#13 Negritudes | Por uma Revolução dos Afetos – Ecos e Reflexos do Grupo Batuk-Ajé
Imagem – | Arte – Rodrigo Sarmento
Por André Vitor Brandão
Mestrando em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (UNEB), Pós Graduado em Dança, Educação e Artes Cênicas (FSF) e Licenciado em Artes Visuais (UNIVASF)
Penso que os encontros são como um big bang, uma explosão, um acidente. Tectônicos, os encontros são fecundos, deles surgem infindáveis coisas, pois, como comenta Gil, o “bom encontro aumenta a potência do mundo fazendo os corpos levitarem” (2012, p. 133). O corpo, por sua vez, é explosão, terreno fértil da dança, e é neste lugar que situamos o grupo Batuk-ajé, nascido em Petrolina- PE, no sertão pernambucano às margens do Rio São Francisco.
Batucajé, ou melhor, ‘Batuk-ajé’ se refere às danças de caráter afro-brasileiras nascidas aqui, neste vasto território multicultural que chamamos de Brasil. Surgido em 1984 e encerrado[1] em 1986, o grupo reuniu uma gama de jovens que – nutridos pelo desejo de mover-se, de dançar suas identidades – construíram um intenso movimento que reverbera na cena local da dança até os dias atuais.
Para início de conversa, é preciso ir à nascente, investigar os eventos que desembocaram no surgimento do grupo. Não poderíamos ter lugar melhor para iniciar essa história do que a escola, pois foi a partir do convite das professoras Nilza Rodrigues e Sizenice Amorim que o grupo se formou. Vale salientar, que na maioria das instituições de ensino municipais e/ou estaduais da cidade, naquela época, tinham grupos culturais que faziam apresentações regulares em eventos na própria escola ou na cidade, em virtude dos ciclos festivos do município. Isto permaneceu de modo intenso até meados dos anos 2000.
Esse fato nos revela algo interessante que suscita diversas questões, a principal delas, é a de que, talvez, a escola tivesse o entendimento da importância da dança para o desenvolvimento intelectual e cultural dos sujeitos, e já esboçasse um pensamento de que a educação através da arte pudesse se apresentar enquanto ação cultural, como terreno de construção de pensamento criativo e humanizante (PORPINO, 2006).
Uma iniciativa pedagógica que extrapolou os muros da escola, contribuindo para a cena cultural de modo significativo. Este é um bom exemplo de como a escola pode estreitar as relações com seu entorno, cumprindo de maneira efetiva uma ação pedagógica/cultural. Assim, o grupo surge e começa a desenvolver suas atividades.
Outra questão que aparece vigorosa nesse percurso é a delimitação estética e conceitual do grupo nas danças de matrizes africanas, tendo as mesmas como matéria de criação. Não obstante, o grupo formou-se na cidade de Petrolina- PE em um período particular da história coletiva da região. Era uma época de grandes transformações desencadeadas pela construção da Barragem de Sobradinho, do surgimento dos projetos de irrigação e da chegada de imigrantes vindos de diversas partes do Nordeste – momento de transformações na identidade cultural da região.
Talvez este fato tenha sido gerador da necessidade de criar um grupo ligado às identidades afro-brasileiras como uma forma de afirmar-se, de construir identidades mais consistentes para aqueles que do grupo participavam, assim como, para a cidade naquele momento. Importante frisar que o grupo era formado, majoritariamente, por negras e negros moradores da periferia da cidade, o que confere à história da dança de Petrolina – se tomarmos o surgimento do grupo como ponto inicial – um movimento de borda, de fortalecimento e criação de um corpo político que naquela época já questionava as relações centro/periferia, propondo a construção de territórios de resistência através da dança.
A importância de trazer a visibilidade à história do grupo torna-se ainda mais latente nos dias atuais em que o corpo se coloca no centro do debate político da contemporaneidade. A onda racista, misógina e homofóbica que se alastra pelo país traz rastros evidentes de um fascismo gestado nesses trópicos que vê nos corpos dissonantes uma ameaça a “moral e aos bons costumes da família tradicional brasileira”.
Dessa maneira, as estratégias de invisibilidade dos corpos, principalmente negros, se acirram em violentas ações de apagamento físico e imagético. Trazer a superfície essa história escrita no corpo de homens e mulheres negras que deram origem a toda uma cena cultural da cidade de Petrolina se faz necessária enquanto estratégia de (r)existência, na medida em que produz na resistência um modo outro de existir.
Essa delimitação estética/identitária do Batuk-ajé é facilmente perceptível quando olhamos para as criações do grupo, onde mais da metade de suas apresentações tinham como território de construção o imaginário sonoro, imagético e corporal dessas danças de matrizes africanas. Isso nos faz pensar que as questões das identidades resvalam, inevitavelmente, nas representações que construímos acerca do mundo, de nós mesmos e de nossa cultura, logo, a representação se constitui não somente enquanto um ‘reflexo’ do real.
Ela aparece como ato criativo que está ligado ao que pensamos e inventamos sobre o mundo, desse modo, as representações são forjadas em nosso convívio social e se apresentam de forma diversa (HALL, 2016). Dessa maneira, o grupo enxergou nas danças afro-brasileiras um modo de se reconhecer, de delimitar suas identidades.
