#06 Festas e Rituais | ‘Frevendo’ memórias de festa e corpos políticos
Imagem – Ju Brainer | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Hoje, no carnaval de Recife, essa máquina de shows joga o dinheiro na estrutura de palco e em artistas de grande circulação e forma um ciclo de empobrecimento de grupos tradicionais de frevo e maracatu, drenando a energia das pessoas que, realmente, fazem nosso carnaval’. Com essa dura constatação, nosso dossiê Festas e Rituais continua com um papo com Valéria Vicente (UFPB), dançarina, passista e coreógrafa pernambucana que, atualmente, trabalha como Professora do Departamento de Artes Cênicas (UFPB) enquanto realiza seu Doutorado em Artes Cênicas (UFBA).
Além disso, ela possui mestrado em Artes Cênicas (UFBA) e Graduação em Comunicação Social – Jornalismo (UFPE). Como pesquisadora, integra a equipe de coordenação do Acervo RecorDança e se dedica ao estudo do Frevo, mantendo interface com os Estudos Culturais e pós-coloniais, atuando principalmente nos seguintes temas: dança, história da dança, ensino da dança, frevo, videodança, espetáculos, representações urbanas, maracatu, culturas populares, frevo, comunicação e maracatu rural.
Confere a entrevista dela com nosso editor-chefe, Márcio Andrade.
Como começou tua relação com a dança (e com o frevo, especificamente)?
Para te responder, preciso aludir um contexto: eu me criei em Olinda (não na cidade alta) e a maioria dos meus parentes morava em Bairro Novo, que é um bairro muito próximo a situações, grupos e tradições ligadas ao carnaval. Então, minha relação com a dança acontece de forma muito orgânica, ligada à cultura da minha cidade, tanto na escola, nas aulas de dança, jazz e ginástica rítmica, quanto na academia com aeróbica e nos períodos das festas, com as danças das festas. Então, do carnaval, vem minha relação com o frevo, com o maracatu e os afoxés e, do São João, com o coco, a ciranda e o forró.
Na minha adolescência, comecei a ter contato com a possibilidade de se profissionalizar e entender mais profundamente como essas danças eram desenvolvidas ao longo de todo o ano. Havia um movimento muito grande em torno do Maracatu Nação Pernambuco que, junto com a chegada do Olodum e das danças afro-baianas, tiveram um impacto no meu entendimento de identidade e visibilidade para outros tipos de dança e música. Lembro-me que, na rádio, ouvia muitas músicas estrangeiras e, quando começaram a tocar músicas brasileiras para dançar, fez muita diferença para mim.
Na adolescência, pude entrar em contato diretamente com grupos de maracatu e afoxé, além de conhecer o trabalho do Balé Popular do Recife, de onde os integrantes do Nação Pernambuco haviam saído. Então, a forma como eu cheguei à dança foi um processo de perceber, aos poucos, que aqueles elementos usados por mim de forma lúdica poderiam ter outros aspectos sociais. Esses elementos poderiam me ajudar a me compreender historicamente, contribuindo para um fortalecimento da minha subjetividade a partir do reconhecimento das heranças indígenas e heranças negras de uma forma positiva.
Esse universo me tomou de tal forma que foi ficando impossível não assumi-lo como parte da minha profissão. Na metade da minha graduação em jornalismo, entendi que essa minha bagagem e todo o prazer e a vontade de trabalhar era com dança – e a dança contemporânea foi o caminho para essa profissionalização. Foi essa trajetória que me levou a ter um olhar diferenciado para a dança. Um ponto de vista que reconhece nos elementos lúdicos, rituais, festivos e coletivos uma qualidade que afeta o corpo e a vida, que pode ter diversos significados pouco explorados, que pode ser reconectada às relações que, por vezes, perdemos.
Esse caminho foi o contato com a dança contemporânea e outras artes performáticas, como o teatro, a música, o movimento mangue-beat, que fez parte da minha adolescência. Então, quando eu comecei a ter acesso a uma compreensão de corpo que é repleto de camadas de significação para entender o mundo, pude dar atenção a um trabalho de treinamento corporal, de sensibilização com as técnicas somáticas.
