#17 Corpas Possíveis, Corpos Sensíveis | Corporalidades diversas em cena – Transgressões no olhar sobre a deficiência

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Marcia Berselli
Professora Departamento de Artes Cênicas (UFSM) e Doutora em Artes Cênicas (UFRGS)
Por Marta Isaacsson
Professora Titular (UFRGS) e Mestrado e Doutorado em Études Théâtrales (Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3)
Para o sociólogo e antropólogo David Le Breton (2009), o corpo é uma falsa evidência, elaborado social e culturalmente. Marcado por características plurais, o corpo é lido e decodificado a partir de códigos estritos e limitados, de representações prévias com as quais operamos. Carta de apresentação, o corpo se dá ao olhar do outro para uma averiguação em relação a uma imagem prévia que determina o que é desejável, o que é aceitável e o que é um incomodo.
Nessa perspectiva, a proposta neste espaço de reflexão é destacar alguns aspectos relativos às representações sociais da pessoa com deficiência refletindo sobre corpos diversos a partir de um enfoque nas artes cênicas. Nesse sentido, apresentamos como objeto de estudo a obra Gala (2015), do coreógrafo Jérôme Bel, a qual nos estimula a investir em um pensamento sobre as corporalidades diversas em cena.
Inicialmente, compreendemos que a relação da pessoa com o meio em que se encontra é marcada pela premissa da leitura dos elementos que a cercam. Os modos de significação desses elementos são construídos socialmente, a partir das relações com os demais, de forma múltipla e dinâmica. Ao identificar no outro uma semelhança ou diferença, é possível vislumbrar algo que diz respeito à nossa própria constituição. Para além dos encontros e interações, há uma multiplicidade de discursos anunciando como somos ou devemos ser e agir.
Assim, localizamo-nos na estrutura social para os outros e utilizamos dessa leitura para localizar os demais. Em nossa educação, formal ou informal, vamos tendo contato com diversos códigos e normas que atravessam a construção de nossa identidade, forjam modos de agir e definem nossas leituras de mundo, delimitando um campo de normalidade. Ainda que compreendamos a pluralidade e diversidade de corpos, há uma construção social que enquadra as diferenças.
Nessa operação, teremos um conjunto de características que serão consideradas dentro das normas em detrimento de outras que estarão fora, à margem. Esse complexo território da margem não é homogêneo, uma vez que há diferenças que causam maior ou menor estranheza, sendo elas classificadas também em uma escala diversa de valores. Logo, nos constituímos enquanto sujeitos a partir da aproximação ou distanciamento desta normalidade construída. Ocupamos, assim, posições identitárias a partir das narrativas que nos localizam.
Para ficar mais evidente: há um padrão corporal instituído e vigente. Esse padrão é construído, elaborado constantemente e muda conforme a mudança nos valores e na cultura da sociedade. O padrão corporal é aquele que nos chega dia a dia veiculado pela mídia, presente em nosso discurso, implicado nas avaliações de nosso olhar: contemporaneamente o corpo padrão é o corpo branco, magro, malhado, heterossexual e cisgênero, sem deficiência. É o corpo que predomina nos veículos de comunicação de massa, é o corpo desejado e, dessa forma, o corpo mais valorizado. Ainda que tenham sido as mulheres as maiores presas da indústria da beleza e do controle corporal, da busca incansável por um pretenso ideal ao qual se vincula a ideia de beleza vendida em pacotes de malhação à cirurgia plástica, é inegável que os homens também sofrem, ainda que em menor escala, com a manipulação e deterioração da imagem de seus corpos.
O corpo tem valor na sociedade do consumo, e será tanto ou mais valioso quanto mais próximo do ideal que mencionamos acima. Nos últimos anos, os discursos acerca da diversidade e pluralidade, e o engajamento na construção de um pensamento crítico em relação à diversidade foram pouco a pouco promovendo tensionamentos em relação a esse olhar padronizador que categoriza as pessoas. Com isso, o entendimento acerca da diferença começou a ser ampliado, com uma valorização de características específicas, que vão saindo da margem e ganhando certa visibilidade.
