#15 Deslocamentos | Caminhos Invisíveis, Barulhos Inaudíveis
Arte – Rodrigo Sarmento
Em 2020, o contexto de isolamento freou os processos criativos de variados artistas, grupos e coletivos de artes da cena mundo afora, limitando os deslocamentos nas vias urbanas e potencializando sua relação com os espaços privados e virtuais. Nesse contexto, a entrevista realizada por João Guilherme de Paula com o ator e diretor Lenerson Polonini se iniciou antes do processo da pandemia, enfatizando aspectos presentes nas obras da Companhia Nova de Teatro, tais como imigração, circulação e relação com refugiados.
Diante de outro contexto social, político e cultural trazido pela emergência do COVID-19 e as demandas pelo isolamento social, pedimos a Lenerson que comentasse como percebe as temáticas trabalhadas pelo grupo à luz desse outro momento, nos permitindo pensar as possibilidades de trânsito que as artes da cena encontram na conexão (e invenção) com os espaços físicos e virtuais.
Fundada em 2001, pelo diretor Lenerson Polonini em parceria com a atriz e figurinista Carina Casuscelli, a Companhia Nova de Teatro desenvolve um trabalho de pesquisa contínua a partir da performance, das artes do corpo e do universo das artes visuais, convidando atores, bailarinos e artistas de diversas áreas para colaborarem com suas produções.
Os elementos multimidiáticos desenvolvidos pela companhia procuram explorar a tridimensionalidade do palco e a relação da arte com o espaço urbano, privilegiando o aspecto físico do ator na cena por meio dos quais o público recebe uma multiplicidade de eventos visuais e auditivos. Saiba mais sobre a companhia AQUI.
Lenerson, como começou a tua experiência com o teatro até chegares ao trabalho que comemora 18 anos da Companhia Nova de Teatro em São Paulo?
Comecei fazendo teatro na escola, por iniciativa dos próprios alunos do colégio. A partir este primeiro momento, eu decidi que queria fazer daquilo a minha profissão. Fui em busca de cursos de formação, oficinas, workshops que me fizeram ter contato e convivência com um time incrível de profissionais da área que, até hoje, admiro muito.
Foi durante uma oficina de Os Sertões, no Teatro Oficina, que conheci a Carina Casuscelli. Naquele momento, eu já tinha muitas ideias e fazia experimentos com a obra de Samuel Beckett, no âmbito da Companhia Nova de Teatro. Convidei a Carina para se juntar ao trabalho e, juntos, fortalecemos o nosso grupo de pesquisa voltado à experimentação, à performatividade e ao hibridismo de linguagens.
Após isso, vieram outros parceiros, como a atriz Rosa Freitas, o músico experimental Wilson Sukorski (ambos estão no grupo há uma década), videomakers, atores e tantos outros colaboradores que passaram pelo grupo.
A Companhia Nova de Teatro tem investido em tratar das questões migratórias. Como se deu o interesse por esse tema e como vocês o estão desenvolvendo nos espetáculos?
Tudo começou com uma pesquisa de minha parceira de grupo, a Carina Casuscelli, que é formada em moda e desenvolvia pesquisas sobre confecções clandestinas e trabalhos análogos à escravidão na região do Brás, em meados dos anos 2000. Naquele momento, o fluxo era muito grande ali. Havia forte presença boliviana, peruana, ou seja, comunidades andinas de forma geral. Mas havia também coreanos, chineses e africanos.
A partir daí, iniciou-se uma pesquisa mais aprofundada com experimentos realizados no Brás, que envolvia performances em meio a ambulantes, naquela agitação toda do comércio informal. Paralelamente a isso, adentramos nas diversas comunidades, ambientes das confecções, festas da comunidade boliviana etc. Carina, no processo de escrita, frequentava as reuniões clandestinas com imigrantes indocumentados, com a presença de ativistas, advogadas e agentes sociais.
Depois disso, veio a escrita dramatúrgica da peça Caminos Invisibles. Naquele momento, reunimos 16 bolivianos residentes em São Paulo. Fizemos uma amostra no Festival Latino Americano de Teatro no Memorial da América Latina e, logo após, estreamos no Porão do Centro Cultural São Paulo, com sessões lotadas. Foi mágico. Era uma platéia mista, formada por espectadores que acompanham o trabalho do nosso grupo, do CCSP e da comunidade boliviana e peruana.