Esse caminho fez com que eu me religasse ao frevo de forma diferente, passando a estudar o frevo como uma forma de acesso à minha própria história e a discutir sobre o contexto, as nossas escolhas sociais, culturais, políticas etc., tornando-se meu foco de pesquisa desde 2005.
Como foi o processo de se tornar artista e pesquisadora interessada na memória da dança (e do frevo)?
Aqui em Recife, a gente não tinha uma graduação em dança. Então, minha formação de artista foi na prática: na escola do Balé Popular, na Escola Municipal de Frevo, a escola do Grupo Experimental, o Maracatu Estrela Brilhante etc..; e, depois, comecei a participar de grupos de dança e a produzir espetáculos. E, assim, a gente vai aprendendo. Contudo, esse tipo de formação termina nos deixando várias lacunas e deficiências com relação ao conhecimento ofertado.
Então, fui aliando minha formação em jornalismo e as influências pessoais de ser filha de um historiador e elaborando reflexões sobre passado, presente e futuro à minha própria maneira. Eu me interessava sempre em saber mais, entender os contextos, os ‘porquês’ de certas práticas etc.. Depois, fui entendendo que essa formação pessoal estava impossibilitada por falta de uma memória cultural, de acervos, de institutos, de pesquisas sobre a dança. Passei a ter esse desejo de acessar a memória dos grupos e artistas e, assim, surgiu a ideia de criar o acervo Recordança.
Esse projeto de pesquisa partiu dos registros que os artistas e grupos tinham de suas próprias histórias para criar um acervo em que todas as pessoas pudessem pensar sobre essas relações políticas e estéticas, os contextos da dança, as transformações das práticas e a relação das transformações entre dança e sociedade. Isso aconteceu de forma muito orgânica para mim, em que a minha própria vontade de atuar artisticamente de forma responsável e ampliando as minhas potências aliou-se à necessidade de pesquisar, estudar e agrupar pessoas para irmos desdobrando novas pesquisas e dar continuidade ao próprio acervo Recordança.
Esse processo ajudou na minha própria formação, também: fiz mestrado e, agora, estou fazendo doutorado. Tudo isso faz parte dessa compreensão em que o trabalho do artista se faz numa conexão de diversos tipos de conhecimento.
Qual relação você percebe entre a história do frevo, festividades populares como Carnaval, por exemplo, e os rituais religiosos em Pernambuco?
As religiões são parte da cultura, funcionando como uma das respostas humanas ao desejo de conhecimento. A arte e as ciências também são outras formas de respostas a esse desejo de conhecer e expandir o limite da existência, da cognição e de saber o ‘como’, o ‘porquê’ e o ‘para quê’ de se estar vivo. Durante alguns séculos, a religião era a principal forma de dar sentido a existência e compreensão do mundo. As danças tradicionais têm essa memória, desse tempo, e elas evoluíram trazendo todas essas temporalidades.
Muitas danças que estão no carnaval são experiências e desdobramentos do sagrado: o maracatu, por exemplo, consiste em uma forma de expressão social de uma comunidade – a nação de candomblé. Então, ele leva para as ruas alguns dos elementos que acontecem nas giras (danças do candomblé) ou transformações de um batuque ancestral. Os caboclinhos têm seu fundo de existência na realização de promessas e demandas do mundo espiritual.
Mesmo que cada grupo tenha suas próprias variáveis, como as religiosidades estão muito relacionadas às tradições do carnaval, o próprio cortejo segue estruturas de procissões que aconteciam na mudança da Idade Média para a Idade Moderna. Ou seja, a religião faz parte do carnaval e, nele, cria-se um espaço para celebrar ou dar outra materialidade para essa ancestralidade e essas religiões.
No caso do frevo, temos que perceber que os frevos são vários: temos o frevo de bloco, que vem de uma tradição ligada ao pastoril e às famílias de classe média no contexto mais religioso. Nesse contexto, os clubes de frevo são ligados a corporações de ofício que podem ter a ver, ou não, com as manifestações religiosas.
Em outros contextos, temos o passista, que segue outro caminho: formado por indivíduos que vêm de uma classe social mais pobre e saem para brincar com a dança frevo, mas não necessariamente está ligado à sua tradição religiosa. Muitos desses passistas trazem no corpo habilidades físicas e corporalidades a partir de uma relação com a capoeira, trazendo elementos da cultura africana para o contexto brasileiro de necessidade de luta, de sobrevivência.
