Crítica – Verão Sem Censura | DJ Rennan da Penha e o Giro Periférico da Juventude Preta
Imagem – Karolyn Andrade
Por Lucas Bebiano
Ator, Performer e Graduando da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Praça das Artes, 17 de janeiro de 2020, São Paulo. O público se depara com um palco: nele, uma mesa, alguns equipamentos de som, dançarinos e um DJ ao centro. A perspectiva coloca o DJ em foco – em sua frente uma multidão de jovens (a maioria negros), reagindo à sua música; em sua esquerda uma projeção gigante de seu nome num edifício: DJ RENNAN DA PENHA.
Nessa mesma projeção, são exibidos alguns trechos de filmes do cinema nacional, construindo imagens de fundo para a música que está tocando. O ritmo? Funk! Os filmes? Bruna Surfistinha, Aquarius, Hoje eu Quero Voltar Sozinho, entre outros. Tais filmes têm em comum o ataque moralizante que receberam em algum momento de sua distribuição.
A junção da música que é tocada com as imagens dos filmes nos dá alguns momentos únicos, como a personagem Dona Clara do filme Aquarius lutando contra a especulação imobiliária da elite pernambucana, ao som de Eu vou Passar com a Xota na Sua Boca (MC Mazzoni feat DJ Rennan da Penha).
Rapidamente introduzidos ao tom artístico da noite, olhamos novamente para o palco para encontrar o contexto do show: slogans da prefeitura de São Paulo e do Festival Verão sem Censura. Esse texto lançará um olhar crítico para o contato do artista Rennan da Penha com tal instituição e tal festival.
O festival é uma idealização da Secretaria de Cultura do município, que abrange todas as regiões da capital, e dá palco a mais de 40 atrações artísticas que foram atingidas pela bizarra onda ideológica anti-arte e anticultura dos últimos anos no Brasil.
Essa onda tem como uma de suas imagens políticas atuais o governo Bolsonaro. Ele, em um ano de mandato, acabou com o Ministério da Cultura, decretou uma série de desmontes nas leis de fomento cultural, cortou verbas destinadas a produções com narrativas negras e LGBTQIA+, assim como censurou filmes e espetáculos lidos como “de esquerda”, dentre outras políticas públicas da barbárie.
Esses ataques pegaram de surpresa muitos artistas brancos de classe média (alguns até convidados a integrar a programação desse mesmo festival) uma vez que, inseridos num contexto de livre circulação e expressão de seus trabalhos, não vivenciam diariamente a experiência da censura. Mas, além dos ataques diretos que um governo pode fazer à determinada classe, existe uma corrente estrutural que ele alimenta e que age diretamente no pensar e agir social da população.
Ou seja, apesar de mais uma vez em 2019 a discussão classista sobre o funk ser proibido ou não ter chegado ao congresso, não foi o governo Bolsonaro que censurou diretamente o DJ Renan da Penha. Mas o artista teve não só o seu trabalho, como sua presença, censurados pela onda ideológica bolsonarista, e pelo pensamento conservador brasileiro.
Rennan da Penha ficou preso injustamente durante 7 meses em 2019. A prisão impediu sua presença no Prêmio Multishow de Música Brasileira, no qual foi premiado como Produtor do Ano e levou o grande prêmio da noite, Canção do Ano.
Ele também não pôde tocar no Rock In Rio, quando acabou recebendo uma série de homenagens, e não pôde ir à cerimônia do Grammy Latino comemorar sua indicação inédita, representando a música do país internacionalmente. Portanto, ter o seu nome projetado no edifício ao lado do palco no festival não é só a afirmação de seu trabalho, mas também de sua presença física nos espaços.
Em entrevista para os jornalistas Lucas Veloso e Nataly Simões, a dançarina Renata Prado (moradora do extremo leste de São Paulo) identifica o funk como uma cultura orgânica da periferia. Renata diz que tem contato com o ritmo desde criança. A realidade de Renata dialoga com a de muitas crianças do estado, que, quando adolescentes, encontram no ritmo autoestima e bem-estar e, na fase adulta, podem torná-lo gerador de renda, como é o caso do DJ Rennan.
Quando o funk é censurado, um grupo social é censurado junto. Não é à toa que um ritmo, diretamente relacionado à vivência de pessoas negras e pobres, é criminalizado socialmente e isolado nas artes.
