#10 Palavra, Imagem e Movimento | Consertos e Cantatas para Tecidos de Palavras

Imagem – Bob Sousa | Arte – Rodrigo Sarmento
‘A cultura se funda, se constitui e se transforma no contato entre os saberes. Por isso, concebemos todos os nossos espetáculos como uma grande conversa que possibilitem o encontro entre pessoas.’. Com belíssimas experiências diante das obras de Patativa do Assaré, Paulo Freire e García Lorca, o artista Rodrigo Mercadante, da Cia do Tijolo (SP) colabora no dossiê Palavra, Imagem e Movimento refletindo sobre o poder dos encontros entre cena, palavra e música de nos convocar à presença.
A Cia do Tijolo é uma companhia teatral com sede em São Paulo cujos espetáculos possuem fortes relações com diversas linguagens, tais como Cante Lá que eu Canto Cá, Concerto de Ispinho e Fulô, O Avesso do Claustro, Cantata para um Bastidor de Utopias e Ledores do Breu.
Rodrigo, gostaríamos que você apresentasse a Cia do Tijolo para quem ainda não os conhece.
A Cia do Tijolo é uma companhia de teatro e música que nasceu na cidade de São Paulo há dez anos, em 2008, a partir do desejo de um dos atores, o Dinho Lima Flor, de fazer um trabalho em cima da obra do Patativa do Assaré. Desse desejo, ele se juntou a mim (que já trabalhávamos juntos) e outros amigos nossos e fizemos um show a respeito da obra e da vida do Patativa do Assaré – Cante lá que eu canto cá, que a gente faz até hoje.
Mas a obra do Patativa do Assaré se mostrou tão ampla que um show era pouco e convidamos outros artistas, como o Rogério Tarifa, para a criação de um espetáculo, Concerto de Ispinho e Fulô. Ele estreou no SESC Avenida Paulista, foi realizado com recursos do ProAC, um incentivo do Governo do Estado de São Paulo e vem rodando o Brasil há quase nove anos. Rodamos o Brasil inteiro, fizemos Palco Giratório, circulação pelos Correios em seis estados, Myriam Muniz por mais três estados e por aí vai.
Como foi o contato de vocês com a obra poética de Patativa do Assaré e o processo de moldar cenas a partir dessa literatura tão particular?
Mais do que fazer uma biografia do Patativa ou cantar suas músicas, nosso espetáculo tem como objetivo principal criar uma dramaturgia que reflita o nosso espanto e o nosso contato (enquanto artistas) com a obra dele. Por serem obras calcadas na tradição da poesia oral, na tradição do repente, do cordel, são poemas feitos para serem ditos e ouvidos pelas pessoas da comunidade dele. São poemas que cabem muito bem na boca, são astutos e gostosos. A poesia de Patativa é feita para ser escutada é compreendida.
Ele (Patativa) era um homem inteligentíssimo. Construía seus poemas para os companheiros e as companheiras da cidade dele, para que as pessoas que frequentavam a feira entendessem, sabe? Então, o trabalho com a poética do Patativa fluiu com muita facilidade: a criatividade e a brincadeira em cena explodiram com mais desenvoltura. Muito da nossa capacidade de comunicação com a plateia vem desse poder de comunicação característico da obra do Patativa.
Assim como esses espetáculos, outros trabalhos como Cantata Para Um Bastidor de Utopias e O Avesso do Claustro possuem uma forte conexão com a música. Como as imagens que essas sonoridades que vocês procuram vão emergindo nesses processos?
Todos os nossos espetáculos têm uma característica que é a presença da música, da poesia e sempre trabalhamos com personagens históricos do Brasil – Patativa do Assaré, Paulo Freire, Dom Helder Câmara, Nise da Silveira – e um espanhol – Federico García Lorca. Geralmente, escolhemos figuras com uma determinada posição política, uma espécie de engajamento de esquerda. Além disso, todos tinham um pé na arte e na poesia, inclusive Paulo Freire e Nise da Silveira.
A Cia do Tijolo é constituída por atores com formação musical e músicos que se interessam pela atuação. Claro que alguns trabalham mais com um ou com o outro, mas todos já transpuseram as fronteiras entre música e do teatro. A música, no caso, termina sendo um caminho natural para o início dos nossos trabalhos: sempre começamos nossos trabalhos estabelecendo os primeiros contatos com as obras a partir dela. No caso de García Lorca, por exemplo, essa relação era direta, pois ele era um exímio pianista, grande estudioso do flamenco e um grande músico.