Então, mesmo sendo raramente lembrado como uma dança afro-brasileira, o frevo faz parte da história do negro e do mestiço no século XX e possui outros padrões de organização em comparação com outras danças afro-brasileiras mais conhecidas.
Pensando mais na tua trajetória na universidade, como você vem trabalhando as investigações sobre frevo no doutorado e como você percebe as contribuições do ensino de frevo para a formação do corpo do artista (seja bailarino, ator etc.)?
Eu entrei na UFPB em 2008, logo depois de ter concluído o mestrado, que foi sobre a presença do frevo em espetáculos de dança no Recife na década de 80. Meu interesse era estudar como cada coreógrafo oferecia uma abordagem diferente do frevo e discutir as relações entre cultura popular e uma ideia de nacionalismo que, muitas vezes, termina sendo levada de forma engessada e estereotipada.
Quando eu entrei na universidade, me deparei com outra demanda: a formação. Então, minhas perguntas principais eram ‘Como se forma um artista?’, ‘O que é indispensável ensinar?’ e ‘O que é ensinável dentro da nossa área?’ – o que se torna ainda mais complexo pensando em uma estrutura sedimentada e compartimentada como a que temos na universidade. Lá, ministrei disciplinas como Danças Tradicionais e Danças Populares e, pensando nas aulas, vi que poderia contribuir mais falando sobre frevo.
Pensando em modos de usar o frevo em sala de aula, percebi que eu não tinha muitas ferramentas sobre a prática de ensino do frevo, dando-me conta das deficiências e incompletudes dos métodos pelos quais fui formada. A partir disso, resolvi pesquisar as demandas físicas do frevo com um fisioterapeuta e as possibilidades pedagógicas com base na didática, o que foi muito importante para mim como artista.
O que percebemos é que a dança, em geral, oferece muita qualidade e informação para qualquer tipo de performer e o frevo tem uma dimensão de produção de energia rápida e acentuada. Então, ela favorece essa compreensão de como a circulação de energia através do movimento potencializa a presença e amplia as possibilidades de escolha e criação do ator ou dançarino. Minha atuação tem procurado desdobrar essas qualidades que o frevo pode ter, mas nunca desvinculando do contexto em que o próprio frevo acontece. Quando valorizamos a prática do passista, esse sair para brincar e essa colocação do corpo na rua, entendemos as relações que se formam na brincadeira e valorizamos esse conhecimento construído de outra forma – diferente da acadêmica, da livresca e, até mesmo, de estúdio.
Diante de estudos do teatro sobre produção energética, antropologia teatral e a importância que um corpo performático tem na construção dramatúrgica, focalizei muito esse uso instrumental das danças populares para a construção de um corpo dilatado, de uma atenção expandida e uma ampliação de sua sensibilidade e projeção.
Claro que esse uso instrumental termina sendo um pouco redutor, já que essas tradições e danças são, cada uma, uma arte em si: possuem técnica, conceituações, envolvem elementos energéticos, espirituais, comportamentais, visuais, sensoriais… Então, cada uma delas são um complexo em si. Não é à toa que muitas pessoas se dedicam a uma dança só e passam toda sua vida aprofundando o seu aprendizado.
A minha pesquisa com frevo nesses doze anos tem se dedicado a desdobrar as diversas camadas de conhecimento que ultrapassam esse lado da potência para a presença cênica. Desdobrar essas camadas revela conteúdos significativos que nos tiram, muitas vezes, de um lugar colonial de pensamento sobre arte e cena e que, muitas vezes, não é percebido pela sociedade em geral e pelos artistas em particular. Acho que precisaríamos pensar a preparação de corpo numa compreensão de corpo mais atualizada, não apenas como uma estrutura física, mas com tudo que o sustenta.
Essas danças populares e tradicionais, por terem como linha de formação que escapa ao dualismo cartesiano, são tradições que bebem muito de uma cosmologia africana e indígena, das formas de interlocução entre as diferentes culturas que formam o Brasil. Então a compreensão que elas trazem é muito mais complexa e interessante, a meu ver, para o artista do que o que normalmente se vê. Acho que a gente como artista pode ter uma experiência mais ampla e, quando nos permitimos, vemos que vários elementos dessas tradições estão em profundo diálogo com coisas que a arte sustenta na contemporaneidade – como a criação estética como experiência e a não representação.
