Crítica – Cartas para Alemanha | Cartas para Si
Imagem – Priscilla Melo
Por Janaína Gomes
Mestra em Artes Cênicas (UFRN) e Atriz e Bailarina (CARNE e Coletivo Cênico Tenda Vermelha)
– Esse peso que eu carrego, não é só meu, ele é nosso.
O cineteatro Bianor Mendonça, recém-inaugurado pela prefeitura de Camaragibe, abriu as portas para a realização de uma das etapas do Palco Preto, festival realizado pelo CARNE – Coletivo de Arte Negra. No dia 29 de outubro de 2017, apresentaram-se Perlla Ranyelle com sua performance Carne Negra, Klarissa Faye e Mario Miranda com Suco de pregos e, por fim, a artista Elze Maria Barroso com Cartas para Alemanha.
O evento tem como princípio norteador divulgar, conhecer e promover artistas negrxs e suas produções e se tornou uma das maiores plataformas de produções independentes realizadas substancialmente por artistas negrxs em Recife. Em sua primeira edição, realizada em 2016 na antiga sede da Casa do Cachorro Preto (Olinda- PE), o Palco Preto serviu de base para diversas questões e discussões levantadas ao longo desse percurso de apenas um ano, reflexões essas que apontam o evento como sendo o primeiro em Recife destinado aos artistas negrxs.
Tivemos na edição anterior (2016), 20 artistas compondo a programação (dança, teatro, artes visuais e colaboradores), além de um público com mais de 300 pessoas. Grande parte das apresentações foram as dos próprios integrantes do coletivo que, de uma maneira independente, realizaram o que seria o embrião do que estamos vendo hoje.
– Esse peso que eu carrego, não é só meu, ele é nosso.
Este é o segundo ano do festival, nesta segunda edição, as atividades se estenderam por 21 dias entre exposições de artistas visuais, atividades formativas e parcerias com espaço público e organizações não governamentais que convergem com nosso pensamento/prática. Tudo isso preparado e idealizado por Iagor Peres, um dos integrantes do CARNE. A divulgação das inscrições nos trouxe uma surpresa, vários artistas de diversas localidades se inscreveram. Elze Maria Barroso foi uma das artistas inscritas e selecionadas
– Esse peso que eu carrego, não é só meu, ele é nosso.
O festival Palco Preto em sua segunda edição mostra a partir dos números o quanto se faz necessário e urgente essa instauração gritada das margens e periferias.
Cartas para Alemanha ou um mapa para si mesma?
Da parte externa do teatro, a equipe do espetáculo Cartas para Alemanha nos dava não só as boas vindas, como também as instruções para apreciação da peça. Aos poucos, foram distribuídas vendas e eu, prontamente, peguei uma delas. Portanto, falo inicialmente do lugar de não vidente.
Aos poucos, a produção vai dando espaço para que Elze seja, de fato, a protagonista de sua própria história. O espetáculo nasceu da vontade da atriz-performer transformar um fato autobiográfico em dramaturgia e tem como mote o término de um relacionamento amoroso com um alemão. De início, percebemos o cuidado com que Elze estrategicamente compartilha sua história “despertando os sentidos” dos espectadores, aguçando-os a partir de estímulos sensoriais. Sua escolha por uma trama pautada no campo do sensório surge a partir de seus estudos como aluna pesquisadora no projeto de Artes como Educação Inclusiva. Tendo Lygia Clark como referência, a atriz distribui sacos e baldes cheios de água para a plateia.
De repente, estamos todos carregando sacos de água e aqueles que estão sem as vendas ainda têm a tarefa de conduzir os que, nesse momento, ainda não veem. Essa espera para adentrar no teatro se torna um lugar de escuta atenta e cuidadosa para consigo e com outro, um estado de zelo.
Repetidas vezes, Elze fala ‘Esse peso que eu carrego não é só meu, ele é nosso’, nos convidando repetidamente a pensar sobre esse peso metafórica e fisicamente carregado por nós, mulheres negras.
De repente, estamos participando de uma comunhão silenciosa, a comunhão de uma história real alinhavada pelas dinâmicas de uma artista que sabe exatamente o que quer de seu público. Sabe inclusive o que vai provocar no imaginário dos que ali estão. Elze narra com riqueza de detalhes sua história e nos provoca um vislumbre do lugar, das cores e da temperatura da água que a toca: tudo é camada que se desvenda para nos levar a uma determinada data e lugar do Rio de Janeiro.
