#16 Urgências do Agora | Dos Jogos e Laços entre Corpos e Máscaras

‘Todas as referências humanas, sociais, políticas, estéticas que transitam na vida do ser humano serão disparadores de algo que estará por vir, latente e pleno de frescor, algo inusitado, inesperado, que é não somente um somatório das referências que forjaram este ser, mas algo que brota daí e já não é mais a mesma coisa’
Nosso dossiê Urgências do Agora continua com uma entrevista com o artista e pesquisador Érico JosÉ, que desenvolve pesquisas e criações que atravessam de variadas formas o conceito de corpo-máscara.
Nessa entrevista conduzida por Bruno Siqueira e Lorenna Rocha, Érico aborda suas pesquisas em torno de suas pesquisas de encenação, máscara, cavalo marinho, biomecânica e cultura brasileira.
Érico, atualmente, é Professor da Universidade de Brasília (UnB) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA). Licenciado em Educação Artística/Artes Cênicas (UFPE), Mestre e Doutor em Artes Cênicas (UFBA), autor do livro A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE) (SESC-PE) e organizador do livro Tradição e Contemporaneidade na Cena do Cavalo Marinho (PPGAC/UFBA).
Em 2020, você completa 30 anos de trabalho como encenador, coincidindo com o ano em que você saiu de Recife e foi para Bahia. Como foi sua trajetória como encenador nesse período?
Primeiramente, gostaria de agradecer imensamente essa oportunidade de diálogo e troca de conhecimento que vocês da 4Parede estão me proporcionando.
Na verdade, são trinta anos de teatro a contar do meu primeiro curso como ator, iniciado no dia 10 de março de 1990, no SESC-Santo Amaro, no Recife. Chamado, na época, de Curso Regular de Teatro e coordenado pelo grande agitador cultural e encenador José Manoel da Silva Sobrinho.
Para mim, foi muito importante começar sob a batuta dele, por sua visão do teatro como potência de transformação social. Costumo dizer que o teatro me salvou enquanto ser humano, cidadão e artista e José Manoel é o responsável por isso…
É interessante frisar que o Recife tem uma tradição de cursos para atores e atrizes, portanto, todas as pessoas que querem começar a fazer teatro na cidade, têm que começar pela atuação. É uma tradição da cidade que, até hoje, não possui curso sistemático para encenadores/as, por exemplo.
A encenação chegou pra mim já no segundo semestre de 1990, quando juntei mais quatro colegas do Curso Regular do SESC (Eduardo Albuquerque, Sérgio Caetano, Ceça Cavalcante e Etiene Santos) e fundei o Grupo Cênico Trampolim, montando o espetáculo ‘Quem matou Zefinha?’, de Virgínia Lúcia da Fonseca Menezes. O mais engraçado é que, mesmo sem o conceito de teatro colaborativo à época, trabalhamos tão horizontalmente que o espetáculo foi, realmente, uma criação de todos/as.
No ano seguinte (1991), graças ao incentivo de José Manoel, me inscrevi no vestibular da UFPE, para cursar Educação Artística com Habilitação em Teatro (antigo nome do curso). Foi quando travei contato com o universo acadêmico, algo tão distante de minha realidade, até então, pois vindo do bairro de Jardim Brasil 2, na periferia de Olinda, teatro e universidade não faziam parte de meu repertório sociocultural.
O que havia me formado, até o momento antes do SESC e da UFPE, foi o complexo de práticas culturais de Olinda e Recife: os maracatus, os caboclinhos, as cirandas, os cocos, os frevos, os pastoris, as quadrilhas juninas (nas quais eu já participava do casamento matuto desde os 7 anos de idade).
Transitar entre esse universo cultural (que me formou artística, conceitual e tecnicamente) e o ambiente acadêmico foi bem difícil pra mim, pois os conteúdos, conceitos e práticas apreendidas na rua eram rechaçadas na sala de aula. Isso me fez ter que buscar um caminho no qual pudesse construir este diálogo por mim mesmo.
Foi no lugar de encenador que comecei a desenvolver essa pesquisa sobre possíveis trânsitos entre teatro e cultura brasileira, o que me levou, mais tarde, a pesquisas artístico-acadêmicas no mestrado, doutorado e pós-doutorados, encruzilhadas que persisto e persigo até hoje.
Sua pesquisa tem se voltado para a investigação do que você denomina como ‘corpo-máscara’ como poética cênica e como procedimento transcultural em alguns trabalhos artísticos. Você poderia falar um pouco sobre esse conceito?