A forma como um brincador de cavalo marinho coloca a figura é muito além da ideia de representação, é uma presentificação que borra totalmente a distinção entre a figura e o figureiro. Vários conteúdos energéticos vibracionais que a repetição traz e que estão fora de uma dinâmica musical valorizada na cultura moderna ocidental. Então, expandir a compreensão de corpo para trabalhar com essas tradições, inclusive o frevo, é uma chave bem interessante para descolonizar o pensamento, desde que você queira, realmente, encontrar formas alternativas de pensar e construir artisticamente.
O frevo, recentemente, completou mais de cem anos. Quais as perspectivas que você vê nas políticas públicas como forma de desenvolvimento como patrimônio, memória e sustentabilidade dos artistas, por exemplo?
Perspectiva é diferente de desejo, né? Falando do ponto de vista de perspectiva, em relação às políticas públicas, eu não vejo nenhuma. Eu vi o Prêmio das Culturas Populares e, dentro dele, não havia uma linha ou um critério de pontuação para tradições que fossem registradas como patrimônio imaterial. O que aconteceu é que entre todos os projetos do Brasil, nenhum projeto de frevo foi aprovado. Isso é só um exemplo, dentre vários, de como o registro de patrimônio não se reflete numa valorização real na construção de uma política pública para aquele bem que foi qualificado como um patrimônio nacional e, no caso do frevo, internacional.
Não vejo no governo federal nenhuma indicação de ações que tenham apontamentos de construção de mercado ou construção de política que favoreçam os grupos tradicionais. Esses grupos escapam completamente da estrutura burocrática que a organização estatal está engajada e cada vez mais exigente. Exigem-se termos de comprovação de cachê, por exemplo, que são obrigatórios para comprovar que eles recebem cachês de diferentes instituições, mas são coisas que fogem à realidade dos grupos que, por serem locais, recebem cachês do governo ou da prefeitura de sua própria cidade.
Então, temos interdições burocráticas para que se cheguem recursos para as tradições populares e, também, para os artistas mais alternativos. Nesse sentido, estamos no mesmo cenário de desamparo do ponto de vista de políticas públicas para que haja uma movimentação de recursos nessas áreas que, para mim, são fundamentais para o desenvolvimento da cultura. Do ponto de vista do frevo, a perspectiva é que os fazedores, as pessoas que amam o frevo vão continuar, pois como dizia Mestre Salustiano “a gente teima”. A gente teima em continuar fazendo porque é significativo para a gente e, por ser significativo, vamos construindo alternativas enquanto podemos.
Infelizmente, no ponto de vista de políticas públicas não vejo uma perspectiva de transformação ainda. O nosso problema é a falta de imaginação política dos nossos gestores. A formação acadêmica na área de gestão e administração ou a formação empírica são muito limitadas ao pensamento de organização e mercado que não comporta a forma como a cultura brasileira tem se organizado ao longo de sua trajetória. Então, falta muita imaginação política e, principalmente, um contato direto com os fazedores. Porque a maior parte do que as políticas públicas podem fazer se mostra muito simples e barato em comparação aos custos astronômicos dos grandes obras e eventos, mas não são aplicadas porque fogem à estrutura do próprio marketing político.
Eles não conseguem ver as vantagens em se investir na cultura propriamente dita e preferem criar monumentos faraônicos para fingir que estão trabalhando. Falta imaginação política ampliada e a criação de soluções para o que a gente realmente valoriza na cultura. Hoje, temos um problema no carnaval de Recife e Pernambuco: seguir o caminho dessa máquina de shows que jogam o dinheiro na estrutura de palco e em cachê de artistas de grande circulação, ao invés de termos um crescimento dos grupos tradicionais. A gente os encontra em grandes dificuldades financeiras e esvaziando cada vez mais nosso carnaval.
Forma-se um ciclo de empobrecimento, em que o investimento no lugar errado vai drenando a energia do que realmente faz as pessoas virem para o carnaval de Pernambuco.