O estado mais vulnerável | Entrevista – Aline Bourseau
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Imagem – Divulgação
Até 30 de junho, o Teatro Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, recebe a temporada do espetáculo Improvisações Selvagens, de autoria e direção de Aline Bourseau, com sessões nos domingos, às 17h. Trata-se de um espetáculo de improvisação teatral long form, onde parte-se da premissa que, em algum momento, rompe-se a linha que separa o humano do racional e passa o limite desse civilizado. O elenco reune, além da própria Aline, os atores e atrizes Gil Guigon, Lucas Rocha, Mônica Marli, Sérgio Eng e Tâmara Sender em um espetáculo que aborda a desconstrução de padrões de comportamentos.
Para saber mais sobre os processos de criação, a atriz e diretora Aline Bourseau conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Antes de tudo, poderia falar um pouco sobre seu encontro com a improvisação e como foi se dando a formação desse grupo?
Bom, sou atriz formada desde 1999. Antes do teatro, minha primeira formação foi com dança. Contextualizo isso porque a “improvisação” faz parte do processo criativo, e essa palavra sempre me acompanhou. Mas foi em 2001, em uma viagem à Argentina, que conheci a improvisação como linguagem artística em um espetáculo de teatro esporte.
Encantei-me e, desde 2001, estudo, pesquiso e trabalho com improvisação em suas três vertentes: como metodologia de processos criativos e desenvolvimento cognitivo, como linguagem e gênero de teatro, e como técnica de criação. Fui sócia e diretora da Cia de Teatro Contemporâneo durante 20 anos. Dentro da CTC, desenvolvi projetos específicos de improvisação, como é o caso do Festival Carioca de Improvisação, realizado anualmente há 18 anos. Pude inserir a improvisação como matéria no currículo de formação da escola.
Desde 2004, venho participando como atriz, diretora, improvisadora e ministrando oficinas em diversos festivais internacionais na Argentina, Chile, Peru e Chicago. Participei como convidada do simpósio ATHE (Associação de Teatro no Ensino Superior), sediado em Nova Iorque e Canadá, na edição de 2021, com o tema: a improvisação feminina e o que foi revolucionário no formato Impro em Feminino Brasil.
Dessa forma, pude estudar e trabalhar com grandes mestres da improvisação mundial, como Amy Roeder (Second City – EUA), Omar Galván (Espanha), Bobbi Block (Tongue & Groove – EUA), Sergio Paris (Ketó – Peru), Jorge Rueda (ImproMadrid – Espanha), Frank Totino (LooseMoose – Canadá), Kevin Mullaney (Second City), Laura Hall (De Quem é a Linha, Afinal?), Susan Messing (Second City), Rachel Mason (Second City), Shaw Kinley (Loose Moose – Canadá), José Luis Saldaña (México).
Em 2017, tive um período maior no Canadá e fui aluna do mestre Keith Johnstone em Calgary (Canadá). Este foi um dos momentos mais importantes para mim nessa área. Acredito que a improvisação faz parte da construção da minha subjetividade como pessoa e como artista.
Quais foram as inspirações iniciais para criar o espetáculo “Improvisações Selvagens”?
Improvisações Selvagens é um espetáculo de improvisação teatral long form, em que partimos da premissa de que, em algum momento, rompemos a linha que nos separa do racional, do controlado, e passamos o limite do civilizado, do socialmente adequado e dos códigos sociais de bom comportamento. Às vezes, o nosso “selvagem” escapole.
Então, é um espetáculo que traz à tona esse transbordamento — em algum momento, extrapolamos e cruzamos a fronteira do educado e controlado, e nos mostramos imperfeitos, exibindo um lugar vulnerável, mas também intenso e sensível. Dessa forma, vamos nos desconstruindo e, muitas vezes, nos sentimos exaustos e até destruídos.
Ao mesmo tempo, o espetáculo nos permite experimentar esse lugar da vulnerabilidade de forma intensa, e isso é o que nos conecta. Porque a demanda pela perfeição é muito manipuladora e, de repente, nos vemos reféns disso. Muitas vezes, essa perfeição nem nos pertence. Não somos perfeitos, a perfeição é artificial, um lugar inatingível, de insegurança, e também muito chato, que não permite erros. E por isso ela nos distancia uns dos outros. O que nos conecta é o estado mais vulnerável.
No ano passado, a vontade de experimentar esse lugar intenso e absurdo, muitas vezes fora do padrão, desproporcional, caótico, às vezes bárbaro, através de uma emoção extrema, fez muito sentido para mim.
Então, convidei pessoas com quem amo trabalhar, amigas e grandes improvisadoras. Mas, principalmente, pessoas que se gostam, que gostam de improvisar juntas — afinal, sempre é uma escolha afetiva —, e formamos um elenco muito conectado, intenso, cuidadoso e disponível para a investigação que se anunciava. Ainda não tínhamos o conceito, mas tínhamos as premissas. Acho que começou daí, das premissas, que levaram ao conceito e só depois à estrutura.
Bom, se alguém já fez um link com o filme argentino Relatos Selvagens, acertou, porque o ponto inicial de inspiração foi esse filme. Assim que o vi, há muito tempo, já que o filme é de 2014, senti algo que me fez conectar com a improvisação, no sentido de dinâmica de cena, onde as coisas começam pequenas e triviais, mas o problema vai aparecendo e crescendo, tomando um rumo absurdo e chegando a proporções gigantescas e inimagináveis — isso eu achei inspirador.
