O piso nosso de todas as danças | Entrevista – Alexandre Américo
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Imagem – Carol Pires
Bípede sem Pelo celebra dez anos do projeto do artista e pesquisador da dança contemporânea potiguar Alexandre Américo. A montagem, com direção de Pedro Vítor, nasceu a partir das inquietações do artista sobre a natureza da morte e o desejo de repensar a concepção do ser humano como ser cultural. Nesta busca, o espetáculo se lança nas manifestações encontradas nos sambas de nossas terras para buscar nossa capacidade de estarmos conectados ao piso do planeta. A estreia em São Paulo acontece no Sesc Avenida Paulista, no dia 7 de junho e segue em cartaz até 30 do mesmo mês, de sexta à domingo. Confira a programação completa abaixo.
Américo deu início à montagem em 2021, fabulando um ser que se compreende parte dos mistérios das coisas que são o mundo, na tentativa de não separar natureza e cultura, passado e futuro, céu e terra, dança e técnica, carne e espírito, arte e política, vida e morte. “Fazem parte do escopo de referências deste trabalho as imagens dos orixás Omolu e Iansã com suas palhas-da-costa e seus ventos, o culto aos Egun-eguns na Bahia, a dança dos orixás, estátuas de bronze encontradas no Egito Antigo, o Manto do Bispo do Rosário, a figura do Cronos devorando o filho, bem como do Atlas suspendendo a Terra, fotografias de pessoas em transe feitas por Pierre Verger e sonoridades advindas do Oriente”, adianta Alexandre Américo sobre a base da cena desta montagem.
Em Bípede sem Pelo, a direção do artista multimídia Pedro Vítor, contribui ético-político-esteticamente por pensar a dança desde sua experiência no cinema e na política, a partir de uma percepção sensível e singular devido a sua condição neurodivergente do Transtorno do Espectro Autista. Artista PCD – TEA – trouxe, além da conformação dos conceitos e a rota do trabalho, um olhar do audiovisual, que faz parte de sua formação, e, nesse sentido, contribuiu com essa dança que é produção de imagem e que tem muita semelhança com a produção do cinema. Também traz as experiências pessoais de sua própria vida, para contribuir com essa perspectiva de direção dramatúrgica.
Para saber mais sobre o processo de criação, o artista e pesquisador Alexandre Américo conversa com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Alexandre, como surgiu a ideia inicial para o espetáculo “Bípede sem Pelo” e qual foi a inspiração principal para abordar suas principais temáticas?
“Há muitos caminhos para o Orixá”, esta fala foi proferida há cerca de dois anos pelo Baba responsável por minha iniciação no Candomblé. Esta frase me ajuda a compreender a fonte de minha inspiração primeira: a aproximação intuitiva, lenta e silenciosa às práticas ancestrais que regem minha ancestralidade preta. Quero dizer, após anos de pesquisa acerca da elaboração da morte nas sociedades ocidentalizadas e como podemos retratá-la no campo da dança, esta peça começa a ganhar corpo, sendo ela a segunda parte desse meu projeto poético-político-estético acerta do Tempo e a Morte, onde o Cinzas ao Solo (2016) é a primeira.
Você menciona várias referências culturais e históricas no espetáculo, como os orixás Omolu e Iansã, estátuas de bronze do Egito Antigo e o Manto do Bispo do Rosário. Como essas referências influenciam a narrativa e a estética da montagem?
Nós somos um corpo biológico e cultural, simultaneamente, assim compreendemos que vamos nos constituindo na medida em que trocamos com nossos entornos. Com o passar do tempo, o processo criativo foi tomando forma, fomos sendo orientados por uma ética afrocentrada, assim, as escolhas foram se assentando quase que inconscientemente, por uma lógica macumbada que a própria peça passou a convocar.
Aqui, as referências são mixadas na medida em que encarnam imagens em dança através das materialidades, dos gestos e dos fundamentos misteriosos que compõem a mítica de meu candomblé. Omolú se faz presente nas palhas e cheiros, Iansã nos ventos e nas tranças, a luz ressoa o brilho encontrado nas estátuas de bronze do Antigo Egito, enquanto o Bispo do Rosário nos ensina a tecer seu manto, que, em cena, é manipulado em torções e giros.
Pode nos contar mais sobre como sua experiência com epilepsia mioclônica juvenil e TDAH influenciou sua pesquisa de movimento e a criação do espetáculo?
Por ser eu, um corpo neurodivergente, fui me interessando por modos atípicos de se fazer em dança. Encontrei na Improvisação as chaves para permanecer em cena, pois quando exposto a coreografias rigidamente fechadas, convulsiono. Desde 2012 investigo um modo de ser/estar advindo das convulsões mioclônicas que são desencadeadas por minha condição divergente e este jeito de dançar vem orientando todas as minhas criações como algum tipo de assinatura mutável e orgânica.
Como foi a colaboração com Pedro Vítor, considerando sua experiência no cinema e na política, e como a condição neurodivergente dele impactou a direção de “Bípede sem Pelo”?
Há cerca de dois anos, Pedro Vitor adentra minha vida e passamos a trabalhar juntos. Por vir do campo do cinema, ele atua como um Outro capaz de organizar as estruturas imagético-narrativas desde fora da peça, o que o desenha como diretor. Gostamos de pensar que esta peça tem algo de um fazer cinema de improvisação. Pedro possui mais de 10 anos de atuação no campo da militância política com uma prática profunda na análise de discursos, o que, aplicado na narrativa em dança, parece se transmutar em perguntas capazes de assegurar a coesão e coerência do que se está sendo proposto, como um tipo de dramaturgista.
Sua condição neurodivergente, alinhada ao seu senso de justiça, o coloca à disposição da construção de um mundo comum fazendo-o operar, constantemente, com o interesse de dar a ver as “existências mínimas”, parafraseando David Lappoujade, ou a realidade de vidas oprimidas. Ser um diretor e dramaturgista PCD com Transtorno do Espectro Autista, direciona a peça para um campo sensível e minimalista no que tange os estímulos visuais, sonoros e cinéticos, a fim de proporcionar maior conforto perceptivo para com a audiência.
Em “Bípede sem Pelo”, você enfatiza a importância das danças tradicionais brasileiras e da conexão com o chão. Como essas danças influenciam sua prática artística e a estrutura do espetáculo?
Sou um artista caiçara e brincante, que aprendeu a dançar com os mestres e encantados, dos litorais no nordeste brasileiro. Logo, os sambas e suas giras orientam todo o construto técnico-estético do corpo e da peça, propriamente dita. Atualizar, no corpo, as boas tradições, como diz Sidarta Ribeiro, é o Sul que me leva ao encontro encantado do axé que anima o piso nosso de todas as danças.