Rennan é idealizador de um dos maiores bailes de rua do Rio de Janeiro, o Baile da Gaiola. O baile passou a promover os DJs que lançavam músicas no evento, garantindo sua projeção mundial. O sucesso do baile foi tão grande, que Rennan começou a fazer parcerias com artistas já consagrados e a realizar shows fora da favela. Assim, os shows de Rennan prometem uma experiência similar a um baile na favela. Rennan não é apenas uma DJ que vende suas músicas, ele vende a experiência de um baile de favela junto.
Dessa forma, o show traz um repertório de funks antigos e atuais. As letras? Putaria com romance. Além de Rennan comandar o som e estabelecer um contato direto com o público, ele estabelece um tom político inserindo pautas de raça, gênero e sexualidade, como tentativa de conscientização do público frequentador de seus shows (sem aderir ao discurso politicamente correto).
Seja nos momentos de animar a galera: “70% das meninas vão concordar comigo. Homem que não chupa buceta pra mim é viado”. Ou em instantes mais densos, como quando ele faz menção ao genocídio da juventude preta, pedindo justiça pelo massacre de Paraisópolis, na madrugada de 1° de dezembro de 2019. Nesse massacre, nove pessoas de 14 a 23 anos morreram, durante uma ação da polícia militar do Estado de São Paulo no baile funk da DZ7 na Zona Sul.
Nesse momento do show realizado durante o Verão Sem Censura, percebo que a média do público é exatamente a mesma dos jovens assassinados no massacre: o público em sua maioria é negro e jovem/adolescente. Comparando as taxas de mortes diárias de jovens negros no país com a experiência do Baile da Gaiola, no qual centenas de jovens negros se agrupam para dançar e não morrer, percebe-se a inversão de uma violenta norma que DJ Rennan e tantos outros MCs de funk promovem.
Aparentemente, o que está acontecendo, não só no Sudeste, mas em todo o país; é um giro periférico, que os estudos decoloniais vão chamar de ‘giro decolonial’. Os bailes funk de rua do eixo Rio-São Paulo são um reflexo de uma periferia agrupada, que não mais depende diretamente do sistema que a mata. Esse giro periférico da juventude preta dialoga com o trabalho de Rennan da Penha. É um movimento de autonomia e de resistência de corpos dissidentes latino-americanos.
Essa autonomia vem de uma periferia censurada todos os dias; é a reação a um sistema de controle, a negação de normas brancas de produção, seja no que diz respeito à renda, ou ao conhecimento. A produção artística da periferia, muitas vezes, não é levada verdadeiramente em consideração pela elite cultural branca, a qual também não é capaz de dimensionar o quanto essa arte já é censurada e/ou censurável dia a dia.
Quero dizer que, muitas vezes a classe artística embranquecida pode considerar uma obra desconstruída, polêmica ou revolucionária, pelo fato de ela sofrer algum tipo de censura, por parte de algum órgão do Estado, ou se for isolada (cancelada) por grupos na Internet. No entanto, é importante considerar que se trata de uma classe cujo privilégio foi sempre ter plena condição de trabalho e cuja visibilidade termina por chamar também a atenção do governo.
A categoria de “censurados” parece ter virado moda entre uma parcela de artistas atuais. Artistas que reproduzem o que a jornalista Stephanie Ribeiro define como a lógica do “meu umbigo, minha vida”. Como se o fato de uma obra ser censurada, automaticamente transformasse o artista em um corpo à margem, sem levar em consideração os artistas que, já postos socialmente à margem, são censurados todos os dias.
A elite cultural e artística parece ter uma visão muito parcial sobre a censura, geralmente tomando como único referencial histórico os episódios de censura, barbárie e terror vividos por artistas na ditadura militar no Brasil. E usam tais argumentos para vender seus trabalhos: “artista censurado apresenta…”.
Mas e se for preto? A onda ideológica anti-arte e anticultura que levou, recentemente, à censura de trabalhos artísticos por agentes de políticas públicas continua sendo hedionda. Mas, pergunto novamente, e no caso dos artistas negros e periféricos? Pergunto isso, porque, aparentemente, na percepção branca de arte e censura, o alarde só acontece quando um trabalho branco (pensado dentro da lógica universal de “para todos os públicos”) é censurado.
Parece que ainda persiste na elite cultural e artística branca um pensamento de arte como um fenômeno universal, ligado a um ideal artístico tipicamente moderno. Uma vez que o conceito da universalidade é tensionado, percebe-se que o que está sendo lido como universal, na verdade, é apenas a perspectiva branca e europeia sobre a arte.
