Um grito de alegria e de angústia | Entrevista – Rodrigo França
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Imagem – Rai do Vale
Com direção e dramaturgia de Rodrigo França, o espetáculo Angu, idealizado por Alexandre Paz e Nina da Costa Reis, busca subverter o olhar social fetichista que objetifica, coisifica, criminaliza e hiperssexualiza as “bixas pretas”, cumpriu sua primeira temporada em São Paulo. Com texto que concorreu ao Prêmio Shell de 2024 pelo Rio de Janeiro, a trama aborda histórias de “bixas pretas” se entrelaçam, mostrando ao público que as vidas dessas pessoas não se resumem apenas às situações de violência.
Além de evocar narrativas passíveis e possíveis envolvendo negros gays, a montagem celebra e agradece ícones como Madame Satã, Gilberto França; o bailarino Reinaldo Pepe; Rolando Faria e Luiz Antônio (Queer Les Étoiles) e Jorge Laffond. Em cena estão Alexandre Paz, João Mabial e Orlando Caldeira. Para saber um pouco mais sobre o processo de criação, o diretor e dramaturgo Rodrigo França conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
O espetáculo ‘Angu’ busca subverter o olhar social fetichista que objetifica, coisifica, criminaliza e hiperssexualiza as “bixas pretas”. Como surgiu o interesse de abordar essas temáticas e como foi o processo de construção dramatúrgica?
Na verdade, eu costumo dizer que esse espetáculo nada mais do que um grito de alegria e de angústia, essas pessoas estão no nosso dia a dia. São pessoas que estão no nosso trabalho, são familiares, estão na nossa história, estão próximas, ainda lutando, ainda lutando por algo mais básico – que é a dignidade humana. Então, essas pessoas estão no meu imaginário, é óbvio que o trabalho é ficcional, mas inspirado no dia a dia de gente que só quer ser o que é.
O espetáculo propõe uma mistura entre seis histórias com personagens distintos. Como foi o processo de integração do elenco para se encontrar nesses personagens? As experiências pessoais deles também foram se incorporando à dramaturgia?
Foi um processo de confiança, porque foram várias histórias, construídas a partir de um quebra-cabeça. E eu fui estabelecendo uma ordem, uma ordem muito pessoal que beirava à subjetividade. Então, até está tudo muito levantado, pronto, encenado, foi um processo de confiança, que o elenco confiou bastante. Eles sabiam que aquilo que estava sendo proposto pelo autor/diretor teria qualidade, teria excelência. Mas só tenho que agradecer a um elenco que esteve de olhos vendados e que acabou estabelecendo aquilo que a gente vê nas cenas de uma forma tão potente. Obrigado.
O texto do espetáculo busca aliar elementos documentais e ficcionais. Como foi o processo de pesquisa destes elementos não-ficcionais e ficcionais e como busca equilibrá-los na abordagem das suas temáticas?
Na verdade, são pessoas desconhecidas para o grande público, mas sempre permearam a minha vida, a minha existência. E aí eu só encontrei um pretexto para colocá-las em cena sendo homenageadas. Então, não tive necessidade de um grande tempo de pesquisa, mas, como trabalho a partir do senso crítico, precisei checar aquilo que estava no meu imaginário condizia ou não. Mas foi um pretexto para homenagear personagens, pessoas LGBTs que fazem ou fizeram parte da minha vida.
Ao mesmo tempo, a peça busca homenagear pessoas negras LGBTQIAPN+ como Madame Satã e Jorge Laffond. Como essas figuras influenciaram vocês em suas trajetórias pessoais para que decidissem incluí-las na dramaturgia do espetáculo?
Eu sou um carioca do subúrbio, sempre ouvi falar sobre Madame Satã, quando eu tinha 16/17 anos e fiz um espetáculo sobre ele. Trabalhei como ator e produtor desse espetáculo e, desde então, ele permeou ao longo da minha vida.
E eu conheci o Jorge Lafond, pois fizemos um trabalho juntos como ator: eu era um garoto de coxia e ficava encantado com aquela figura deslumbrante. E é isso, acho que o espetáculo faz justiça quando coloca essas duas figuras de uma maneira humana, de uma maneira respeitosa, de uma maneira potente que são.
“Angu” busca resgatar a ancestralidade preta e gay e que busca se criar uma ambiência ritualística para o espetáculo. Como foi o processo de incorporar esses elementos ritualísticos na encenação? Existem algumas referências que foram importantes para vocês nesse processo?
Uma das minhas formações é a filosofia e a gente aprende que a ética e a estética estão muito relacionadas na arte. Eu não saberia fazer arte sem a minha ética e a estética, que trabalho e estabelece a partir de uma ancestralidade. Então é muito eu, como criador, busco trazer os elementos que eu me identifico e que não necessariamente são de contextos religiosos.
Tudo isso vem de contextos muito pessoais e comprometidos com aquilo que eu acredito quanto artista, a partir de trazer legados para não serem esquecidos. Ao mesmo tempo, penso em possibilitar novos legados, além de uma reverência a uma ancestralidade a qual devemos ser gratos, honrados e generosos.