Crítica – O TEMPO DAS LEBRES | o tempo é cíclico, o cansaço permanente: o tempo não-horário das lebres e do bicho gente

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Imagem – Anderson Stevens
Por Dandara de Morais
“Merece um tiro quem inventou a bala” – Miró da Muribeca. É com essa frase, responsabilizando inventores e invenções que regulam e violentam nosso modo de sobrevivência, que resolvo iniciar essa dança para, no caminho, complexificar uma discussão já deveras antiga que atravessa a sociedade, seus povos e acontecimentos cíclicos: o tal do tempo. O relógio não dita o tempo, ele dita as horas que são utilizadas como medida para controle do que não pode ser controlado: o tempo natural de todos os seres, animados e inanimados, existentes no planeta terra.
Uma invenção egípcia, o primeiro registro de um relógio é datado no Egito antigo, mais precisamente em 1500 a.C., quando aqueles povos que ergueram pirâmides sem a ultra-tecnologia existente nos dias atuais, usavam a luz solar como guia para suas atividades cotidianas. Não existiam horas, existia movimento, observação e resolução, resultando num saber ancestral, uma ciência aplicada em modos de sobrevivência que passa a ser substituída, com o passar dos anos, dos séculos e do milênio, por necessidades impostas socialmente. E é exatamente isso que assistimos na sexta feira 25 de outubro de 2025, a luta contra o tempo, as horas e o controle de corpos distintos, no novo espetáculo O TEMPO DAS LEBRES, da Cia. Etc, em comemoração aos 25 anos da companhia, que integra dança, audiovisual, performance e arte sonora em mais um trabalho instigante e questionador. Na direção e em cena Marcelo Sena e Filipe Marcena encenando danças, gestos e imagens que brincam com a mente do telespectador num jogo cênico repleto de estímulos visuais e sonoros incessantes.
Seguindo o embalo do espetáculo, trago aqui palavras do próprio Marcelo, que, ao final da apresentação agradece toda a equipe e traz a informação de que o espetáculo foi baseado no livro O Tempo Das Lebres: ensaio sobre um rebento contemporâneo do filósofo José Antônio Feitosa Apolinário, tio de Filipe, natural de Triunfo, cidade que foi a segunda parada da turnê de estreia do espetáculo que ocupou um dos estúdios da TV universitária – TVU, em Recife. O livro foi lançado durante a pandemia em PDF disponível AQUI , quando diversas pessoas foram acometidas por sintomas psíquicos como ansiedade, depressão e o famoso burnout, em que o corpo não aguenta mais a exaustão de correr contra o tempo horário para produzir e ganhar dinheiro. A ideia do espetáculo surgiu em 2019, enquanto Marcelo lia o livro e, automaticamente, se viu dançando de motoqueiro, essa criatura que insiste em lutar contra o tempo em sua máquina veloz e extremamente letal, o que me faz lembrar a máxima “apressado come cru”, dito popular que critica o afobamento na realização das tarefas.
Um telão presente durante todo espetáculo dá o start, exibe toda a ficha técnica da obra e apresenta a palavra FIM – KRAJ, TAPITRA… – repetidamente em diversos idiomas, introduzindo lentamente o conceito de tempo invertido e a crítica à aceleração proposta no espetáculo. A escolha do espaço não é por acaso, contando com elementos clássicos de um SET de filmagem na cenografia como o objeto multiuso chamado carinhosamente por 3T (três tabelas, um caixote de madeira vazado estrategicamente para permitir o manuseio), diversos tripés com luzes vermelhas e verdes que também são personagens, formando inúmeros caminhos entrecruzados de fios cobertos por fitas listradas que gritam “cuidado, aqui seu tempo tropeça e pode cair”, refletores, telão, projetor…diversas parafernalhas que nos jogam para um SET de filmagem, e quem não ama o cinema?
Talvez seus fazedores, pois o audiovisual é a linguagem artística mais cara de se re-produzir, e também a mais desgastante e adoecedora, com uma jornada de trabalho de 12h num esquema 6/1. Cansaços, exaustões, ansiedades, crises… doenças essas que foram enfrentadas durante o processo criativo e foram reconfiguradas, servindo como matéria prima para a criação do espetáculo. Um exemplo é a fase burnout, cena em que Filipe dança trazendo exclusivamente para o corpo, movimentos que lembram um colapso, enquanto o foco de luz apontado diretamente para ele vai diminuindo de tamanho, lembrando e reforçando a ideia de que não há mais tempo para nada.