É importante frisar, nesta trajetória, que minha produção de pesquisa sempre foi inspirada pela prática artística, tendo cada espetáculo uma questão conceitual e pedagógica a perseguir, a mergulhar.
Foi neste diálogo profundo entre prática artística, práticas culturais e pesquisa acadêmica que a noção de Corpo-Máscara foi se delineando no meu pensar-fazer artístico. Ela não está associada apenas a poéticas cênicas, mas, sobretudo, a questões metodológicas, conceituais e pedagógicas da cena.
Venho abordando a noção de Corpo-Máscara desde 2002, quando comecei a pesquisar o Cavalo Marinho Estrela de Ouro, do Condado (PE), em meu processo de doutoramento. No momento da pesquisa doutoral, chamava de “corpo mascarado” este fenômeno da espetacularidade no Cavalo Marinho, por compreender que o corpo do/a brincador/a de Cavalo Marinho é uma construção conceitual e somática una, e não somente a máscara que seria propulsora da expressão dos corpos no brincar.
Já em encontros, palestras e conversas entre pesquisadores/as, eu já vislumbrava, desde esta época, a ideia da noção de Corpo-Máscara como aglutinadora destas experiências entre cenas e culturas.
Assim como a professora e pesquisadora Sônia Machado de Azevedo (2004, p. 136) já preconizava sobre a noção de um corpo como máscara para a atuação teatral, sendo este ‘o desenvolvimento de uma consciência corporal que permita o jogo, o risco, o erro; uma consciência criança, uma consciência artista, que, atenta ao que ocorre no corpo, possa permitir o acaso, a surpresa, o susto’, eu atentava para esta mesma noção nos corpos dos/as brincadores/as do Cavalo Marinho pernambucano.
Já Andréa Stelzer, em 2008, defende sua dissertação de mestrado, na qual discute exaustivamente em sua escrita a criação de personagens nos espetáculos da Amok Teatro, a partir do trabalho do ator Stephane Brodt. De sua dissertação, ela escreve um artigo no qual utiliza a noção Corpo-Máscara e enfatiza em seu resumo (2009, p. 01): ‘A máscara não está limitada apenas ao rosto, mas mantém estreitas relações com a mímica, a aparência global do ator e mesmo a plástica cênica. […] O corpo máscara anuncia virtualidades que devem ser atualizadas pelo ator’.
Porém, nas proposições de uma parte de pesquisadores/as da noção de Corpo-Máscara no teatro, não há lugar para a ressignificação cultural da experiência com a máscara, tornando-se a mesma uma cópia de cânones eurocêntricos que forjam uma hegemonia sobre as técnicas de utilização da máscara, ou de um suposto Corpo-Máscara no trabalho do ator e da atriz. Além de enfatizar poéticas já endurecidas do teatro, mesmo com uma pseudo máscara de brasilidade.
Então, os meus dois pós-doutorados (o primeiro, sobre a Biomecânica Teatral de Meierhold, de 2007 a 2009; e o segundo, sobre a metodologia com máscara na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, entre 2015 e 2016) contribuíram para que eu pudesse, realmente, aprofundar nesta noção na sua amplitude transcultural (Fernando ORTIZ) e transcriadora (Haroldo de CAMPOS), em diálogo com as reflexões das Epistemologias do Sul (Boa Ventura de Souza SANTOS, et alli), que pregam o fim das hierarquias epistemológicas nos âmbitos cultural, acadêmico e artístico.
Sendo assim, a noção de Corpo-Máscara ultrapassa uma visão utilitária da máscara como mero mecanismo de revivescência de tradições teatrais deslocadas de seus contextos socioculturais, mas promulga – através de sua pedagogia viva e dinâmica – uma forma de pensar-fazer teatro como ideia silogística e lugar de metamorfoses, transculturalidades e transcriações cênicas.
É notória a proliferação do ensino da máscara como um resquício de modelo de tradição, muito mais que como uma possibilidade metodológica de compreensão dos atributos específicos da cena e da atuação. Nessa mentalidade, vemos cópias de Arlecchinos, Pantalones, Zannis, Clowns e bufões que se espalham pelo Brasil afora, sem a devida reflexão transcultural sobre a importância desses aprendizados e da forma como eles podem ser aplicados a nossos contextos socioculturais e artísticos.
Neste caso, a máscara torna-se o molde de um personagem ou tipo e não um modus operandi de aprendizados potenciais – conceitual, artístico e poético – para o desenvolvimento de capacidades criativas para a cena e, consequentemente, de sua ressignificação.
