#14 Confrontos | Utopias incendiárias de esperanças
Arte – Rodrigo Sarmento
Por Ângelo Fábio
Artista interdisciplinar e Produtor Cultural
“NOSSA BANDEIRA NÃO SERÁ VERMELHA!!”, jargão de grupos conservadores; ao contrário dele, nos deparamos com uma TRILOGIA VERMELHA. O vermelho é a única cor que biologicamente nos iguala uns aos outros/as: cor de nosso sangue.
Sem sangue, não sobrevivemos, mas, em muitos dos casos, ele nos tem sido extraído com atos de truculência e muita dor. A Trilogia Vermelha, como metáfora, memória dos tempos de chumbo e denúncia dos dias atuais, nos toca em feridas e nos unifica para que determinados ciclos não voltem a nos atormentar. Mesmo vivenciando aparatos repressivos no Brasil de hoje, presenciamos cenas que nos fazem refletir e despertam coragem pra seguir.
Durante as apresentações da Trilogia Vermelha[1], em diferentes espaços, pude observar uma constante interação entre público e obra. Uma das coisas que me chamou a atenção foi o cuidado que os espectadores/as tem aos acontecimentos da cena, as constantes indagações diante dos relatos históricos e sobre todo o contexto do atual sistema político nacional.
Na Casa da Cultura em Jaboatão dos Guararapes, um público misto com estudantes e professores. O espaço é bastante favorável ao espetáculo. Os que ali se encontravam interpretaram as figuras e a situação, citando o nome de Bolsonaro, e alguns alunos vaiavam, também timidamente. Estamos presenciando constantes bombardeios de informações e conscientização política através do teatro.
Durante a apresentação na VII Aldeia Yapoatan, em 2019, alguns alunos e alunas da rede estadual de ensino comentam entre si: ‘isso rolou mesmo?’; ‘Eita, aconteceu! Será que vai acontecer de novo?’; ‘Conheço uma pessoa que se parece com esse daí (em referência a um dos personagens, representado como opressor)’.
Ao assistir a trilogia, uma frase de Augusto Boal me veio à mente: ‘Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenho dúvidas: é um ensaio da revolução’. O espetáculo me parece um ensaio que nos faz sair da nossa zona de conforto, um encontro de gerações que se chocam e se deparam com dois tempos: os anos de chumbo (ditadura militar, 1964/1985) e os dias de hoje (pré golpe 2013 e pós – golpe 2016).
Nesse texto, opto por não me apegar aos fatores estéticos das três obras, mas em sua mensagem e aquilo que elas nos mobilizam. Ao final de cada apresentação, conversava com outras pessoas e fazia algumas perguntas sobre o que viram: ‘Como foi assistir à Pa(Ideia) e Pro(FÉ)ta nos dias de hoje?’; ‘Você teme que voltemos a viver este ciclo, como era sua relação com pessoas que combatiam a repressão militar?’; ‘Você conhece algum ex-militar da época?’.
Diante dessas perguntas, boa parte das respostas de pessoas com mais de 45 anos eram: ‘Vivi tudo aquilo’; ‘Meu tio foi torturado’; ‘Ouvi dizer que o pai de um amigo foi morto’; ‘Fulano teve de fugir’; ‘É triste estarmos num momento que este ciclo volta’; ‘Não temos de desistir. Temos que resistir e ter esperança de dias melhores’; ‘Sim, conheço um militar o que sinto é piedade dele, peço a Deus que o guie…’.
Já os mais jovens pareciam ‘sorrir de forma aflita’ e alguns comentavam: ‘Fiquei com medo, mas tô sentindo outra coisa. Aquilo aconteceu mesmo?’; ‘Como uma pessoa é tão ruim?’; ‘O professor só queria ensinar o pessoal a ler e a escrever. Minha mãe criou a mim e meus irmãos sozinha e ela sonha em aprender a ler!’
A Trilogia Vermelha nos leva ao encontro de um teatro pedagógico, poético, necessário e inspirador. Nestas obras, a simplicidade, o tônus e a força da obra contemplam muitas coisas que, hoje em dia, em alguns casos se tem deixado de lado no teatro. O que é visto não se trata apenas de conceito, e sim de teatro!
Em pa(IDEIA) – pedagogia da Libertação, por exemplo, o intimado é Paulo Freire. Em uma das cenas, diante de Freire, um militar que se impõe superior às leis. Através da ordem do militar, ele manda uma parte do público evacuar a área, mantendo no palco apenas duas mulheres.