Para que O Tempo Das Lebres seja fidedigno ao estresse que é produzir arte no Brasil, uma figura muito pontual entra e sai de cena representando um AD, assistente de direção, pessoa responsável por acelerar o processo criativo num set de filmagem, que bem sabemos, não pode ser medido no tempo hora inventado pelo homem. A presença desse ser que corporifica essa pressa, trazendo um sanduíche e água mineral para serem engolidos em ínfimos três minutos mostrados na contagem regressiva do telão. A trilha sonora em batidas techno lembra que é preciso correr, por mais que outros sons e melodias, como uma ópera em gritos de melodrama, fosse intercalada com as batidas, elas estavam sempre presentes.
Com uma tempestade de referências ao universo pop – desde o figurino remetendo ao Batman e ao grupo de música eletrônica Daft Punk, às poses de super-heróis, dancinhas de TikTok e um fim digno do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick – todas as referências me pareceram ser pensadas minuciosamente para causar desconforto em quem assiste, tecendo um fio de informações que bailam num tempo que corre e dilata e, inclusive, é manifestado em imagens, como a escolha de trazer o timecode no telão, código de tempo digital precioso de sincronização de elementos como som, imagem e efeitos visuais, essencial para o andar da carruagem sem colocá-la na frente dos bois.
Ambos dançarinos/diretores (geração Millenial e geração X) alongadíssimos e ativos, provando que nunca é tarde para a arte, o etarismo não tá com nada, basta conhecer seus próprios limites e potenciais, e investir tempo justamente onde se sabe que a batalha está ganha. Mas, o tempo imprime marcas no nosso corpo, e pude analisar a mesma movimentação sendo executada por ambos os bailarinos, de diferentes formas, um corpo levemente mais acelerado, frenético, e menos aterrado que o outro. É impossível ganhar do tempo! Até no corpo ele se imprime. Como o burnout, a luta de um corpo cansado, que não possui mais forças para ficar em pé, e mesmo assim insiste. Até colapsar.
Nas religiões de matriz africana, uma árvore é associada ao tempo. O orixá Iroko é representado por uma gameleira no Brasil, e quem melhor para falar de tempo do que uma árvore? Que faça chuva, faça sol, resiste ao tempo e suas ações. E resistir aos estímulos da única cena durante todo espetáculo que dilata e suspende o tempo: o ato sexual. Numa crítica às relações que andam cada vez mais superficiais, o casal simula um ato sexual vagaroso, sexy e gostoso, ritualizando momentos em que ainda nos damos o direito de interagir com quem está na nossa frente, e não dentro de uma tela a kms de distância.
O tempo é cíclico, o cansaço permanente. As horas foram inventadas para controlar o tempo, domesticá-lo. Mas, há tempo para tudo. Só não tem jeito para a morte. Tempo não se perde, se ganha lá na frente. O que acontece com quem não acompanha o ritmo ditado pela sociedade como certo? O Tempo das Lebres denuncia em corpo, imagem, som e luzes a luta interminável contra as horas, e não o tempo Iroko.
“sei que nem tudo tá certo, mas com calma se ajeita”
desabafo/deixa eu dizer – Marcelo D2
Iroko (do yorubá Íròkò) é um orixá do candomblé Ketu. No Brasil, é associado à árvore conhecida como gameleira. Corresponde ao vodum Loko no candomblé Jeje e ao Nkisi Tempo no candomblé bantu, Em todas as reuniões dos Orixás está sempre presente Iroko, calado num canto, anotando todas as decisões que implicam directamente na sua ação eterna. É um Orixá pouco conhecido dos seres vivos ou mortos, nascidos ou por nascer. Toda a criação está nos seus desígnios. É o Orixá Iroko, implacável e inexorável, que governa o Tempo e o Espaço, que acompanha, e cobra, o cumprimento do Karma
de cada um de nós, determinando o início e o fim de tudo.
S A U D A Ç Ã O: Iroko Issó! Eeró! Iroko Kissilé
(Salve grande Iroko! O Senhor de todas as árvores!)
ÈRÓ = CALMA em Yorubá
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