Porém, é evidente que se o convívio em sociedade apresenta padrões de comportamento e aparência socialmente instituídos e aceitos: o diferente causa estranheza, e a aproximação e identificação com o padrão torna-se um refúgio (LE BRETON, 2009), protegendo o sujeito no interior dos grupos majoritários que, padronizados, não despertam a atenção indesejada. Em uma sociedade competitiva, tal qual a nossa, que apresenta a centralidade da aparência do corpo, da eficiência e da alta performance, a diferença da deficiência, seja ela física, sensorial, intelectual ou mental, provoca uma ruptura das convenções sociais.
Quando o corpo idealizado é aquele que estampa as capas de revistas com auxílio de programas de tratamento e melhoria de imagem, fica evidente que as construções sociais a respeito do corpo reconhecem um modelo corporal jovem, magro, rápido e forte, enquanto inviabilizam qualquer reconhecimento dos corpos com deficiência, marcados nessas sociedades pela ausência, uma construção social que concorda com o modelo médico da deficiência.
Antes de abordar as diferenças entre modelo médico e modelo social da deficiência, cabe destacar que a deficiência traz uma carga simbólica e imprime uma identidade social, sendo motivo de estigma: “o deficiente”. Essa identidade está atravessada pela perspectiva capacitista, que desvaloriza a pessoa ao recorrer a uma definição imagética calcada no desvio individual. Essa representação pode ser vinculada ao modelo médico da deficiência.
No modelo médico a deficiência é intrínseca, destacando a perspectiva da ausência, a necessidade de cura ou a reabilitação. Nesse modelo a deficiência é um problema da pessoa, o qual se buscará minimizar através de tratamentos médicos, cirurgias etc. Em oposição ao modelo médico, a abordagem do modelo social da deficiência começou a ganhar impulso a partir da década de 1960, identificando a deficiência por uma perspectiva ecológica, como um aspecto de interação entre a pessoa e o ambiente.
Aqui há um ponto crucial. Não se trata de questionar o termo “deficiente”, se trata de mergulhar na imagem que está atrelada ao termo. Esta imagem se constrói a partir dos referenciais a que temos acesso cotidianamente, em uma estrutura social que marginaliza a pessoa com deficiência, que, apesar das políticas públicas de acesso, encerra as pessoas com deficiência em um nicho vinculado à incapacidade, à falta.
É essa imagem equivocada que precisa urgentemente ser revista e, nesse sentido, as artes cênicas se colocam como um potente espelho do social, um espelho que reflete o que muitas vezes está escondido no dia a dia, mas, também, um espelho que pode projetar novas imagens que desloquem o foco do nosso olhar, promovendo transgressões nos itinerários consolidados que atrelam deficiência à ausência.
Reconhecemos as artes cênicas como um importante espaço para tais transgressões, uma vez que a cena é local que amplia o olhar sobre o corpo ao colocá-lo em evidência. Na cena, real e ficcional se confundem, provocando atravessamentos pelo embaralhamento dos códigos sociais. Pelo aspecto do jogo, a cena torna possível projetar contextos diferenciados, convocando o e a espectadora a vislumbrar categorizações sociais rígidas a partir de outras perspectivas, mobilizando o que damos como certo em termos de eficiência ou deficiência, por exemplo.
De modo a observarmos a criação cênica como um espaço promotor de reconhecimento de trajetórias plurais e da diversidade social, traremos na sequência uma breve aproximação do espetáculo Gala[1], do coreógrafo francês Jérôme Bel. Gala é performado por um elenco de pessoas com corpos diversos, profissionais do campo da dança e, em sua maioria, não profissionais.
Jérôme Bel é formado em dança contemporânea pelo Centre National de Danse Contemporaine d’Angers (França). Sua primeira coreografia, de 1994, Nom Donné par l’Auteur, foi desenvolvida em seu apartamento junto com um amigo. Nessa criação, objetos cotidianos são deslocados para o palco formando uma coreografia de objetos. Já em seus primeiros trabalhos, Bel se destaca pelo modo com o qual surpreende e desafia os e as espectadoras, confrontando suas expectativas.
Uma das características das obras de Bel é o não espetacular. É uma constante em seus trabalhos a exposição das estruturas, ferramentas e artifícios do teatro, além da não ficcionalização do que é compartilhado com os e as espectadoras. Não há o interesse de forjar um universo sobre a cena a partir de elementos ficcionais. Assim, várias obras do coreógrafo iniciam com o palco vazio em uma cena minimalista. É o caso das obras Jérôme Bel (1995), Xavier Le Roy (2000), The show must go on (2001) e Gala (2015). Em sua trajetória, dois espetáculos envolvem performers/bailarinos(as) com deficiência: Disabled Theatre (2012) e Gala (2015).
