Crítica – Duo-elo | Força de oposição e inovação

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Por Samuel Florentino
O ano foi 1992, quando surgiu um trabalho feito pelo grupo Cais do Corpo (saiba mais aqui Cais do Corpo), que teve seu início em 1988 e atuou até 1999. Nos estúdios da TV Jornal, estava se forjando um dos primeiros trabalhos de audiovisual em dança da cidade do Recife, que evoluiria para o que atualmente conhecemos como videodança.
Duo-Elo (veja aqui Duo-Elo) era o nome desta obra. Gravada em preto e branco, trazia um contexto que logo percebemos através dos bailarinos que davam vida à ideia: um homem negro e uma mulher branca. A obra é dividida em quatros partes, usando uma linguagem expressiva da dança contemporânea e até, de certa forma, teatralizada.
Um batuque forte e gritos horripilantes distantes compoem a abertura dessa obra, o som remete as percursoes tribais africanas, trazendo uma ideia inicial de um corpo negro resistente ao confronto, com movimentos fortes e tensionados. O corpo armado, tendo sua sombra projetada em uma lona pintada, confere impressão de um padrão de rochedo trazendo um contexto de continuidade, gerando sensação de ancestralidade que é fortemente marcada, como algo vivo e real. O bailarino usava calças de algodão, o que me remeteu diretamente às roupas usadas pelos escravizados africanos no Brasil, e a movimentação dele é como se se preparasse para um conflito.
Suas movimentações de dança contemporânea, com pinceladas em danças de matrizes africanas, trazem uma dança de resistência, dança raiz, expressada pelo bailarino Robson Duarte, que conduz toda primeira parte do movimento.
Na segunda parte, o corte e a transição da presença feminina trazem uma desaceleração ao ritmo do movimento do vídeo e seus componentes, seja ele, o bailarino, ou a própria câmera. O corpo pesado repousa diante da presença feminina, doce, gentil, com movimentos suaves, trazendo uma atenção merecida para a bailarina Maria Eduarda Gusmão. Sua roupa preta é levemente transparente na parte superior e sua pele traz oposição ao corpo do outro.
O terceiro momento apresenta-se forte e impactante, ao mesmo tempo em que a música troca tudo, exibindo muita força de oposição: preto e branco, dominar e ser dominado. Tudo gira em torno desses dois corpos agitados tensionados que, durante todo o tempo, se colidem e se arremessam entre si. A câmera valoriza bem os movimentos e as expressões dos artistas. O olhar marcante da bailarina leva-me para um lugar de segurança e resistência, aproveitando bem os ângulos e a proximidade, sendo possível ver qualidade de movimento através dos corpos que se colidem, juntam e tocam-se, dando ao telespectador um olhar rico com mais detalhes em ângulos diferentes.
Há uma ruptura no tempo e espaço da coreografia, muda-se a dinâmica e o respirar, o que era alto se torna baixo; o que era agitado se torna lento, como se os dois corpos percebessem a linguagem um do outro. A movimentação é alinhada à câmera e é bem aproveitada, capturando cada momento dessa relação para o tempo da obra. A forma como foi filmado merece destaque, pois valoriza a harmonia dos ângulos dos bailarinos em cena. Voltando à movimentação, os dois bailarinos caminham como um relacionamento que surge dos corpos que se atravessam através do outro, voltando à oposição, à força do dominar e ser dominado, e esse já é o quarto momento.
Duo-Elo consiste em uma obra que atravessou o universo da contemporaneidade, mesmo sendo datada de 1992. A obra traz reflexões e movimentos que nos levam para Metrópolis de Pina Bausch, na qual vemos movimentos repetitivos, quase uma afirmação e ênfase do contexto ali proposto. O corpo é exposto simultaneamente, originando estímulos, expressões e impulsos, e me faz pensar como o trabalho da dança se ressignifica na leitura da apresentação, e como é possível pensar em temas contemporâneos como: “a proliferação das diversas formas de violência atreladas à cultura do medo, as relações de poder, a cidade da memória e a memória da cidade; a contracultura e suas relações com o universo urbano […]”, conforme reflete Solange Caldeira (2010, p. 4), no livro A construção poética de Pina Bausch.
Due-Elo traz uma uma relação forte com a violência entre dominador e dominado, tema que sempre cerca o cotidiano e suas oposições. A apresentação me atravessa e instiga a investigar mais o fazer do agora em videodança, propondo a exploração de ângulos, câmera, oferecendo aspectos proveitosos para os dias de hoje, por sua estrutura profissional e relacionada às temáticas que cercam a sociedade atual. Um Uma obra, certamente, muito rica para estudantes de licenciatura em dança, bailarinos, performers, com visão em videodança, como forma de estudar para aprimorar a qualidade e o olhar observador voltados a propostas expressivas para a linguagem digital.