Evidenciada esta análise, a noção de Corpo-Máscara traz a ideia de um corpo metamorfoseado e híbrido, cenicamente transculturado, independentemente do suporte da máscara-objeto que o fomenta. Esse movimento leva em conta uma pedagogia transcultural e transcriadora, na qual elementos de tradições teatrais e tradições culturais são estimuladores de cenas e atuações outras que não imitações e/ou folclorizações das dinâmicas artístico-culturais já existentes.
Flertei com a Etnocenologia durante meu doutorado, mas não me filio a esta disciplina hoje em dia por perceber as fragilidades epistemológicas e conceituais que a permeiam, assim como uma visada ainda bastante eurocêntrica no trato com as artes e as culturas do Sul. A noção de Corpo-Máscara me ajuda a questionar e refletir sobre as bases de pensamentos mais coloniais, por exemplo.
Como podemos pensar o corpo-máscara para além dos limites da cena teatral ou performativa? Em que as questões de identidades, subjetividades, singularidades, presentes na vida social, se relacionam ao conceito de corpo-máscara?
É nesta perspectiva que a noção de Corpo-Máscara extrapola a cena teatral ou performativa, pois abrange também as práticas culturais, respeitando suas epistemologias próprias, suas formas de fazer e de refletir através de seus próprios corpos. O teatro nunca perdeu o elo com as práticas culturais, independentemente de cada período histórico.
O que acontece é que sempre há uma tendência a se hierarquizar o que é “arte maior” e “arte menor” e, neste contexto, o teatro eurocêntrico sempre esmagava ou se apropriava do que não se submetia a ele. É preciso pensar o Corpo-Máscara exatamente neste lugar de provocador e de potência para romper com as hierarquias e as supremacias, tanto nas práticas culturais, quanto nas práticas teatrais.
Em meu livro A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado – PE) (2006), denomino de Corpus Espetacular esse amálgama que é a relação entre o cotidiano e a brincadeira dos/as participantes da festa. É este corpo limítrofe entre as práticas diárias, as formas de relação social, de trabalho e o corpo festivo que se torna potência identitária de sua gente.
Já no âmbito do teatro, da performance, da cena em geral, eu venho chamando este fenômeno de Corpus Cênico, que está intrinsecamente ligado à noção de Corpo-Máscara: a criação cênica mobilizada pelo corpo, suas culturas, identidades, subjetividades, conexões sociais, etc., em prol de uma transcriação e uma transculturalidade.
Isto é, todas as referências humanas, sociais, políticas, estéticas que transitam na vida do ser humano serão disparadores de algo que estará por vir, latente e pleno de frescor, algo inusitado, inesperado, que é não somente um somatório das referências que forjaram este ser, mas algo que brota daí e já não é mais a mesma coisa.
Em suas pesquisas, tanto sobre encenação quanto sobre corpo-máscara, você tem estabelecido um diálogo intenso com universidades de Paris e da Itália. Fala um pouco de tua experiência nesses países.
Uma das coisas mais importantes que aprendi nestas experiências na Europa foi a percepção de como temos uma mentalidade colonizada artisticamente no Brasil. Vi e vejo muitos/as brasileiros/as reverenciando como deuses/as artistas da cena europeia. São artistas geniais, sem dúvida, mas que fazem parte de um contexto que não é o nosso e, exatamente por isso, não devemos copiá-los ou fazer deles nosso lugar de “status” teatral.
Lembro-me de minha orientadora do segundo pós-doutorado, a professora doutora Kátia Légeret, que disse um dia em sala de aula: ‘A revolução cênica virá do Sul!’. Esta frase tão coerente repercutiu de maneira decisiva sobre minhas questões relacionadas a essa tendência em reproduzir ou canonizar artistas estrangeiros.
Nos cursos de Biomecânica Teatral de Meierhold, na Itália, por exemplo, experimentei muitas vezes princípios do frevo, do caboclinho, do coco, para apresentar exercícios biomecânicos. Isso que gerava no professor russo Gennadi Bogdanov a sensação de que eu estava atuando com princípios da Biomecânica Teatral de Meierhold. Era isso e aquilo e, ao mesmo tempo, já era outra coisa.
Enquanto isso, a maioria da turma estava ávida para aprender de forma enrijecida os études biomecânicos dos idos de 1910, 1920, criados por Meierhold, isto é, copiá-los ipsis litteris. A questão central é que Meierhold nunca pensou em cristalizar esses études, cada um foi inventado por ele e sua equipe e servia para resolver problemas concretos ligados aos espetáculos em construção.