No percurso de sua narrativa, pediu para que as águas fossem derramadas e aquele barulho de água escorrendo me fez abandonar a venda que me privava da possibilidade de enxergar a Elze. Estava linda, com um vestido quase transparente de cor rosa salmão, um sapatinho preto, cabelos curtos, volumosos e soltos numa confiança inabalável.
A artista nos conduz para dentro do teatro carregando dois baldes cheios de água, narrando sobre sua dificuldade de enxergar devido aos 8 graus de miopia e repetindo mais uma vez a frase: – Esse peso que eu carrego, ele não é só meu, ele é nosso!
Reflito que aqui, nesse contexto, não enxergar é metáfora.
Dentro de Casa
Uma data. Um fato e a imagem que é gerada a partir dessa narrativa pessoal vão dando o tônus para adentrarmos nos cômodos da casa de Elze. Ela nos convida a tirar os sapatos e acompanhá-la para uma experiência não só sensorial, mas do devir mulher, do imaginário. A casa de Elze é o coração, ela traça um mapa que nos conduz a todo enredo de sua história, que, por ser particular, torna-se universal. Quem nunca doeu de amor?
Um mapa que começa organizado, mas que, com o desenrolar da peça, traduz exatamente o caos que essas cartas trocadas entre Brasil e Alemanha provocaram na “casa coração” da artista. Não existe uma ordem cronológica, ao contrário, a desordem cronológica dos acontecimentos vai delineando a dramaturgia que ora é conduzida para dentro da “casa coração” de Elze, ora para lugares outros que ela passou com seu amado. Fomos a uma padaria, viajamos para Veneza, para Paris e para o Rio de Janeiro.
Me permitir provar das sensações e sentimentos da trajetória dessas “recordações-referências” de Elze me levou ao livro Experiências de vida e formação da Marie Christine Josso[1], que tece reflexões e conexões sobre o método autobiográfico, sobre a dinâmica de contar para si e para outros sua história de vida:
O que está em jogo nesse conhecimento de si não é somente compreender como nos formamos e nos transformamos, ao longo de nossa vida, mediante um conjunto de fatos vividos e transformados em experiências, mas também tomar consciência de que esse reconhecimento de nós mesmos como sujeitos encarnados, mais ou menos ativos, ou passivos, segundo as circunstâncias, permite, doravante, visualizar nosso itinerário de vida, nossos investimentos e nossos objetivos, com base numa auto- orientação possível, numa invenção de si, a qual articula mais conscientemente nossas heranças, nossas experiências formadoras, nossas pertenças, nossas valorizações, nossos desejos e nosso imaginário, às oportunidades socioculturais que saberemos apreender, criar e explorar, para que advenha um si que aprende a identificar e a combinar obrigações e margens de liberdade. (JOSSO, 2010, p.65).
As manias de um casal apaixonado, os apelidos, os presentes, os restaurantes, o vinho, os signos, os ascendentes, as músicas, o jogo do bicho, o telefone que toca, o telefone que não toca, o começo, o meio e o fim: tudo estava ali como um banquete para nós, toda uma história autobiográfica sentida e acolhida por uma plateia atenta aos mínimos detalhes. Um ato de despir-se em sua própria casa para seus convidados.
