Crítica – Á Un Endroit du Début | Corpo, memória e resistência em Germaine Acogny

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Imagem – Thomas Dorn
Por Aline Sofia Ivo e Sofia Barros
A 26 de Outubro de 2025, durante a 28° edição do Festival Internacional de Dança de Recife, o público do Teatro de Santa Isabel, realizou um mergulho na obra coreográfica À Un Endroit du Début (Em um lugar desde o começo – tradução nossa). Através de uma abordagem potente, a dançarina e coreógrafa senegalesa Germaine Acogny, em colaboração com o diretor Mikael Serre, apresentou um espetáculo de dança que traça uma analogia entre a tragédia grega Medeia e sua vivência ancestral africana.
Antes de nos aprofundarmos na obra de Germaine Acogny, é importante reconhecer que cada criação sua está intrinsecamente ligada à sua história e bagagem. Isso explica porque ela é considerada a “mãe da dança africana contemporânea” – expressão citada pela própria artista em seu perfil na rede social. A partir de sua formação artística, acadêmica e educacional, Acogny desenvolveu uma técnica própria que une elementos da dança moderna ocidental. Em suas obras, inclusive na que se analisa neste momento, é possível perceber uma constante abordagem de temas como ancestralidade, identidade africana, espiritualidade e força feminina. Com isso em mente, podemos partir para os elementos visuais e cenográficos que nos foram apresentados.
Ao adentrar no teatro, nos deparamos com o cenário composto por uma espécie de elásticos partidos em tiras no centro do palco que servem para projeções e também para a delimitação de espaço, tornando assim, o ambiente, um cenário incomum, porém bastante instigante e interessante. No início da cena, o tecido recebe a projeção, no canto direito, de um homem uniformizado. Ao direcionarmos nosso olhar para o chão avistamos um livro e uma almofada de tamanhos bem maiores que o normal, além de uma vela acessa.
A performance inicia com a bailarina entrando no palco e apagando a vela. Em seguida, pega em suas mãos o livro, olha por alguns instantes e o devolve para o chão, iniciando movimentações de interação com os demais elementos cenográficos, através de ações circulares com os membros superiores. A presença desses objetos na cena remete a algo muito mais significativo do que apenas coisas espalhadas pelo espaço, eles carregam uma história de algo ou alguém que posteriormente seria esclarecido e entendido como uma representação de seu pai, mãe e avó.
No decorrer do espetáculo, a intérprete realiza uma analogia das palavras proféticas de sua avó, Aloopho, com o sofrimento de Medeia. A bailarina então, dialoga com o pai, mãe e avó por meio de frases, narradas em francês e traduzidas para o portugues por meio de uma projeção localizado no plano alto do palco, porém um destaque a esse fato é que o entendimento completo das cenas foi comprometido em determinadas partes devido ao atraso da transcrição, além de desviar um pouco a concentração do público que precisava olhar acima para ler a legenda.
A partir do nosso olhar, diversas pautas são levantadas durante a performance. A questão de gênero e de abandono parental, que está relacionada a padrões de comportamento do pai refletidos no comportamento da intérprete e a relação de poder que o gênero masculino frequentemente exerce sobre as mulheres.
A performance aborda questões raciais e religiosas ao expor o pai que abandona sua religião em busca de embranquecimento, levando a filha a frequentar a igreja e a passar farinha no rosto para sentir que pertence àquele ambiente. Nesse contexto, destaca-se o diálogo com a avó, que repete “pare de passar farinha no rosto”, enquanto a neta responde “estou ficando bonita para ver Deus”. A obra também traz reflexões sobre imigração e xenofobia, representadas pela bailarina ao vestir uma blusa com as frases “Welcome to Europe” na frente e “Now go home” nas costas. Por fim, o enunciado “A gente sabe onde nasce, mas não sabe onde morre” reforça de forma simbólica e intensa as temáticas apresentadas.
A obra coreográfica promoveu a imersão do público, destacando-se pelo cenário elaborado, pela analogia com a tragédia Medeia e pela presença marcante da ancestralidade de Acogny. A dança revelou profundidade por meio de ações repetitivas que refletiam e enfatizavam vivências da artista e através do diálogo estabelecido virtualmente com das projeções cênicas. Outro ponto relevante é a maestria da intérprete na manutenção da atenção da plateia durante todo o solo, cerca de uma hora, sem torná-lo monótono, evidenciando a força e a grandiosidade de sua performance.











