Crítica – O Encontro da Tempestade e a Guerra | Entre o Sagrado e o Acrobático

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Imagem – Divulgação
Por Camille Benedita Rossiter Sá Oliveira e Edna Paula Oliveira Andrade
Em meio à força musical e à leveza dos corpos, O Encontro da Tempestade e a Guerra convida o público a refletir sobre a presença dos orixás na natureza e sobre nossa própria conexão com ela.
Apresentado no dia 25 de outubro de 2025, a convite do 28° Festival de Dança do Recife, no Teatro Apolo, o espetáculo traça um recorte na cultura afro, buscando, por meio do circo e dos arquétipos dos orixás, promover uma interação harmoniosa com a natureza. A pesquisa parte do entendimento de que cada orixá está presente nela e de que, ao nos conectarmos com eles, podemos reconhecer nossa própria natureza — não apenas pensando em preservá-la, mas em estabelecer uma relação saudável com ela.
Coreografado por Alex Batista, que também assina a produção e a direção, o espetáculo tem duração aproximada de 40 minutos e inicia com a entrada de Rob Silva em cena, segurando um bastão de madeira, vestes e turbante azuis, ao som da música “Festa Pra Ogum”, do grupo Bongar. Seus movimentos são fortes e precisos, remetendo a ações de caça, e demonstra grande controle muscular e rítmico. A outra intérprete em cena é Hammai Assis, que entra vestida com uma pele de búfala, manifestando atenção e sutileza em seus movimentos.
Toda a apresentação estabelece um diálogo poético com os movimentos característicos do circo, ao incorporar o trampolim, as argolas e o tecido acrobático. No entanto, para além de uma simples exibição de técnica, esses elementos são atravessados pelas forças e energias dos orixás.
Uma das grandes dificuldades que permeiam o fazer artístico é a falta de recursos, e, para o Circo Experimental Negro, não foi diferente. Inicialmente, os artistas investiram recursos próprios, redirecionando verba de outros trabalhos para a pesquisa do espetáculo apresentado no 28º Festival de Dança do Recife. Foi por meio da Lei Paulo Gustavo, em 2013, que conseguiram financiamento para montá-lo. A visão dos artistas é bastante grandiosa, com muitos elementos cênicos que exigem montagem e transporte específicos, o que dificulta a adequação aos espaços cênicos e o pagamento dos custos que a estrutura requer.
De acordo com Rob e Hammai, o foco do grupo é levar o elemento estético da negritude aos palcos e também às escolas, a fim de atender à Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira em todas as escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio no Brasil. Por meio de suas apresentações, o Circo Experimental Negro promove o letramento racial e pratica o ativismo cultural, buscando manter seu trabalho vivo.
O espetáculo O Encontro da Tempestade e a Guerra cumpre o objetivo dos artistas ao apresentar — ou reforçar, para aqueles que já conhecem — o conhecimento ancestral e indispensável dos orixás. As músicas selecionadas, a iluminação, a caracterização (figurino, maquiagem e objetos cênicos) e, principalmente, a movimentação e interpretação dos artistas trabalham em conjunto de forma extremamente eficaz para a construção e identificação dos personagens ao longo da obra.
A performance é dividida em cenas que alternam entre os dois personagens e tem como base uma mistura harmoniosa entre a linguagem circense e a dança. Nos momentos dançados, os movimentos são ora guiados pela letra, ora pelo ritmo predominante da música, ora por instrumentos específicos. Esses aspectos são amplamente explorados durante a encenação.
É interessante ressaltar a conexão dos figurinos com a obra. É Rob quem nos explica que quando entra em cena com o turbante azul, o figurino faz parte de um projeto de pesquisa inspirado nos tuaregues — os “homens azuis do deserto”. Por serem islâmicos, eles não vestem nem utilizam ouro, apenas prata, e Ogum também é associado ao uso de aço, prata e ferro. Além disso, o uso de objetos como o facão, as espadas e a haste surge como um elemento de ligação simbólica.
É também Rob quem nos relata que existe um itan de Ogum no qual ele declara a um povo que, uma vez por ano, na exata data em que partiu, a população deveria fazer um voto de silêncio e permanecer sem comer. Um dia, ao retornar da guerra justamente nessa data — sem recordar da ordem que ele próprio havia dado —, Ogum, tomado pela ira, ataca as pessoas, até que uma delas, desesperada, o lembra do voto. Envergonhado pelo seu comportamento, Ogum reconhece o erro e decide nunca mais usar a espada, fincando-a no chão, que se abre; então, ele se encanta. Esse momento é reproduzido no espetáculo para retratar a importância dos ensinamentos que essas histórias carregam.
Os orixás trazem, nos itans, que são as narrativas místicas a eles associadas, tanto aquilo que precisamos cultivar quanto o que devemos evitar. A energia da guerra é importante no sentido de nos impulsionar a lutar pelos nossos direitos, mas não deve se sobrepor à justiça, ao bom senso e ao afeto — caso contrário, acabamos cometendo erros.
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Rob Silva iniciou sua trajetória na ginástica artística, permanecendo na modalidade até 1989. Em 1981, deu início à sua jornada na dança, nas modalidades neoclássica e balé clássico. Estreou no circo em Londrina, utilizando o aparelho argolas, assim como o faz no aqui referido espetáculo. Posteriormente, morou em São Paulo por oito anos e, durante esse período, teve contato com a dança contemporânea. Retornou, então, a Londrina e formou uma trupe com Sérgio Oliveira, a partir da qual desenvolveu a Associação Londrinense de Circo, a Escola de Circo de Londrina, entre outras conquistas e realizações. Anos depois, a dupla se associa a Hammai Assis e, juntos, criam o Circo Experimental Negro.
Hammai Assis iniciou sua trajetória nas artes por meio da música, na Escola Municipal de Arte João Pernambuco, em Recife. Posteriormente, migrou para o teatro, participando de diversas oficinas e apresentações voltadas especialmente ao público infantil. Mais tarde, ingressou nas artes circenses, tornando-se artista, educadora e formadora de educadores por meio de oficinas do Cirque du Soleil. Integrou a Rede Circo Mundo Brasil, principal referência de Circo Social no país, onde atuou como socioeducadora.
Durante a pandemia, Hammai percebeu uma falha na Rede Circo Mundo Brasil: havia muitas pessoas brancas dando aulas para pessoas negras da periferia. Diante disso, propôs a criação de um núcleo de afrocentricidade, com o objetivo de desenvolver pedagogias antirracistas na rede pública de ensino. Juntos, Sérgio Oliveira, então presidente da Rede, Hammai Assis e Rob Silva, dão início ao desenvolvimento do projeto. Durante dois anos, no período da pandemia, realizam diversas ações, como rodas de conversa, formações e apresentações on-line.
Ao fim da pandemia, o trio dá continuidade aos trabalhos com a craição do Circo Experimental Negro, que permanece ativo até hoje e fortalece o protagonismo negro na cena circense pernambucana.