As discussões raciais tocam no ponto do que a atriz chama de ‘síndrome do vira lata’, que, segundo ela, se dá quando uma mulher negra se apaixona por um homem branco. Em alguns momentos, a artista relata a sensação de ser uma brasileira negra que namora um alemão, suas tensões e fricções com relação aos olhares atravessados, a hipersexualização de seu corpo por ser a negra que namora um “estrangeiro”. Sobre esse aspecto, o livro Pele negra máscaras brancas Frantz Fanon[2] dedica um capítulo às mulheres negras. Com o título A mulher de cor e o branco, Fanon reflete sobre as demandas das relações interraciais, principalmente no âmbito psicológico e social da mulher negra. No início do capítulo lança a cartada:
Neste capítulo, dedicado às relações entre a mulher de cor e o europeu, trata-se de determinar em que medida o amor autêntico permanecerá impossível enquanto não eliminarmos este sentimento de inferioridade, ou esta exaltação adleriana, esta supercompensação, que parecem ser o indicativo da Weltanschauung negra (FANON, 2008, p.54)
Fanon discorre sobre a obra autobiográfica Je suis Martiniquaise da autora Mayotte Capécia fazendo uma investigação profunda sobre o posicionamento social e psicológico dessa mulher como exemplo de um mal que não tem fim. Reflete Fanon:
Porque enfim, quando lemos no romance autobiográfico Je suis Martiniquaise — ‘Gostaria de ter me casado, mas com um branco. Só que uma mulher de cor nunca é realmente respeitável aos olhos de um branco. Mesmo se ele a ama. Eu sabia disso’ — temos o direito de ficar preocupados (FANON, 2008, p. 54)
Percebo que a sutileza do trabalho da Elze, seu cuidado com o sentir e a preocupação em aguçar os sentidos do público transcendem as questões raciais. Antes de qualquer pensamento crítico sobre o racismo, a obra está muito mais voltada para um outro aspecto. De como a plateia está receptiva sensorialmente a partir dessa linha do tempo desordenada traçada pela atriz. De como as sensações irão atravessar os espectadores a partir da proposta cênica.
No entanto, esse aguçamento dos sentidos com um tempo começa a ficar previsível e de certa forma acaba por causar um certo cansaço no olhar. Me perguntava várias vezes durante a apreciação do espetáculo ‘E agora o que preciso fazer?’ ou ‘E agora o que preciso dizer?’ ou ‘O que preciso cantar?’. Acredito que essa seja a principal problemática da obra: o ‘querer fazer sentir’ a todo momento.
Mas Elze não deixa a peteca cair: sua energia é segura, firme, forte e reluzente. Não posso deixar de falar sobre os problemas técnicos enfrentados pelos artistas que se apresentaram neste dia no Palco Preto. Esse fator, inclusive, poderia ter prejudicado bastante Cartas para Alemanha, que alinhavava marcações e momentos de muita delicadeza. Mas Elze brincava, dançava com sua própria história. Estava dentro de sua “casa coração” e lá ela tinha a liberdade de fazer o que bem entendesse. Em sua morada, ela mostrou toda sua fragilidade e fortaleza e, mesmo com todos os problemas técnicos, víamos uma descontração relaxada e comunicativa com sua equipe e com Jorge Kildery, integrante do coletivo CARNE, que, na ocasião, operava a luz.
Cartas para Alemanha é um mapa esclarecedor/escurecedor de como, para o homem, é mais fácil abandonar, deixa ir, largar, não mais sentir e não mais voltar. À medida que eu escutava a história da Elze e seus sacrifícios para se manter perto do seu amado, me perguntava: O que ele estava fazendo para encontrá-la? O que esse homem fazia para ver e estar mais perto de Elze? ‘O quê? Principalmente sendo ele um homem branco e europeu, o que os fazem manter, deixar aceso, nutrir?
Cartas para Alemanha é um espetáculo que fala do amor, da paixão avassaladora de uma mulher que faz de tudo porque acredita que pode ser feliz ao lado do outro, mesmo sendo esse outro um estrangeiro.
Cartas para Alemanha é um mapeamento que Elze faz de si mesma, um mapeamento da dor e do compartilhamento dessa dor para nós, que visitamos sua “casa coração”.
Porque esse peso que ela carrega não é só dela, é nosso. Você sabe, nós, mulheres negras, sabemos. Porque é tudo nosso, nada deles, inclusive as dores.
Reconhecimento
A assistência de direção é de Franco Fonseca, o espetáculo foi encenado pela primeira vez em Natal como espetáculo final de disciplina de encenação com ênfase em performance no curso de Teatro da UFRN em novembro de 2016 e despertou fortes impressões quando encenado em setembro passado no Festival O Mundo Inteiro é Um Palco, obtendo elogios e críticas positivas. Elze Maria, foi indicada a melhor atriz e melhor peça no Troféu Cultura 2017, um dos prêmios que contemplam o teatro na capital potiguar.
Referências
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: UFBA, 2008.
JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. Natal: UFRN, 2010.
Notas de Rodapé
[1] Socióloga e antropóloga. Professora da Universidade de Genebra em ciências da educação.
[2] Psiquiatra, filósofo e ensaísta da Martinica, de ascendência francesa e africana. Fortemente envolvido na luta pela independência da Argélia, foi também um influente pensador do século XX sobre os temas da descolonização e da psicopatologia da colonização.