O mesmo se deu em meu estágio de um ano na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq: a maioria dos/as artistas brasileiros/as que conheço no trabalho com máscaras sacralizam a máscara neutra, a larvária, assim como as da commedia dell’arte, as balinesas, o nariz do clown, etc., como se elas fossem a revivescência de um tipo específico de teatro.
Para a tradição lecoquiana, são ferramentas pedagógicas que vão mobilizar o corpo para uma consciência da cena (espaço, atmosfera, energia, tempo-ritmo, composição plástica do corpo, etc.). Tanto que Lecoq começou sua escola com máscaras dell’arte e logo viu que era uma armadilha trazê-las para um processo pedagógico intercultural, pois estaria arriscando ser uma cópia de uma invenção italiana.
Ele, então, toma a decisão de construir a cada curso, com os/as alunos/as, o que ficou conhecido como máscaras expressivas, isto é, transcriadas a partir dos princípios gerais de máscaras de todo lugar.
Claro que não posso negar a influência teórico-prática desse olhar europeu sobre a arte. A questão não está aí. A questão está em torná-los modelos sem um olhar crítico, sem uma visada que leve para outro domínio, outra construção criativa, outro lugar no mundo cênico não-europeu.
Além disso, com a disseminação das pós-graduações brasileiras, também há muito material conceitual e reflexivo sobre as práticas cênicas, assim como em outros países não europeus. O ideal é ter acesso a tudo isso para se reconstruir, deixando para trás a mentalidade colonizada e subserviente a dogmas estrangeiros.
O espetáculo Pulsações, seu trabalho mais recente, é livremente inspirado no livro Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector. É sua segunda encenação inspirada na obra dessa autora brasileira, a primeira tendo sido A Hora da Estrela. Fala um pouco mais dos processos de criação de Pulsações e sua relação com a anterior.
Lispector entrou na minha vida artística em 2015, quando o COLE – Coletivo Livre de Espetáculos, liderado por mim, e a Cia. de Teatro Cordão Encarnado, do Rio de Janeiro, fizeram uma parceria para montar esse clássico brasileiro com adaptação e encenação minhas.
Com apenas um ator (Angelo Mayerhofer) e uma atriz (Joelma di Paula), eu deveria montar um espetáculo com nove personagens e o recurso foi, logicamente, o uso da máscara. Este processo foi crucial para o desenvolvimento de meu projeto de pesquisa do pós-doutorado sobre Lecoq, pois muitas questões surgiram, na prática, sobre os usos e os mitos sobre a máscara cênica.
Em 2019, Rebeca de Oliveira e Giovanna Boliveira, alunas do Bacharelado em Interpretação Teatral da Escola de Teatro da UFBA, me convidaram para o que seria a montagem de conclusão de seus cursos, em nível de graduação.
Num processo laboratorial de busca de um Corpus Cênicos, chegamos a Lispector por uma demanda de se discutir sobre o feminino, seus conflitos e suas formas de resistência. Neste caso, não houve uma adaptação do livro, mas um mergulho em temáticas lispectorianas e das próprias atrizes.
As poéticas cênicas dos dois espetáculos são bastante distintas, apesar dos princípios contidos na obra de Clarice Lispector e na noção de Corpo-Máscara. Aí que está a chave: Corpo-Máscara não cristaliza poética nem reproduz estéticas, mas mergulha no universo abismal da criação, da subjetividade, da complexidade, do rompimento dos paradigmas já ultrapassados de que teatro é isso, dança é aquilo, performance é acolá. A força das palavras não é mais importante que a força das imagens e a ideia de teatro linear, de pensamento linear, de defesa de tese sobre a cena, se esfacela.
Não considero que tenho uma poética cênica. Tenho princípios que, para mim, são basilares para processos de criação, cujo eixo é o corpo dos/as participantes e nada mais. Tudo surge da resposta desses corpos aos estímulos gerados num processo coletivo.
Nunca entro numa montagem com concepção construída, mas com o intuito de fazer vibrar nos corpos o que eu chamo de “elementos imateriais da cena”: energia, tempo-ritmo, atmosfera, consciência espacial, consciência plástica do corpo no espaço e imagens emblemáticas.
A partir desses elementos imateriais, estimulo o elenco a criar imagens e mergulhar nos universos propostos. O que resultar dessa experiência será o espetáculo. Para mim, o mais importante é a qualidade e profundidade do processo. O espetáculo será o resultado coletivo desse encontro.