Haveria, pois, na dança produzida no Vale do São Francisco uma identidade basilada nas danças de matriz africana? – já que o grupo Batuk-ajé foi responsável pela formação e, em certa medida, profissionalização de jovens bailarinos na cidade de Petrolina- PE. Arriscamos dizer, provisoriamente, que sim, pois se pensarmos na corporeidade que os grupos da cidade edificam, podemos enxergar um flerte com jeitos de se movimentar, facilmente, reconhecíveis nas danças de matriz africana.
Como exemplos disso, temos movimentações vigorosas, privilégio a movimentos de tronco e braços, pernas dissociadas da bacia, entre outras. Essa hipótese ainda demanda um estudo historiográfico aprofundado para se legitimar, mas intuímos que as lições do grupo Batuk-ajé ainda ecoam nos corpos dos que dançam hoje na cidade.
Mas, o que nos leva a este texto, na verdade, é a memória de uma história que se tece a partir dos afetos, que, segundo Spinoza poderia ser compreendido como “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (2009, p. 163). Poderíamos, portanto, falar de uma revolução dos afetos, dos encontros como lugares potentes de transformações de realidades e de construção de lugares possíveis de criação e reverberação de discursos.
Daí a ideia de revolução, de ruptura do estabelecido[2], de mudar de lugar, e foi exatamente isso, que o grupo conseguiu fazer em sua trajetória, ressoar através do afeto e do encontro um movimento conjunto de transformação que reverbera até hoje na cena local, pois, dele se desdobraram uma série de outros grupos.
Sob essa perspectiva dos afetos, seria preciso trazer visibilidade para cada um dos participantes do grupo, visto que eles foram responsáveis pela construção dessa história e das tantas outras que se tecem hoje a partir da dança na cidade. Essa primeira tentativa de historiografar a memória do grupo compõe-se como um desejo de conhecer as pessoas que construíram a dança na cidade e criar vínculos afetivos com os mesmos.
Assim, de que são feitas as memórias? Precisaríamos percorrer diversos campos do saber para chegar a algo que nos satisfaça enquanto resposta, pois, a memória é complexa, fragmentada, móvel, com certo tom ficcional. Contudo, desempenha função primordial na construção cultural humana, visto que, nela, se movimentam os fragmentos que nos constituem: lembranças de eventos passados, cheiros, imagens, palavras, sons – uma gama de pormenores infinitos que se alinham em renascença sobre nossos corpos.
Dessa maneira, falamos da memória como um desejo de revolução que se inicia e que se alicerça a partir da historiografia da dança na cidade de Petrolina e que pode ter no grupo Batuk-ajé um epicentro. Logo, tomar como ponto de partida, ou pelo menos, escolher contar a história com base em um grupo de matriz africana, periférico é, no mínimo, emblemático. Entretanto, não estamos propondo a construção de uma escritura histórica guiada pela cronologia temporal ou por aspectos estéticos, mas a partir de uma linha de fuga que se desprende da história oficial, que corre por fora, nas bordas.
Assim, nos interessa escavar os grupos que se movimentaram/movimentam na escuridão da (in)visibilidade, e que com maestria transformaram esse escuro em possibilidades, em clarão. Uma historiografia dos afetos enseja as propriedades de um devir revolucionário, uma conduta a-histórica de ruptura com os modos institucionalizados das historiografias, pois o “devir-revolucionário é um devir que resiste e resistir é como povoar um deserto” (TRINDADE, 2016, n.p.).
Desse modo, evoca-se neste texto uma voz que olha para a memória desse grupo com um intervalo cronológico de exatos trinta e quatro anos, e se aproxima desta história de modo íntimo e particular. Ainda podemos escutar os ecos dos batuques desses narradores que, a partir de suas inclinações para as danças afro-brasileiras, alicerçaram um jeito particular de se relacionar com o mundo. Seriam eles, os tais vagalumes de que nos fala o filósofo Didi-Hubermam (2014), seriam, pois, pessoas dotadas de certa luminescência e desejo que, de tal potência, nos chegam até hoje?
Cabe a nós remanescentes desta história escrevê-la e/ou dançá-la, de modo que, possamos dar a ver a luz dos pirilampos entre nós, que possamos construir lugares potentes de construção política do corpo, que sejamos desobedientes e revolucionários em nosso tempo. Contar histórias soterradas nos dias atuais que se erguem diante dos nossos olhos em ruínas é sem sombra de dúvida um gesto de propensão que nos lança para frente.
Esse gesto nos propicia um jeito particular de enxergar a história e a memória como territórios flutuantes, móveis, importantes a contemporaneidade: “A memória é filha do presente. Mas como seu objeto é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto” (MENEZES, 1992, p.14).
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
GIL. José. Um bom encontro? In: Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012: Encontro. SANTO. E. C; FABIÃO. E. São Paulo: Itaú Cultural, 2013, p. 122- 123.
HALL. S. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v.34, 1992, p. 9-23.
PORPINO. K. O. Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. Natal: EDUFRN, 2006.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
TRINDADE, Rafael. Devir- revolucionário. Razão Inadequada. Disponível AQUI. Acesso em: 20 out. 2018.
Notas de Rodapé
[1] Poderíamos até substituir “encerrado” por “transformado” já que o grupo deu origem a Cia. de Dança do Sesc-Petrolina que ainda está em atividade, e que já completa mais de 20 anos de existência.
[2] Vale salientar que na época, a formação em dança na cidade se fazia, prioritariamente, nas academias de balé clássico que tinham como parâmetro o ensino “puro” da técnica.