Em Gala corpos diversos compõem juntos a cena. Gala foi desenvolvido a partir de oficinas para jovens das comunidades de Montfermeil e Clichy-sous-Bois (uma das comunidades mais pobres da França), na periferia de Paris. A atriz Jeanne Balibar, amiga de Bel, o convidou para trabalhar com ela nos ateliers de dança e canto, com amadores. Ali, Bel se questionou sobre como colocar pessoas tão diferentes juntas em um trabalho de dança. A resposta a essa pergunta, segundo Bel, veio com Gala. Nas oficinas, que duravam duas horas, ele encontrou uma estrutura: números solos, músicas preferidas, as danças privadas, a imitação do movimento dos e das parceiras de criação.
Jérôme Bel (2016) comenta que quando conversou com um produtor sobre o trabalho desenvolvido, ele foi questionado sobre se tratar de um trabalho social, e não artístico. O coreógrafo então percebeu que não havia profissionais naquela estrutura, já que o que lhe interessava era justamente o trabalho com amadores.
Para Bel, assim como os profissionais excluem o amadorismo e o não saber, ele estava naquele momento excluindo os profissionais. De modo a transformar tal situação, ele convida então alguns profissionais para fazerem parte do trabalho, indicando que todas as danças eram aceitas, das mais virtuosas àquelas das pessoas que nunca estiveram em cena. A interação começa então a se fazer presente, na proposta de que amadores e profissionais podem estar dividindo a cena em um acontecimento cênico.
A partir de então, o espetáculo é recriado com elenco local em cada cidade na qual é apresentado. Com o ideal de que “todo mundo pode fazer” (BEL, 2016), a escolha de elenco evita as audições. Bel afirma que as audições são muito relacionadas à dança tradicional, no sentido de determinar quem poderia ou não estar em cena. Assim, há um protocolo de tipologias para integrar as formações locais.
A seleção do elenco parte de um protocolo determinado por Bel, com características gerais dos quinze a vinte performers – profissionais e não profissionais – que comporão o acontecimento cênico. São crianças, jovens, adultos e idosos. Os interessados em participar recebem uma carta assinada por Jérôme Bel, na qual além de se apresentar, o coreógrafo apresenta em traços gerais o espetáculo, indicando também o que espera dos e das performers. Em um modo de criação tradicional no repertório de Bel, os ensaios são reduzidos a um curto período, fator facilitado pela escolha por tarefas como procedimento de criação.
Em Gala, o trabalho se organiza em oito blocos, em uma sequência estruturada em que uma ação ocorre depois da outra sem transições elaboradas. Há uma sequência de séries a serem apresentadas, e essa organização é tornada visível ao público, abrindo a estrutura aos espectadores que rapidamente apreendem como se dará o espetáculo em termos de organização. Ainda, cada um dos oito blocos traz referências variadas de dança, com músicas pop e alguns clássicos, todas facilmente reconhecíveis pelo público.
Mesmo nas primeiras cenas, quando técnicas tradicionais de dança, como o Ballet, são o foco da cena, rapidamente o público reconhece que está prestes a acompanhar um acontecimento cênico em que a técnica rígida não é o foco, mas, antes, como cada corporalidade expressa essa técnica a partir de seu repertório, de sua estrutura física, de seu desejo por dançar.
O passo pré-definido abre espaço para uma espontaneidade próxima daquela que sentimos quando ao ouvir uma batida de uma música, temos o interesse de mover nosso corpo pelo espaço. A diferença é que isso é feito em coletivo, e em frente a outras pessoas que observam. Aqui há um fato peculiar da obra de Bel, pela articulação da estrutura do acontecimento em blocos, com as tarefas que são desempenhadas por cada performer/bailarino(a) em sequência, o coreógrafo consegue manter presente a atmosfera de jogo, de brincadeira, de diversão.
Gala, assim, efetivamente constrói uma noite de apresentações de dança em que todas as pessoas são convidadas a festejar seus próprios modos de expressão. Com a implicação do coletivo, com o clima festivo, com a trama de corporalidades que se apresentam mantendo a espontaneidade de quem abandona o olhar julgador (da avaliação da técnica, da precisão do movimento, da virtuosidade do corpo), Bel convoca o espectador a partilhar dessa festa.
