Uma obra aberta | Entrevista – Cia Dos à Deux
Ouça essa notícia
|
Imagem – João Maria
Os artistas André Curti e Artur Luanda Ribeiro criaram a Cia Dos à Deux há pouco mais de 25 anos, na França, com uma linguagem única que une dança, teatro, circo, artes cênicas e mímica. Enquanto você voava, eu criava raízes, trabalho mais recente da dupla, traz essa combinação na forma de criar e conquistou prêmios na APTR e Shell, foi indicada em categorias na Cesgranrio e APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, além de participar de uma turnê de bem-sucedida pela França, no Festival de Avignon, e na programação da Bienal de Artes Némo 2023. Depois de receber mais de 8 mil espectadores somente este ano, a peça prorroga temporada no Teatro Vivo até 28 de julho de 2024.
André e Artur mantêm hoje a sede do grupo no Rio de Janeiro, com grande reconhecimento e trânsito internacional e nacional, e assinam a dramaturgia, cenografia, coreografia, encenação e performance da montagem. Essa linguagem, elaborada a partir de temas de seus espetáculos e com bastante precisão técnica, lança o público na magia do teatro.
Para falar mais sobre o processo de criação, o artista Artur Luanda Ribeiro conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Ao longo de seus 25 anos de trajetória, como a Cia Dos à Deux desenvolveu e refinou essa linguagem que combina dança, teatro, circo, artes cênicas e mímica?
Os universos que desenvolvemos ao longo desses 25 anos, entre teatro, dança, artes plásticas e cinema, foram trabalhos que fomos criando aos poucos. A cada criação, trabalhamos com matérias-primas. Inicialmente, começamos com a manipulação de objetos em um palco praticamente nu, desenvolvendo objetos simbólicos que ajudavam a contar a história e que se metamorfoseavam, trazendo realmente vários universos dentro do universo.
Essa foi a premissa dos dois primeiros trabalhos, em que desenvolvemos um universo com um objeto único que se multiplicava em vários universos. Em seguida, começamos a introduzir as artes plásticas em “Saudade em Terras d’Água”, onde temos um mar de dois mil sacos plásticos que tecemos junto com uma cenografia mutável. Ali, iniciou-se uma nova fase na companhia, onde começamos a trabalhar intensamente com a plasticidade do espetáculo baseada na dramaturgia. A dramaturgia é sempre o nosso guia, certo?
A partir dela, começamos a desenvolver os materiais que queríamos acrescentar, como os bonecos, que foram surgindo aos poucos em cada criação, desde “Saudade”, de forma que eles faziam parte da dramaturgia. Até chegarmos em “Gritos”, onde realmente houve uma grande inovação: entramos nas artes plásticas com uma instalação de nove colchões de molas, esculpindo o espaço inteiro e com bonecos fragmentados acoplados ao nosso corpo.
Em “Enquanto Você Voava”, o cinema surge como uma nova camada de dramaturgia, onde nos propusemos a trabalhar a costura dentro dessa dramaturgia. Não é um elemento meramente ilustrativo, mas sim algo que conta a história junto com a plasticidade, a cenografia e todos os elementos físicos nossos, dentro das múltiplas dramaturgias que desenvolvemos.
Qual foi o processo criativo por trás do espetáculo “Enquanto você voava, eu criava raízes”? Como surgiu a ideia e quais foram os principais desafios em abordar temas profundos como o inconsciente coletivo, medo e reconciliação?
O processo de “Enquanto Você Voava” durou dois anos, pois ocorreu durante a pandemia. Desenvolvemos uma cenografia orgânica, montada quase como um quebra-cabeça, com peças que foram chegando aos poucos. Era como se estivéssemos gradualmente revelando algo desconhecido, até mesmo para nós, durante o processo. A cenografia, com sua plasticidade, foi um guia muito forte, conduzindo o espetáculo. Este foi o primeiro trabalho em que decidimos não ter uma narração linear e não contar uma história precisa sobre uma pessoa ou personagens. Queríamos trabalhar com sombras, duplos e o inconsciente. A tela e a superposição de corpos foram guias importantes.
A projeção trouxe um lado tridimensional à pesquisa, composta de várias camadas ao longo de dois anos. Pesquisamos e elaboramos intensamente o espetáculo, dedicando muitas horas para editar e extrair o que acreditávamos ser o supra-sumo da mensagem que queríamos comunicar. Queríamos alcançar o inconsciente e permitir várias camadas de interpretação, deixando ao espectador a liberdade de criar sua dramaturgia de acordo com sua vivência e background. Isso era muito importante para nós, especialmente após a pandemia, pois desejávamos criar uma obra aberta que pudesse tocar o público sensorialmente em várias camadas — sonoras, visuais e emocionais. Esse trabalho foi uma nova virada para nós em nosso percurso de 25 anos.
