Crítica – Donos | Os donos são (os) outros – até quando?
Imagem – Divulgação
Por Paulo Ricardo Mendes
Jornalista e Produtor cultural
“Ninguém ouviu, um soluçar de dor, no canto do Brasil// Um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro, foi pro cativeiro, e de lá cantou// Negro entoou, um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou// Fora a luta dos Inconfidentes, pela quebra das correntes, nada adiantou// E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra, quando pode cantar, canta de dor”
Clara Nunes (Canto das Três Raças)
Em meio ao público, os personagens aparecem carregando compassadamente um balde, entoando o cântico negro supracitado, rompendo com o som ambiente de mais um dia de aulas no Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Estudantes e professores logo se aproximam dos atores e atrizes para observar a ação.
O trecho contado fez parte da performance Donos, do Coletivo Contantes da Resistência, que integrou a programação da XII Semana de Cênicas da UFPE. Na conversa que tive com George Swan, estudante da Universidade, integrante do grupo e autor do texto encenado, ele revelou que a apresentação foi construída em abril, nas ruas, junto às manifestações contra o desmonte da educação proposto pelo atual governo brasileiro, durante as apresentações ocorridas nos atos.
Após uma sequência de encenações em diferentes lugares, o coletivo apresentou, no dia 04 de novembro, uma versão na íntegra desse trabalho, que aparenta sempre está se modificando. Na ocasião, todos os performers estavam reunidos, fato que nos outros momentos não aconteceu, segundo Swan. Eles somaram à apresentação, diluído no texto, o poema Os Ninguéns do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Além disso, dois objetos cênicos foram adicionados: um balde, que minutos antes de iniciar a apresentação foi posto sobre um banco na Entrada do CAC.
O balde, a princípio passa despercebido pelos transeuntes: talvez sozinho não seja suficientemente representativo. Será? Ele é coberto por fotos de Marielle Franco, socióloga e política brasileira assassinada em 2018; pela bandeira do Brasil e pelo símbolo fasces, com os dizeres Fascismo e Liberta, que delineia a ideia de poder e foi usado pelo ditador italiano Benito Mussolini, durante seu regime autocrático. O objeto ganha corpo quando é segurado pelos personagens negros. Todos eles carregam o balde como se estivessem segurando algo pesado, um fardo a julgar pela fisionomia dos atores e pela dificuldade deles ao andar. De dentro dele sai uma espécie de lama, que escorre pelas mãos dos personagens.
A partir daí, surgem na performance inúmeros símbolos e objetos a serem observados: balde, lama, chutes, gritos, dor, Marielle e fascismo. Essa aproximação com o real dialoga com as características do teatro performativo, cujos elementos convidam os espectadores a mergulhar na ação. Num dado momento, os atores negros apanham e depois avançam em direção ao público com as mãos cheias de lama, cantando a música Lama, do grupo Mulamba, numa espécie de súplica, após serem humilhados pelos brancos.
É lama, é barro, é doce, é mancha, é sangue, é feto…
Mulamba – Lama
Afinal, “Donos”. Donos do quê? Ou melhor, de quem? E quem são os donos? É certo que o título da performance expressa uma relação de poder, propriedade, aquele que possui algo, que tem posse. Na apresentação, esse poder expresso na forma de autoridade está, a princípio, nas mãos dos brancos, enquanto os corpos pretos são violentados pelos patrões (poderiam ser também padrões). Percebe-se isso quando durante boa parte da apresentação os negros encontram-se abaixados em constante contato com o chão, expressando algo de inferioridade, sem levantar a cabeça para se comunicar com os seus Donos. Obedecendo às ordens. Enquanto os brancos apresentam-se imponentes, emitindo um ar de superioridade pelo semblante.
Na performance, não há recursos cênicos como luz, sonoplastia ou um cenário montado, são apenas os performers rodeados pela plateia. Os atores usam esse lugar da experiência para explorar corpos, sensorialidades e provocar novas formas de percepção no público, visto que a apresentação acontece em lugar improvisado, em plena luz do dia.
Há também um contato físico entre os atores por meio de tapas, puxões de cabelos e gritos, gestos que são ensaiados, mas na apresentação precisam transparecer o mais real possível. Realidade e ficção se interseccionam ao longo dos 15 minutos de performance.
De forma anacrônica, os brancos violentam os pretos, que estão retraídos no chão, chorando, sendo obrigados a limpar a sujeira dos patrões. Este fato remete à escravidão, mas também dialoga com outras formas de agressão ao negro que persistem na atualidade: desigualdade social, estigmatização, perseguição policial, etc.
Donos tem proposta valiosa, uma vez que denuncia a violência cotidiana, costurando a narrativa com elementos relacionados à escravidão. Assim, permite suscitar reflexão e reacender novos debates sobre os problemas sociais carregados pelo negro em um ambiente predominantemente dominado por brancos.
Segundo o IBGE (2019), pela primeira vez as universidades brasileiras possuem 50,3% de negros em seu corpo discente. A inserção de grande parte desses estudantes ocorreu devido à política de cotas. Apesar do acesso, a universidade ainda é um espaço educacional desigual. Logo, promover também essa discussão por meio da arte tem grande valor.
E quando esses corpos além de sofrer discriminação racial, ainda passam a ser violentados pela orientação sexual (lgbts) e pela classe social (pobres, periféricos)? Na performance, uma personagem branca, após chutar um negro, diz: “Não basta ser negro, tem que ser pobre e viado!”. Infelizmente, esse comentário ainda é muito comum na vida das populações vulneráveis, o que, no atual momento político, tem se agravado pelos discursos conservadores.
Esses debates dialogam com a metodologia do Teatro do Oprimido, proposta pelo diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, Augusto Boal, na década de 1970; e que surge como forma de resistência ao contexto autoritário e de censura da época. Nesse sentido, Boal, mesmo vivendo na época da ditadura militar, persiste na ideia de um teatro político com o intuito de denunciar o cenário opressor, trazendo à tona questões ligadas à igualdade, justiça social e libertação humana.
Em Donos, o processo de criação que resultou na performance ocupa esse lugar político, contra-hegemônico que, assim como o teatro do oprimido, é instrumento de transformação social. Nas palavras de Boal, “Não basta produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados”.
Na apresentação, após sofrerem ataques, os negros reagem. Eles se dão as mãos. Os personagens se erguem. Empoderam-se. Pronunciam algo como lugar de preto é onde ele quiser. Afrontam os opressores. Despejam a lama em cima dos brancos. Eles podem. Assumem o poder. As imagens de resistência é o que fica de Donos.
Este texto é fruto da parceria entre o 4 Parede e a Semana de Cênicas (UFPE), na 1ª edição da ação formativa “Cobertura Crítica”, projeto idealizado e ministrado por Lorenna Rocha e Rodrigo Dourado.
Referências
SIMONI, Mariana. Dilemas e desafios na contemporaneidade atos e desafios teóricos: sobre performatividade no teatro contemporâneo. III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS). Campinas, 2012. (acesse AQUI)
OLIVEIRA, Cristiane Souza de. Do teatro a performance – um lugar de colapso. Revista landa. Vol. 6 N° 1, Rio de Janeiro: 2017. (acesse AQUI)
GUIA DO ESTUDANTE. Quase metade dos estudantes de universidades veio de escolas públicas. Visto em 10/11/2019. (acesse AQUI)
FILHO, José Pereira Peixoto. MARQUES, Emiliana Marilia Diniz. Teatro do oprimido e educação: perspectivas para as práticas escolares na atualidade. acesse AQUI)