Você pode nos contar um pouco mais sobre o processo criativo junto com os outros integrantes e como ele evoluiu ao longo do tempo?
Quando começamos a trabalhar cenas a partir das premissas, encontramos os desafios e as descobertas de um novo tipo de improvisação:
Primeiro, essa coisa de que em algum momento dentro da cena identificamos o gatilho ou disparador e apostamos nele, deixando que ele cresça sem perder força. Então, a partir de um ponto, não há pausas, não recuamos mais. Isso foi um desafio e exigiu bastante prática. Desenvolver um tipo de improvisação que nunca tínhamos experimentado antes, onde em algum momento, na cena dramática, não há mais altos e baixos. Nesse momento, a gente sobe uma montanha e vai. Não recuamos, só crescemos. E isso foi aprendido e desenvolvido nesse projeto.
Outra coisa foi acessarmos os lugares mais sensíveis, ou ainda mais estranhos, tolhidos, reprimidos, ou não tão sexy, engraçados ou magníficos, como, por exemplo, uma perversão, um tesão, ou uma profunda tristeza. Fomos curiosos no processo de ensaio, porque algumas emoções não foram fáceis de identificar ou acessar, já que sempre foram tolhidas ou educadamente reprimidas; somos educados a controlar nossa raiva, nossa tristeza, nossos excessos — esses são lugares não desejados na vida, lugares a serem escondidos e nunca mostrados.
A partir daí, o conceito foi aparecendo; no auge da intensidade, a gente foi se encontrando meio acabado, exausto, frágil, exposto, e também descabelado, com a roupa amassada ou rasgada, a maquiagem borrada, etc. Então, essa ideia de desconstrução começou a ficar mais forte. Desistimos de ser sempre bonitos e sensuais, e nos apresentamos meio destruídos… e assim compreendemos que essa era a nossa estética. E todos nós cada vez mais envolvidos com esse processo de desenvolvimento do formato. Todos muito empenhados e disponíveis. E só por isso o Improvisações Selvagens aconteceu!
Quando foi a hora de estruturarmos o espetáculo, vimos a necessidade de termos uma cena de fechamento após a cena clímax. Então, a título de desafio, escolhi fazer a cena A seguida da cena B de cada história. Isso foi também desafiador, porque na cena A já chegamos ao ápice, e há uma transição que carinhosamente apelidamos de “freak” e logo vem a cena B como um complemento da história daquela cena. Podendo ser um desfecho ou um flashback.
Outra coisa desafiadora é que falamos de uma irracionalidade, mas ao mesmo tempo trabalhamos essa irracionalidade, pensamos racionalmente sobre esse lugar que escapole ao controle da razão. É um paradoxo. Mais uma coisa que acho muito importante nesse caminho de descoberta é o caos, que é uma possibilidade incrível e potente. Começamos a entender o caos como estética e como linguagem e, assim, aprendemos a improvisar nele, com uma capacidade incrivelmente potente de escuta e cumplicidade. Enfim, abraçamos e aproveitamos o caos, ou o caos já não nos assusta.
Assim que encontramos essa linguagem e essa estética, tudo ficou muito inspirador e a música e a luz acompanharam. Temos uma trilha própria que é maravilhosa, e até música que só a plateia escuta durante a cena, não os atores em cena, ou seja, o ambiente também vai sendo criado junto na hora, assim como as luzes.
A ideia de ‘selvageria’ transparece nos diálogos em torno do espetáculo. Como você vê o diálogo do espetáculo com as demandas pela perfeição na sociedade?
Puxa, essa pergunta é difícil de responder, mas extremamente interessante e desafiadora. Num primeiro momento, está tudo ali: podemos falar coisas intensas, absurdas e cruéis, é exatamente a barreira do razoável que rompemos. Podemos ser imperfeitos e perversos. Mas não sabemos como o “selvagem” se manifestará em uma determinada cena.
Ou seja, às vezes conta mais a situação do que o texto. A demanda pela perfeição é muito manipuladora e, de repente, nos vemos reféns disso. O que acontece é que, muitas vezes, essa perfeição nem nos pertence. Não somos perfeitos, a perfeição é artificial, um lugar inatingível, de insegurança, e também muito chato, que não permite erros.
E por isso ela nos distancia uns dos outros. O que nos conecta é o estado mais vulnerável. É justamente aí, nesse “perder a linha”, que o espetáculo conecta todo mundo, tanto o público quanto o elenco e isso é lindo e revigorante.
De que forma a ideia de ‘perder a linha’ contribui para a conexão entre o elenco e o público durante as apresentações?
O espetáculo, apesar de selvagem, é muito cuidadoso, somos muito cuidadosos uns com os outros no sentido de sabermos aonde podemos ir com cada um de nós e o que cada um de nós quer. Isso nos permite uma conexão muito especial e uma cumplicidade gigante!
Mas entre o elenco e o público, acho que somos muito acolhidos! Acho que nos expomos no lado B e as vezes é o que todos nós queremos, essa chance de ser o lado B, e aí tem um mistura de sentimentos, como admiração, libertação, mas também, pena, compaixão… Enfim, acho que nos conectamos pela entrega, intensidade e vulnerabilidade.