Durante uns dez minutos, as mulheres observam uma triste e nebulosa sessão de tortura psicológica. Da plateia, presenciamos uma situação atemporal. Estamos nos anos 60/70 ou nos dias de hoje?
O que ontem fizeram, se mantém forte. Uma raiva explosiva está no militar que fala e despreza os direitos humanos, zomba da democracia, do direito de ir e vir, afirmando que artistas são ameaças para a moral e os bons costumes.
A floresta amazônica está em chamas, a costa do nordeste manchada de óleo e o perigo no teatro é eminente. Uma vela cai sobre o palco e uma briga entre os personagens é intensa. A tensão fica no ar, um foco de luz sobre Freire e uma penumbra no militar.
No entanto, os relatos do educador Paulo Freire ferem a ordem já imposta pelo sistema: constantes embates ideológicos fazem afrontar aquele que tem o “poder” em mãos. ‘Alguém tem vontade de ser opressor aqui?’, diz um dos atores.
Num buchicho bastante tímido, escuto a voz de uma aluna da rede estadual, na Casa da Cultura de Jaboatão dos Guararapes: ‘O que é isso?’ e, imediatamente, lhe respondo: ‘Ser opressor é ser este militar que está interrogando o Paulo Freire’. Ela diz: “Ah, não quero!”.
Nesse sentido, a Trilogia parece se revelar como um espelho contemplativo[2] que explora as nossas dores, criando momentos em que ficamos sem respostas. Ao mesmo tempo, somos estimulados e estimuladas a seguir em frente na possibilidade de que seja possível mudar o rumo da nossa história.
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Teatro: ferramenta política que nos causa as mais variadas sensações. Ferramenta esta que vai muito mais além do ‘belo’ e o que é o ‘belo na arte?’; não se faz necessário seguir parâmetros estéticos ou rígidos propostos à cena, não há limites para se experimentar. A questão é se algumas apostas funcionam ou não.
Hoje, na terra ‘braZilyz’, cada vez mais têm saído do armário os conservadores de plantão para atear pedras e palavras de ódio aos que pensam contrário às ‘pessoas de bem’, que tanto pregam a ‘moral e os bons costumes’.
A arte e cultura sempre foram os primeiros a serem atingidos por meio da censura e da intolerância. Nós, artistas interessados nas causas democráticas, estamos sujeitos a massacres, seja por meio do sucateamento do sistema ou do atingir das balas em nossa própria pele. O pronunciamento de Roberto Alvim não foi gratuito, assim como a entrada da Regina talvez seja um aporte à barbárie da cultura.
Entre amigos e amigas, tenho sido um pouco pessimista ao falar sobre os nossos rumos quanto produção cultural e de como estamos em constante risco, tentando não deixar de lado aquilo em que acreditamos e que nos faça seguir em frente.
Seja via redes sociais ou em cena estamos sendo constantemente monitorados e monitoradas. O ator José Neto Barbosa, que atua e dirige o monologo A Mulher Monstro, foi atacado com uma pedra enquanto se apresentava no Sesc Piedade no dia 24 de setembro de 2019[3]. Sim, estamos no século XXI e parece que a inquisição contemporânea vem sendo retomada!
Diante de todas as reflexões que nos proporciona, podemos dizer que a trilogia desenvolve uma pesquisa poética, política, pedagógica e engajada nestes tempos de fúria, proferindo um sopro que nos emana forças para seguirmos em frente. Se, como dizia Saramago, ‘Esperança é como um sal. Não alimenta, mas dá sabor ao pão’, a cor vermelha nos leva a semear o pão para que possamos comer o pão em algum momento.
Notas de Rodapé
[1] Realizada pelo Coletivo Grão Comum, com direção de Júnior Aguiar, atuação de Márcio Fecher, Daniel Barros, Júnior Aguiar e execução de luz e sonoplastia de Moacir Lago, a Trilogia Vermelha é composta pelos espetáculos h(EU)stória – o tempo em transe, centrada na trajetória do cineasta Glauber Rocha; pa(IDEIA) – pedagogia da Libertação, no educador Paulo Freire; e pro(FÉ)ta – O bispo do povo, no arcebispo Dom Helder Câmara.
[2] Aqui no contemplativo utilizo a metáfora no sentido da palavra Contemplação. Hoje presenciamos uma passividade apática da população diante aos casos que nos vem acontecendo no país.