No Projeto Apátridas, vocês realizaram uma série de pesquisas e intercâmbios durante viagens à Grécia e à Romênia, propondo montagens que partem de fragmentos de tragédias gregas de Eurípides para lançar questões emergentes da realidade brasileira. Como se deu a criação e desenvolvimento desse projeto? Como esses trânsitos influenciam na criação da cena?
Apátridas é a continuidade de nossas pesquisas acerca do trágico em uma perspectiva contemporânea. Um projeto que teve início nos anos de 2012, quando eu, Carina Casuscelli e Eduardo Brito visitamos Theodoros Terzopoulos no Teatro Attis, em Atenas. Naquele momento, estabelecemos uma relação de parceria e colaboração para investigar as tragédias do ponto de vista do corpo ancestral.
Em 2013, voltamos a Atenas com um grupo de 8 artistas, onde passamos quase 20 dias estudando, ensaiando, pesquisando e apresentando work in progress, o que resultou no espetáculo Krísis, encenado no SESC Bom Retiro no mesmo ano. Naquele período, as manifestações nas ruas tanto no Brasil como em Atenas ganharam força e serviram de material para construção dramatúrgica, antecedendo tudo aquilo que estava por vir em nosso país.
Em nossa passagem recente pela Europa, tivemos o desafio de apresentar nosso espetáculo em dois festivais e em um teatro comercial. Essa experiência foi muito importante para observarmos os fluxos migratórios, inúmeras línguas, povos e costumes. Em Caminos Invisibles… La Partida, dirigido por Carina Casuscelli, tratamos da imigração andina em São Paulo, as problemáticas das confecções e a beleza de uma cultura de mais de 15.000 anos dissolvida na metrópole e muito pouco conhecida. Barulho D’água, texto de Marco Martinelli, também dirigido por Casuscelli, aborda a imigração de refugiados africanos em embarcações precárias, que são obrigados a abandonar suas pátrias por causa de guerras, conflitos, fome, perseguições etc.
As questões abordadas nos espetáculos partiram basicamente da identificação dos pontos mais problemáticos que envolvem esses processos, colocando a nossa lente, buscando conscientizar as pessoas sobre essas tragédias humanitárias e provocar o debate e a reflexão sobre esses temas. O processo incluiu inúmeras pesquisas, entrevistas, visitação a espaços que abrigavam vítimas dessas tragédias e a interlocução com especialistas das mais variadas áreas. O contato e a participação ativa desses “personagens reais” nas peças trouxe aos espetáculos verdade, riqueza, credibilidade e força dramática.
Apátridas fala do refúgio no sentido mais amplo, partindo dos mitos para entender a nossa realidade. É o encerramento de uma trilogia sobre fluxos migratórios, deslocamentos e territórios.
Em 2017, entrou em vigor no Brasil a ‘Lei de Migração’, que modifica uma série de questões administrativas na regularização de estrangeiros no Brasil. De alguma forma, as consequências que atravessam a implementação dessa lei afetaram as pesquisas do grupo? De lá para cá, acredita que políticas públicas como essa afetaram os deslocamentos nos anos seguintes?
Para além das leis, penso que a questão fundamental é o pertencimento da terra que escolhemos viver, independente das nacionalidades. A crise sobre a questão dos refugiados é alarmante. Países inteiros mergulhados em guerras e pobreza. A Bolívia, depois de um ciclo próspero, o que num certo sentido fez conter a imigração recente, volta a sofrer com golpe de Estado e um novo ciclo migratório começou a partir deste fato.
Penso que as leis são excludentes. Nunca favorecem os estrangeiros de fato. São sempre restritivas. Um estrangeiro não votar ou se candidatar, exemplifica o quanto as leis do Estado Brasileiro são excludentes. Neste contexto de pandemia, por exemplo, latinos e afroamericanos são os que mais estão morrendo de Covid-19 nos EUA.
Primeiro, por sua condição normalmente marginalizada nessas sociedades e pela falta de políticas e amparo a essa população, o que revela uma disparidade gritante. Além disso, num momento de carência de recursos estruturais e humanos diante desse caos de proporções inimagináveis, não é difícil imaginar que os recursos sempre chegarão de forma muito desigual a esses “estrangeiros”.