Isso termina por distanciar tudo o que não é branco da classificação e valorização da obra de arte. Assim, o universalismo nas artes não dá mais conta (ou nunca deu) das estéticas dissidentes e identitárias, o que contribui para que o pleno contato da elite cultural branca com essas outras formas de fazer artístico seja quase inexistente.
Quando um artista jovem, negro, do Complexo da Penha, é preso injustamente pela justiça, pouco se debate, ou se escreve sobre isso, seja nos cafés de artistas de galeria ou nos meios especializados de arte. Quando levantam hashtags como #LIBERDADEARENNANDAPENHA em seu nome, e ele arduamente ganha sua liberdade, só então passam a convidá-lo para integrar festivais de teatro, e animar o establishment.
Esse é o maior tensionamento que faço com relação ao artista Rennan estar participando desse establishment, questão que também me atravessa: por que ainda frequentar/fomentar espaços brancos com arte preta? Órgãos como a Fundação Getúlio Vargas, Associação de Comerciantes de Paraisópolis e Conseg Morumbi – Conselho Comunitário de Segurança do Morumbi, já apresentam dados que comprovam a renda e os empregos diretos gerados pelo funk no eixo Rio-São Paulo.
Trata-se de uma economia independente que movimenta as periferias, sem precisar dialogar com o senso comum do mercado¹. Segundo as informações dos órgãos citados, já seria possível que as periferias investissem em empreendimentos que fazem parte dos seus próprios processos culturais, sem precisar depender apenas do mercado branco. Não significa romper com ele, mas não depender apenas dele. O que falta para isso acontecer?
Possivelmente, a razão pela qual os artistas pretos no Brasil precisam se inserir no mercado hegemônico (regras brancas) esteja no fato de que a renda gerada por eles não consegue ser tão independente como apontam as pesquisas. O capital elevado de produção artística no país ainda está concentrado nas mãos do sistema branco, gerando uma relação de dependência cultural entre mercado hegemônico e artistas pretos.
A perseguição a Rennan, por exemplo, dá continuidade a uma série de outros MCs perseguidos pela justiça, como MC Tikcão, MC Smith e MC Rômulo Costa. A lógica para essa série de perseguições é a mesma: se começou a fazer muito dinheiro e sucesso sem depender do sistema branco, já vira suspeito de crime e alvo de policiamento.
Estar numa universidade hoje me fez perceber esse giro periférico. No meu caso, ser um jovem negro, e o primeiro de minha família numa universidade pública, me faz bater de frente com toda a lógica de epistemologias que antecedem a entrada de jovens negros no ensino superior.
Nessa condição, que está diretamente ligada ao conhecimento, bato de frente com um sistema eurocêntrico, que despreza a produção de conhecimento vinda da periferia nas artes da cena. E acompanho de perto os iguais a mim, que lutam, mesmo dentro da universidade, para conciliar suas produções científicas e a alimentação, tendo que decidir entre pagar a passagem ou fazer a xerox. Por isso, vejo constantemente pessoas negras adoecendo dentro da universidade.
A presença de Rennan da Penha no festival não deveria acontecer meramente por ele ter uma obra censurada pelo governo, e sim pela junção de uma série de controles sociais e capitais, que fazem de tudo para que a periferia não possa se colocar em perspectiva. Enquanto DJ Rennan e aqueles que ele representa tiverem espaço em qualquer tipo de mercado para suas criações, sigo escrevendo. E sigo destacando essas outras formas de produções artísticas, as que não fazem parte do ideal branco de arte.
Referências
VELOSO, Lucas. SIMÔES, Nataly. Como a cultura do funk eleva a autoestima e o bem estar dos jovens. Revista Alma Preta. Disponível AQUI. Acesso em: 05 de dezembro de 2019.
FERREIRA, Gabriela. Entenda o caso da prisão do DJ Rennan da Penha. Disponível AQUI. Acesso em: 27 de abril de 2019.
DIAS, Tatiana. O fluxo do fluxo. Revista TAB. Disponível AQUI. Acesso em: 27 de novembro de 2017.
RIBEIRO, Stephanie. Quando achamos que somos revolucionários sendo apenas privilegiados. Revista Alma Preta. Disponível AQUI. Acesso em: 09 de setembro de 2015.
Notas de Rodapé
¹Me refiro a toda lógica de mercado que vem antes do giro periférico, ou seja, a todas as regras consolidadas, antes da periferia comandar sua própria produção de capital.