Em um espelho, o palco parece, finalmente, refletir a diversidade muitas vezes presente na plateia, promovendo uma identificação que, mais do que suplantar o julgamento do olhar, nos convida a sensivelmente reconhecer a dimensão de diversão que caracteriza o jogo em cena. De certa forma, em Gala o espectador se sente representado, desenvolve-se a empatia quando a ação em cena se concretiza a partir da premissa de que todos podem dançar, estar em cena, assumindo suas singularidades sem a necessidade de atingir certo padrão específico. A presença de referências conhecidas, tanto nas técnicas de dança quanto nas músicas, também é fator de aproximação.
Nessa trama de corporalidades diversas, Gala partilha com o espectador e a espectadora a potência de frescor e leveza de um movimento que extravasa o molde e se materializa no espaço a partir do repertório cultural de cada performer. Assim, Gala privilegia as diferenças em um clima festivo em que parece não haver espaço para determinações e comparações entre certo e errado, normal e anormal. Contribui para isso a diversidade de corporalidades que integram o espetáculo.
Em meio a essa gama de corpos diversos, a deficiência se coloca como mais uma das pluralidades possíveis, e talvez essa tenha sido uma importante escolha do coreógrafo. Nessa diversidade de corporalidades, de movimentos e de ritmos, em uma estrutura que prima pela continuidade estrutural (uma vez que a ordem dos acontecimentos fica compreendida desde o princípio com o uso de blocos de cenas e tarefas), a diferença perde seu ponto de referência em relação a um suposto padrão.
A malha de corporalidades impõe ao olhar do e da espectadora um novo referencial, dinâmico, fluido, inconstante. A construção social da deficiência em seu sentido capacitista, nesse caso, não é apagada, trata-se de uma imagem, como já falamos, de forte poder simbólico. Porém, a obra opera um deslocamento de referenciais prévios pelo ajuste imediato das percepções dos e das espectadoras. Assim, é possível reconhecer que a malha de corporalidades diversas sobre o palco contribui para a abstração da deficiência. Isso não significa que a pessoa com deficiência tem suas características apagadas ou escondidas, mas que a ausência fixada pelo viés capacitista perde espaço e não se torna o fator central na leitura feita pelo espectador.
Colocando diferentes estruturas corporais em cena, em um núcleo híbrido formado por pessoas com e sem deficiência, a interação é um modo de destacar as trajetórias dos movimentos, por meio de repertórios culturais e sociais, informando sobre as identidades fluidas e sobre as representações prévias que guiam nosso olhar.
Ou seja, na interação é possível que o espectador se conecte com o como se faz a dança, com o itinerário do movimento de cada corpo, percebendo que cada artista tem seu modo específico de estar em cena, dançando cada qual a sua maneira, revelando a diversidade inerente a qualquer agrupamento de pessoas em uma afirmação radical da diferença. Opera-se assim uma transgressão no olhar, não mais o destaque à falta, antes o destaque à potência.
Destacando as construções sociais da deficiência, e trazendo Gala como um exemplo de trabalho cênico em que uma trama de corporalidades diversas promove um alargamento em relação aos referenciais de eficiência/deficiência a que temos acesso cotidianamente, buscamos aqui fomentar a reflexão sobre a diversidade corporal e a possibilidade de transgressão das percepções capacitistas. A cena é local privilegiado para estimular uma revisão de padrões e posicionamentos que pode revelar outros modos possíveis de convivência em sociedade, mais acessíveis e mais respeitosos, deslocando o que damos como certo e nos provocando a uma ampliação de nossas noções sobre corpos ideais, corpos possíveis e corpos reais, por meio de relações mais sensíveis.
Talvez o distanciamento social que atravessamos, com a imposição de novos modos de relação na tentativa de evitar contaminações por COVID 19, nos provoque a reconhecer que vivemos habitando espaços de partilha e que é na partilha que podemos aprender sobre o outro com o outro.
Referências
BEL, Jérôme. Gala – Présentation de Jérôme Bel au Festival Transamériques. TheatreContemporain.net. 2016. Disponível AQUI. Acesso em 27 fev. 2021.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 3 ed. [Tradução de Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
Notas de Rodapé
[1] Trechos do texto disponíveis AQUI. Imagens disponíveis AQUI. Acesso em 24 fev. 2021.