Sob a luz de lamparina a querosene | Entrevista – Cesário Candhí
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Imagem – Márcio Leandro
Formado em Artes Cênicas desde 1993, o ator e dramaturgo Cesário Candhí é um nordestino residente em Duque de Caxias (RJ). Com vasta experiência em teatro, atuou em mais de 40 espetáculos teatrais, realizando temporadas nos teatros do Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.
Agora, ele entra em cartaz com o espetáculo infantojuvenil O Brincado Romance de Flora e Valentin, contemplado no Edital de Cultura Sesc RJ Pulsar 2023/24. O circuito começa no dia 4 de agosto (domingo), às 16h, no Sesc São João de Meriti. O Brincado Romance de Flora e Valentin é uma aventura infantojuvenil lúdica e musical, que emerge em histórias e lendas em torno do Rio São Francisco, através das andanças aventureiras de dois jovens.
Preservando a forte influência da oralidade presente nas culturas africanas, cujas histórias e tradições são perpetuadas pelos griots, os sábios e respeitados contadores de histórias, uma griot conta o brincado romance de Flora e Valentin. Uma brincadeira. Um mal súbito. E o coração da menina Flora é levado feito folha rio abaixo. O menino Valentin parte em missão beirando as águas do Rio São Francisco, o Velho Chico, para resgatar o coração de sua amada. O herói cavaleiro errante enfrentará desafios, decifrará enigmas e descobrirá que o amor tudo faz florescer.
Em entrevista ao Quarta Parede, o dramaturgo contou um pouco mais sobre o processo de preparação deste projeto.
Como foi seu processo de idealização do espetáculo O Brincado Romance de Flora e Valentin?
Foi um processo que levou 10 anos para se concretizar. A primeira versão do texto foi escrita em 2011, resultado de uma pesquisa sobre contos populares. Naquele mesmo ano, nós, da Cia. de Arte Popular, já começamos os ensaios para a montagem, mas, devido à falta de verba, o projeto não pôde seguir adiante. O texto foi guardado, mas com a certeza de que, no momento certo, voltaríamos a ele.
Anos depois, de maneira colaborativa, reescrevemos a segunda versão e finalmente levamos a peça aos palcos. Hoje percebo que o projeto precisava desse tempo de amadurecimento para alcançar sua plena realização. Nesse processo, os editais em que fomos contemplados foram e continuam sendo fundamentais. Graças ao Edital Montagem Teatral – FUNARJ/2020, conseguimos montar o espetáculo, e, através do Edital de Cultura Sesc RJ Pulsar 2023/2024, faremos a circulação por 9 cidades diferentes no estado do Rio de Janeiro.
A Cia de Arte Popular está comemorando 27 anos e gostaríamos de saber como tem sido para você, como dramaturgo de “O Brincado Romance de Flora e Valentin”, ter exatamente esse projeto como um grande marco da história do coletivo, sendo ele o espetáculo que comemora tantos anos dessa trajetória.
É sempre muito especial ver os personagens ganharem vida no palco. Escrever é um ato solitário, mas quando o diretor, os atores, o diretor musical, o figurinista, o cenógrafo e o iluminador entram em cena, a magia acontece. Como um dos fundadores da Cia. de Arte Popular, vivenciar isso é ainda mais mágico. O Brincado Romance é uma celebração, uma afirmação de que estamos aqui, vivos, atuando e fazendo arte há quase três décadas. Estou em estado de graça.
Interpreto o personagem Valentin, e o que mais me encanta nele é a oportunidade que tenho, com 32 anos de carreira no teatro, de dar vida a um menino de 12 anos. O teatro nos permite essas transformações. Como nordestino, trago para a minha dramaturgia muito do que vi e vivi no Nordeste, das histórias que meus pais contavam, da cultura tão rica do lugar. E, sem dúvida, essas vivências estão presentes em O Brincado Romance. Cada pessoa que assiste se conecta com algo diferente — é uma experiência lúdica e mística, que fala de amor, de ancestralidade e da busca pelos nossos desejos mais profundos. O espetáculo é rico em camadas, cada uma tocando o público de maneira única.
O espetáculo trata-se de uma aventura com histórias e lendas em torno do Rio São Francisco. Como esse cenário apareceu na dramaturgia do espetáculo e qual a relação do dramaturgo com esse universo?
Sou nordestino, nascido na roça, no interior da Paraíba. Desde criança, cresci ouvindo histórias sobre o velho Chico, o Rio São Francisco, que é o mais importante da região Nordeste e que habita o imaginário popular com suas lendas e narrativas. Essas histórias, passadas de geração em geração, eram contadas pelos mais velhos, especialmente pelo meu pai, que era pescador e vendia peixe na feira. Ele me falava sobre o rio com tanto carinho e reverência que, até hoje, não sei distinguir o que era realidade e o que era fruto da imaginação.
Embora as águas do São Francisco não banhem as terras paraibanas, sua imagem está profundamente gravada na minha memória. Lembro-me, já adolescente, na década de 1980, quando viajei com minha família de ônibus para o Rio de Janeiro. Ao cruzarmos o rio durante a madrugada, no estado da Bahia, todos os passageiros despertaram uns aos outros, ansiosos para contemplar sua grandiosidade através da janela. Aquele momento ficou marcado para mim, como um testemunho da imponência e da importância desse rio para todos nós, nordestinos.
O release comenta sobre uma forte influência da oralidade presente nas culturas africanas através da figura de uma griot que conta histórias. Como esses elementos surgiram na dramaturgia e foram encontrando espaço na encenação?
Minha dramaturgia carrega muito de mim, do que vi e ouvi na infância. Na roça, minha irmã era uma das poucas crianças que sabia ler. Por isso, alguns moradores das redondezas compravam folhetos de cordel e, aos sábados à noite, iam até a nossa casa para que ela os declamasse. Lembro-me de como todos — senhores, senhoras, crianças — se reuniam ali, sentados ou deitados em uma lona, sob a luz suave de uma lamparina a querosene, apenas para ouvir aquelas histórias. A presença de um Griot, essa figura tão central na tradição oral, se fazia sentir de forma intensa nesse processo de encenação.
No meu trabalho, a figura do Griot é fundamental. No romance encenado de Flora e Valentin, essa personagem é essencial, e é interpretada por Eve Penha, uma atriz negra de 67 anos com uma história poderosa na Baixada Fluminense. A presença dela no palco não apenas dá vida à personagem, mas também evoca uma profunda conexão com a ancestralidade, trazendo consigo todo o peso e a riqueza da tradição oral.