Assim se deu o processo de Pulsações. De forma colaborativa, iniciado sem nenhuma referência ao que montar, apenas questões sobre o feminino e o teatro, trazidas pelas atrizes. Com esse material, começamos pelo corpo na busca de equalizar as potencialidades das duas atrizes, na busca de um Corpus Cênico que refletisse o espelhamento de uma sobre a outra, como duplos.
Neste contexto, criamos nosso processo específico para este espetáculo, brincando com estilos diversos de interpretação, como o realista, o épico, o absurdo, o bufonesco, o clownesco, o expressionista, sem se filiar a nenhum deles, transitando entre o teatro, a dança-teatro, a performance e o Corpo-Máscara.
Das imagens surgidas nos laboratórios, o espetáculo foi tomando corpo, sem nenhuma preocupação com lógica ou com discurso linear. Experimentamos várias possibilidades, vários caminhos, como a yoga, a capoeira, o maculelê, a Biomecânica Teatral, a máscara, mas derivando para outros domínios para além desses, transcriando essas referências.
O mais interessante é que, com Pulsações, comemoro meus 30 anos de teatro, além de ser meu espetáculo de despedida de Salvador. Cheguei em Salvador em 2000 e trouxe Álbum de Família, de Nelson Rodrigues (meu espetáculo recifense com Leda Oliveira, Max Almeida, Mônica Figueira, Cristiane Santos, Cristiane Maya, Everson Luiz, Edjalma Freitas, Conceição Santos, Sandro Sant’Anna e Angélica Oliveira) para uma temporada na cidade, em 2001, considerando-o meu espetáculo de chegada na Soterópolis.
Com Pulsações, despeço-me também artisticamente da cidade, partindo para outras paragens, onde continuarei a desenvolver e aprender sobre esta mágica que é a arte das cenas e das culturas.

Espetáculo ‘Pulsações’ | Imagem – Divulgação
Por fim, considerando o momento de quarentena em que estamos vivendo, devido à pandemia de covid-19, você poderia falar um pouco como tudo isso tem afetado seu trabalho?
Esta pandemia chega, sobretudo para a classe artística brasileira – já tão desprestigiada pelas instituições políticas e pela mentalidade preconceituosa da sociedade – como um grande desafio, pois obriga-nos a construir outros paradigmas.
A virtualidade como sendo o recurso possível de contato criativo gera uma outra forma de se fazer teatro, chamado por alguns/algumas pesquisadores/as de teatro virtual. É um grande campo de pesquisa e criação que não vai se encerrar com o final da quarentena. O teatro sempre se reconfigurou através dos tempos.
Cabe, agora, perceber quais as potencialidades e diálogos dessa forma outra de produzir e partilhar arte. A grande especificidade das artes da cena, a presencialidade, clama por este espaço comum, de comuna, de congregação e troca sinestésica de energia. Porém, outras espacialidades se abrem a partir deste período pandêmico.
Na verdade, o mundo está se reconfigurando em todos os sentidos, nas relações interpessoais, na forma como se pensa as políticas, as culturas e as artes, através de movimentos a(r)tivistas de extrema importância. Uma perspectiva é a discussão muito em voga nas artes cênicas de uma cena decolonial.
Não há como falar de pandemia sem falar de decolonialidade, pois são redimensionamentos profundos das diversas formas do existir. Meu trabalho vem sendo afetado há anos, através desses diálogos movediços e fascinantes com as culturas brasileiras.
A pandemia também veio reforçar laços, criar redes de apoio, praticar o acolhimento e a solidariedade, desenvolver as relações de afeto. Assim como a vida, o teatro, as artes, as culturas, são movimento. A roda do mundo precisa girar, encontrando caminhos de interação entre os seres.
Referências
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2004.
CAMPOS, Haroldo de. Transcriação. (Org) Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2015.
OLIVEIRA, Erico JosÉ Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife: SESC-Pernambuco, 2006.
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__________________________. Teatralidades híbridas y elementos inmateriales en Esta propiedad está condenada de Tennessee Williams. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, D.C. Colômbia, v. n. 1, p. 153-165, enero – junio de 2015.
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ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Prólogo de Bronislaw Malinovski. Barcelona: Editorial Ariel, 1973.
SANTOS, Boaventura de Sousa e Maria Paula Meneses (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina SA, 2009.
STELZER, Andréa. O corpo máscara do ator contemporâneo. Cardenos Virtuais de Pesquisa em Artes Cênicas, Rio de Janeiro, RJ, UNIRIO, p. 01-08, 2009.