tenho muitos amigos e amigas brancas, com uma boa estabilidade econômica e que são bastante responsáveis e profissionais. Pessoas boas, que eu sei que posso contar.
Como também, por outro lado, também existem pessoas brancas que moram na favela numa condição tão miserável quanto a do vizinho preto que mora no barraco ao lado, e aí, nesse discurso ácido, devemos ter cautela para que esse vizinho branco não se sinta à parte da luta por igualdade e justiça. Eu, particularmente, acredito que isso poderá acontecer lutando contra o sistema capitalista, e a única teoria (e prática) que propõe soluções concretas e palpáveis para essa mazela humana é o socialismo.
Uma política socialista da periferia do mundo, autêntica à nossa realidade. A exemplo do que o Partido dos Panteras Negras aplicou na sua prática, que vai desde as teorias de Malcom X e Fanon, ao modelo aplicado pelos revolucionários cubanos – Cuba teve um papel fundamental na assistência aos países de África que lutaram por independência e democracia, e que não se viam alinhados ao modelo soviético, como Angola, Congo, Moçambique e Burkina Faso.
A pergunta anterior foi motivada pelo fato de que você, enquanto alguém que carrega em seu ofício a “responsabilidade”, como diz, de transmutar essas narrativas, constrói uma relação de intimidade muito depurada nos terreiros, que se reflete nos delicados retratos que clica – inclusive dos processos de incorporação. Poderia nos contar como se dão esses encontros? E, em termos estéticos, como você tem experimentado a transposição dessas imagens do terreiro para contextos expositivos, como as coletivas que integrou no Murillo La Greca e no Museu da Abolição? O uso constante da fotografia preto e branco tem a ver com esses processos de reconstrução de memória nos quais você se debruça?
Então, é uma questão de vivência, de participação. Não adianta escrever um roteiro/projeto hoje e amanhã sair para fotografar alguma cerimônia religiosa. É como diz um provérbio da Jurema Sagrada: “terra alheia, pisa no chão devagar”. Tem que saber pisar para não levar queda. Nessas relações, se cria a confiança, acredito que até das próprias Entidades que estão em terra, com o fotógrafo.
Como o fotógrafo entende de expressões, cabe a ele saber se a entidade está à vontade ou não com a câmera, com algo anormal no meio da ritualística em si. Além de respeitar, porque o fotógrafo não pode querer adaptar o terreiro para que as fotos saiam bonitas e tal. Ele deve adaptar-se ao momento e se virar com a luz baixa, com os movimentos…
O uso do flash incomoda os espíritos. É como uma quebra na concentração. E no trabalho final, se for para uma exposição, é preciso selecionar cautelosamente aquilo que deve ser exibido. Eu exploro muito o detalhe, o plano médio invertido, as sombras, porque quem olha, vê até um certo ponto, o restante da leitura da imagem se faz com a imaginação.
É preciso também ter uma conversa, primeiramente, com a liderança religiosa do local, se for uma foto de algum procedimento interno, restrito aos filhos e filhas da casa. As fotos do Verger e do José Medeiros são massa! O Pierre Verger tem um estudo importantíssimo, resultante de suas pesquisas.
Mas, por outro lado, suas fotografias podem ter servido de alimento aos estereótipos conservadores e cristãos daquela época. Não se mede como esses impactos negativos atingiram diretamente os terreiros e nem se buscou saber se houve danos, já que até hoje somos perseguidos. Imagina há 50, 60 anos atrás?
Costumo também usar o preto e branco porque além de esteticamente ser um gosto pessoal para fotografar a pele negra, também dá, sim, uma continuação a essa reconstrução, partindo, inclusive, das próprias fotografias nas paredes dos terreiros. A maioria deles tem fotografias antigas nas paredes de pessoas ou de cerimônias importantes que aconteceram no passado, e que, por sinal, vêm se apagando com o tempo.
Por fim, gostaria de perguntar como você tem avaliado e enfrentado, junto ao Coletivo em suas atuações em nossas comunidades do Alto do Pascoal e Alto Santa Terezinha, esse contexto de pandemia e como essa questão tem atravessado teu trabalho artístico.
As reuniões do Coletivo têm acontecido pela internet. Mas não está sendo fácil querer agir e estar obrigatoriamente isolado. A pandemia modificou o calendário do mundo. Mas, na macropolítica, os caras estão passando a boiada, aprovando a agenda neoliberal de retirada de direitos trabalhistas, afrouxando a fiscalização ambiental, perseguindo cientistas. Ao mesmo tempo, como é que podemos dizer para a favela ficar em casa com o armário vazio?
Com as crianças sem aula, azucrinando o tempo todo, porque não tem onde gastarem energia, pedindo o que não temos. E com o desgoverno federal dificultando o acesso dos mais pobres ao auxílio emergencial, todo mês é uma novela mexicana diferente para receber os 600 conto.
O Coletivo recebeu uma doação de cestas básicas para a comunidade através da Frente Recife de Lutas e de outras parcerias, e é muito gratificante ver os sorrisos por cima dos relatos tristes das pessoas que receberam, falando da situação em que se encontram, sem emprego, sem auxílio e com criança pequena em casa. Nessa brechinha da reabertura, estamos tentando re-voltar as atividades que ficaram pendentes por conta da pandemia, encarando o mundão, no subir e descer das escadarias.
A pauta nossa, agora, é a construção da creche do Córrego do Deodato, num espaço que a Prefeitura da Cidade do Recife comprou há pelo menos 12 anos e que está abandonado, numa comunidade muito grande e que tem apenas uma creche. Com as matrículas virtuais, afunila-se ainda mais o ingresso de crianças cujas mães são analfabetas ou semialfabetizadas, que têm que se virar nas faxinas, nas bancas de bicho pra pagar 100, 200 reais pra alguém cuidar dos filhos, além de ter que garantir comida e outros gastos.
A maioria, mãe solo. Que é o que deixa o rolê ainda mais doido. Sim, é impossível tudo isso não atravessar e colocar outras camadas em nossos trabalhos – artísticos e sociais.