Pensando no deslocamento de grupos teatrais por um viés da internacionalização das artes, existem redes de curadores que articulam o intercâmbio com outros países a fim de criar essas pontes internacionais. Na experiência do grupo, como vêm acontecendo esses processos? Como as maneiras de pensar e produzir arte se modificaram a partir desses intercâmbios?
Desde 2011, o grupo viaja, recebe artistas para intercâmbio, participa de festivais, ações e projetos fora do País. Não sei lhe dizer sobre as redes de festivais, pois criamos um caminho próprio. Na verdade, da forma como essas redes têm se formado, penso que não trazem um recorte plural daquilo que é produzido no Brasil.
Por exemplo, numa seleção de 10 peças para curadores assistirem em um determinado festival, elegendo aquelas como as “melhores” e mais “representativas” das artes cênicas, como ficam as outras produções igualmente potentes? Acho positivas as redes que olham as singularidades dos artistas e grupos, e não o exotismo do olhar colonizado.
Num certo sentido, acho positiva essa liberdade da Companhia Nova de Teatro em transitar e produzir suas criações de forma independente. Os intercâmbios são momentos de criação em terra estrangeira na qual olhamos para nós mesmos e enxergamos as nossas riquezas e as nossas capacidades criativas como uma possibilidade de reinvenção de nossas linguagens estéticas.
A partir desses intercâmbios, comente sobre as diferenças e semelhanças dos processos de circulação no Brasil em relação aos outros países. Quais os desdobramentos que a recepção dos espetáculos do grupo têm nesses territórios? Quais as diferenças que vocês percebem quando vocês são os estrangeiros?
Sentimos que outros países possuem sistemas e políticas mais avançadas neste sentido, facilitando a circulação e intercâmbio de artistas/grupos por festivais e teatros. O Fundo Europeu para às Artes, por exemplo, possibilita que gestores e artistas de países diferentes criem projetos em conjunto.
Ao mesmo tempo, penso que se alcançamos um nível de excelência, em termos de organização e formas de produção, não ficamos atrás de outros países. Mas na organização social brasileira há um problema no nível estrutural de nossa educação, do nosso estímulo ao acesso à cultura e na nossa difusão de peças teatrais.
Com relação as nossas performances, recebemos ótimas impressões do público, artistas e programadores nos festivais e teatros por onde passamos. O resultado deste diálogo é sempre positivo, gerando possibilidades de trabalhos e colaborações futuras.
Como vem sendo sua relação com esse período de isolamento? Que estratégias você vem encontrando para que os processos de criação do grupo continuem?
Estávamos vivendo um período intenso de atividades e apresentações. Tínhamos uma extensa agenda de espetáculos do grupo marcados de abril a junho deste ano. É evidente que houve um grande choque com a paralisação dessas atividades, embora inegavelmente necessário.
Afinal de contas, é uma pandemia de proporções nunca enfrentadas por nossa geração, um momento sem precedentes na história da humanidade. Porém, é também uma oportunidade de avaliação, de repensar o teatro e as artes inseridas neste contexto. Atualmente, estamos trabalhando com cinco projetos ao mesmo tempo – entre remontagens, peças de repertório e um novo trabalho.
Estamos basicamente nos dividindo em ensaios, reuniões e estudos online, utilizando as plataformas para encontros virtuais, o que nos permite continuar elaborando estratégias artísticas por meio destes encontros. Apesar dos desafios com relação a essa nova forma de contato do grupo, em nenhum momento, abandonamos a continuidade dos nossos trabalhos.
Um dos projetos que estamos ensaiando é a TRILOGIA FOREMAN, com as peças Bad Boy Nietzsche, Prostitutas Fora de Moda e Os Deuses Estão Marretando a Minha Cabeça. Toda a preparação desta remontagem está acontecendo por meio destes encontros online.
A minha encenação dessas peças propõe uma exposição simultânea, capaz de produzir significados e provocações, convidando o espectador a juntar peças de um quebra-cabeças inacabado, lançando flashes e memórias disjuntivas de nosso tempo. São personagens que estão em busca de uma verdade cósmica, de redenção, de respostas para suas aflições.
Curiosamente, essas peças que encenaremos fazem uma reflexão profunda sobre a nossa existência, sobre solidão humana, o enfrentamento de nossas angústias, fantasmas e impotência, algo que estamos experimentando neste período de confinamento.
Já sabemos: o mundo não será mais o mesmo após esta pandemia. E também sabemos: nossa arte também está sendo convidada a se reinventar para esse novo cenário.