Como a colaboração com Miguel Vassy e Laura Fragoso nas projeções e Federico Puppi na música contribuiu para a criação do universo mágico do espetáculo?
Ao longo desses dois anos, nos aproximamos muito de Miguel Vassi, um diretor de fotografia de cinema, que veio acompanhar o projeto. Pesquisamos e filmamos partes de corpos se duplicando, num trabalho profundo com ele. Trabalhamos a iluminação dos corpos e exploramos como trazer dramaturgias cinematográficas para este trabalho. Foi um material extenso de pesquisa até encontrarmos Laura Fragoso, uma artista plástica que trabalha com mapping. Ela nos deu suporte para montar tudo dentro de um mapping, permitindo-nos começar a costurar as dramaturgias entre imagem e corpo. O encontro com Miguel e Laura foi essencial para a chegada do cinema ao projeto, e essas colaborações continuarão, pois são artistas que apreciamos muito e que nos abriram novas portas.
Puppi é um capítulo à parte. Ele chegou praticamente no final da criação, quando o espetáculo já estava praticamente construído em seu esqueleto. Sua chegada foi de extrema importância, pois com ele conseguimos trazer a dramaturgia e direção musical, a cereja do bolo dos nossos espetáculos visuais. A troca com ele foi crucial para definir o tom de cada cena, os instrumentos a serem usados e tecer uma cama musical ininterrupta ao longo do espetáculo, criando uma osmose entre imagem e música. Esta foi nossa primeira colaboração com Pupi, e foi um encontro mágico. Ele conseguiu entender todos os arquétipos e linguagens que queríamos passar em cada cena, trazendo um universo sonoro riquíssimo e requintado. Pupi é um multiartista, e essa nova parceria foi fundamental para trazer cores, universos e inspirações novas. Foi muito enriquecedor, como artista, encontrar novas pessoas que nos dão faíscas, o que é crucial em um trabalho contínuo.
No palco, o corpo termina apresentando um protagonismo mais evidente do que a palavra. Como foi o desafio de comunicar temas através da fisicalidade e da performance visual?
Nossos espetáculos ao longo desses 25, ou mesmo 26 anos, não utilizam a palavra como apoio de dramaturgia. Essa pesquisa nos fez justamente ser uma referência no teatro visual, pois sempre tivemos o caminho de comunicar histórias de maneira simbólica e metafórica. Criamos epopeias como “Saudades de Terras d’Água”, “Fragmentos do Desejo” e “Irmãos de Sangue”, que eram sagas familiares formando uma trilogia sobre a família, sem texto, apenas com simbolismos.
Nossos espetáculos seguiam uma narração linear, com início, meio e fim, e personagens definidos. Contávamos histórias sem palavras, sem pantomima, sem ilustração, focando nos maiores conflitos da dramaturgia, os conflitos de cada personagem consigo mesmo e entre eles. Na encenação, amarrávamos esses conflitos com elementos cênicos, cenários mutáveis e iluminação. Eu, sendo o iluminador dos espetáculos, sempre trouxe essa ilusão de esconder e revelar. Nosso método de contar histórias era baseado no corpo em cena como o principal veículo de comunicação, em sua essência mais pura, que é corpo e ação, dentro de uma estrutura plástica. Isso resulta em uma obra aberta, como é o caso de “Enquanto Você Voava”.
O espetáculo realizou apresentações na França e também no Brasil. Nesse cenário, quais vêm sendo as maiores semelhanças e diferenças na recepção dos públicos do espetáculo?
Temos um percurso internacional muito importante com os espetáculos, mas foi significativo que realizamos muito mais apresentações de “Enquanto Você Voava” no Brasil do que na Europa. O espetáculo está ainda engatinhando para uma difusão internacional, mesmo depois de mais de 150 apresentações já realizadas.
O encontro com a plateia francesa foi, primeiramente, muito afetivo, pois eles nos seguem há muitos anos. Temos um público fiel que acompanha nosso trabalho e que ficou extremamente surpreso e emocionado com a virada estética e dramatúrgica que demos. A recepção foi muito calorosa tanto no Festival de Avignon quanto em Paris, com um espetáculo que tocou profundamente as pessoas pela sua estética e pelo seu caráter sensorial. É um espetáculo extremamente emocional.
Estamos percebendo, por enquanto, que a suspensão perceptiva da plateia, aquele silêncio e apneia que são lindos, se mantêm em cada lugar onde nos apresentamos. Não sentimos uma diferença; percebemos uma vibração, uma atenção e uma sensação de comunhão com a plateia em cena. “Enquanto Você Voava” é um espetáculo extremamente voltado para o inconsciente. Aqueles que se deixam levar embarcam nessa jornada metafísica e simbólica.