Outra figura por quem nos apaixonamos a partir dessa verve artística foi Dom Helder: ele tem mais de 7.000 poemas escritos. Mesmo que ele chamasse de meditações, podemos dizer que são poemas. Além disso, ele criou um balé com o bailarino Maurice Bejart, um dos grandes coreógrafos do mundo. Então, se tratam de figuras realmente extraordinárias e que têm uma forte conexão com a música.
Em Ledores do Breu, a temática central está na educação e no analfabetismo, ou seja, em uma relação outra com a palavra a partir das obras de Paulo Freire, Guimarães Rosa, Cartola etc.. Que imagens da educação e do poder a partir da palavra vocês vislumbram a partir do espetáculo?
Paulo Freire surge na vida da companhia em sua fundação: começamos a lê-lo para Concerto de Ispinho e Fulô, porque Patativa ele dizia uma frase linda, algo como ‘antes de aprender as palavras, aprendi a ler o livro da natureza’. E começamos a ler Paulo Freire porque, de algum modo, essa frase parecia fazer eco a outra frase de Paulo Freire: ‘antes de aprender a ler as palavras, é preciso aprender a ler o mundo’. Então, começamos a ler Pedagogia do Oprimido, a ter encontros com Madalena Freire (uma de suas filhas) e também a ler Patativa pelos olhos de Paulo Freire.
O espetáculo Ledores do Breu, um solo de Dinho Lima Flor, vem de questões muito particulares dele, porque sua família é do sertão pernambucano e o analfabetismo sempre esteve presente na vida dele, que tem pai, mãe e alguns irmãos analfabetos. Quando ele chegou em São Paulo, trabalhou no MOVA – Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, que, em São Paulo, teve Paulo Freire como o Secretário de Educação. Dinho trabalhou nesse projeto como professor de educação popular e esse terminou se tornando um assunto muito próximo a ele.
E Dom Helder, apesar de não ser músico, flertava com todas as formas de manifestação artística – e principalmente com a música. Ele tem uma sinfonia chamada Sinfonia dos dois mundos e frequentava shows de Chico Buarque, Elis Regina e de outras figuras que passavam por Recife e Olinda. Se, por um lado, falamos desse analfabetismo como a maioria das pessoas conhece, por outro, também falamos de outros analfabetismos – funcional, político, ético, estético, virtual, tecnológico etc. – que revelam o preconceito linguístico por trás dessa alfabetização.
No Brasil, o doutor é a figura que detém o saber, o poder, a cultura, a educação: o acesso à cultura letrada, ao invés de promover liberdade e igualdade, passa a funcionar como marcador de diferenças. Ou seja, para a maioria das pessoas, quem tem a cultura letrada seria superior àquele analfabeto e as normas gramaticais seriam usadas para desmerecer aqueles que não sabem falar bem ou não sabem falar direito.
A partir de Paulo Freire, queríamos tratar de todos esses analfabetismos. Mais do que falar da figura dele, queríamos tratar dessa ética ‘freireana’ que coloca o professor em contato com o aluno com respeito absoluto com a produção de saber da comunidade daquele aluno. O saber, em nossa concepção, não é monopólio dos doutores que chegam de fora trazendo as luzes do conhecimento, feito um colonizador doutrinando os colonizados. A cultura se funda se constitui e se transforma no contato entre os saberes. Por isso, concebemos todos os nossos espetáculos como uma grande conversa, em que possamos criar espaços diferentes dos virtuais e convencionais que possibilitem o encontro entre pessoas.
Queremos que nosso teatro seja um ‘anti-Facebook’: um espaço em que as pessoas estejam se olhando, assistindo ao espetáculo, sabendo que os atores estão falando para eles – para aquela senhora de blusa vermelha ou para aquele senhor de óculos ou para o jovem. Falamos para o público concreto.
Nos espetáculos da Cia., vocês criam diversas situações que demandam a interação do público. Como tem sido, nos processos de vocês, esses gestos de criar aberturas para a intervenção e a movimentação do outro?
Não gostamos muito da palavra interativo. Primeiro porque teatro é sempre interativo, né? Mesmo que a plateia esteja sentada, caladinha, apenas olhando, ela está sempre interagindo, criando significados e a presença física dela na sala cria diálogos, fricções com o trabalho do ator.
Em segundo lugar, porque ela tem sido vulgarizada: a maioria das pessoas acham que interagir com o público é colocar um ator sentando no colo do espectador e tal. O que nos interessa é construir junto com esse público concreto, real. Criar obras permeáveis às falas e interferências de pessoas que, muitas vezes, interferem nos significados do nosso espetáculo.