Acredite no Mistério | Entrevista – Aline Marosa
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Imagem – Daniel Barboza
O espetáculo infantojuvenil As Belas Coisas da Vida nos leva aos verões em São Pedro do Mar, onde o jovem Dom Miguel passa férias com o tio Tatí. Juntos, eles compartilham momentos de carinho e brincadeiras, construindo um laço afetivo profundo. Escrita por Aline Marosa e dirigida por Marcio Nascimento, que também atua, a peça destaca a beleza das pequenas coisas e o valor das relações humanas.
Ao longo da trama, o menino e o tio mantêm contato por cartas, enquanto a gaivota Clarim faz a entrega das correspondências. Com o passar dos anos, Dom Miguel descobre que o tio está perdendo a memória, o que o motiva a guardar suas lembranças mais preciosas. Nessa jornada, ele explora o universo das memórias e do tempo, compreendendo a importância de preservar o afeto.
Em entrevista à Quarta Parede, Aline Marosa fala sobre a peça, a pesquisa sobre Alzheimer e as inspirações que guiaram sua dramaturgia.
Como foi o processo de pesquisa sobre Alzheimer para a elaboração da dramaturgia?
A base da pesquisa foi a ciência. Pesquisei documentários, entrevistas e podcasts de diversos médicos e pesquisadores sobre a formação da memória no cérebro, o armazenamento de informações nos neurônios e os transtornos desse processo, ocasionados pelo Alzheimer. Também assisti a documentários e conversei com familiares que convivem com essa questão, para entender o que mantém os laços de afeto quando as memórias escapam. E, realmente, a resposta é sempre o amor.
Existem elementos autobiográficos ou referências pessoais na peça que você incorporou à dramaturgia?
Sim. Minha mãe faleceu em abril de 2023. O medo de encarar uma nova forma de amá-la — eu aqui e ela na eternidade — me ajudou a compreender o medo da perda que Dom Miguel, o protagonista, sente ao perceber que as memórias de seu tio estão escapando. Assim, a transmutação e a renovação do amor para outra forma de existência foram meus guias nessa escrita.
O castelo de areia é uma metáfora para esse corpo físico ou memória que escapa, mas cuja essência permanece. O mistério que envolve a vida, a morte, a perda e a renovação também se transformou em um integrante da obra. Tive que reaprender a confiar no mistério, que se encarna na cena — tanto em palavras quanto em personagem.
Qual foi o maior desafio desta criação, considerando o público infantil?
Adaptar o Alzheimer para uma linguagem lúdica. Encontrar metáforas e símbolos sobre a renovação das possibilidades de vida. Explicar como se forma e como se perde uma memória, além de descobrir outras formas de conexão para além da memória.
A música parece desempenhar um papel crucial na peça. Como você integrou a música ao texto e à narrativa?
Acredito que a música chega quando a emoção ultrapassa qualquer fronteira e se derrama em nós. Ela vem quando é inevitável, quando só ela poderia existir. Digo isso como instrumentista que sente quando a música quer chegar e até mesmo invadir. Nesses momentos, eu simplesmente a deixo fazer o que quiser.
Pode nos falar sobre algum momento ou cena específica da peça que seja particularmente significativa para você?
Sim! A carta do Tio Tatí para seu sobrinho, tentando acalmá-lo sobre o medo da perda de memória entre eles. Essa parte eu escrevi para os adultos — e para mim mesma:
“Vivi muitas aventuras nesse mundo. Algumas imaginárias, outras verdadeiras. Já dormi no deserto, no alto-mar e no topo de uma montanha. Já costurei com a linha do Equador. Já senti o toque das nuvens. Já escrevi livros, li muitos outros. Derrotei dragões de verdade e perdi para moinhos de vento. Passei por coisas que muitos consideram pequenas, mas que considero gigantes: a gentileza, o afeto, o carinho, o perdão, a honestidade. E tudo isso é tão profundo e intenso que minhas memórias iriam querer se espalhar por aí, como sementes ou pedrinhas. Seria impossível guardar tudo comigo. Agradeço sua preocupação, mas pode deixar, vou me cuidar. Mantenha-se aquecido no inverno, meu Dom. O Mistério gosta de calor. Um abraço, Tio Tatí.”
Desejo que todos os adultos possam sentir essa paz em relação às suas escolhas. Não é uma paz de desistência ou resignação, mas uma calma que vem da confiança na obra de si. Acredite no Mistério das Belas Coisas da Vida. Mesmo quando não for possível entender, é possível amar.