#16 Urgências do Agora | Fala porca, cansaço em dia
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Arte – Rodrigo Sarmento
Nos últimos dias tenho pensado bastante sobre o eu corpa, sobre o mundo, sobre essa casca dotada de racionalidade, que hoje se torna público alvo y produto.
“Tudo está melhorando”, dizem. A realidade contrasta. Uma parte dessa população diabólica, dissidente, desertora das sagradas normas de gênero y sexualidade conseguiu escancarar os espaços para além das ruas, mas precisamos ser 3,4,5…10 vezes melhores que qualquer ser humano denominado saudável, legítimo, digno y, de forma equivocada, posto como natural. Homem cisgênero, heterossexual y branco.
Enquanto integro o elenco de um espetáculo em temporada, produzo um ensaio, tiro de minhas entranhas um quase projeto de mestrado, sou confrontada com espancamentos, com estatísticas que me esperam na próxima esquina, com marcas de risos/xingamentos nas costas, com a feira que está escassa, com a falta de moradia, com os cigarros que acabaram, com a possibilidade de envelhecer…travesti envelhece? Como vai ser? Quem estará ao meu lado? Me encontro com o medo constante de não ter tempo de retificar meus documentos y morrer como um homem, de em minha lápide ser encontrado um nome que não uso há 7 anos. Y as/os irmãs/os de cor, dissidência, classe que são arrancados desse mundo cão todos os dias? Há, sem dúvida, muita dor aqui dentro a ser sentida.
Djiag, bicha!
Sem tempo, irmã/o!
As contas precisam ser quitadas.
Não durma.
Produza!
Você é artista, pesquisadora?
Ou uma fraude?
Já leu?
Faça!
Não posso me permitir ser, não posso dar vazão a meu lado emocional, minha cabeça
é um balão y meus pés precisam ser raízes para que eu não voe. Tive a possibilidade/oportunidade de sair de uma Universidade com um diploma, 7 anos que na via de regra deveriam ter sido 4, carta de jubilamento da reitoria no e-mail, bolsa cortada, moradia? Ou finaliza TCC ou paga aluguel, produza, produza y produza! Apesar de tudo, saí. Y agora? Sou como um cão domesticado? Saí dali por ter essa capacidade? Quais sistemas, dispositivos, políticas regem, condicionam y me tragam?
Traveca, terceiro mundista, precarizada, cercada de monstruosidades dissidentes, matando cinco leões por dia, incluindo eu mesma, minha melhor/pior amiga.
Por vezes o cansaço me toma, mas meu cu tem poder y sinto uma força se irradiar pelas veias. Talvez por este ímpeto anal estou aqui sentada, em frente a um computador emprestado, encontrando palavras, significados, coerência y coesão para falar de um mundo regido pelo absurdo, pela falta de sentido, pela ruína.
Agradeço a Foucault, ao maravilhoso Mbembe, ao recém conhecido Han por conseguirem definir de forma prolixa, refinada, acadêmica o que observo, vivo, dialogo com pessoas companheiras y não sei dizer com tamanha elegância y finesse. Por nomearem os sistemas políticos, os poderes que nos aprisionam, nos adoecem y nos matam.
O conhecimento tem a sublime capacidade de me trazer uma sensação dúbia de liberdade (mesmo que na prática eu veja que ela é ilusória) y angústia.
Ainda criança era incentivada a estudar, ler porque uma criança como eu, vinda de onde eu vinha possuía somente o conhecimento como valor. Mal sabia, que aquele conhecimento que fui condicionada a buscar era para me fazer máquina, para me fazer mais valia, mas acabou conduzindo-me direto para fronteiras, para o problema, para a abertura do olho.
Ainda que angustiante, o conhecimento ao menos nos possibilita reconhecer nossas limitações enquanto agentes na missão impossível da vida, criando possíveis estratégias de fuga, projetando destruições, sonhando em como seria viver y não apenas sobreviver.
Há muito não consumia produções artísticas, meu contato com a Arte tem sido tal qual esse contrato fajuto da Cisheterossexualidade Ltda que chamam de casamento: conturbado, fadado a um possível fracasso, difícil de sobreviver, amor y ódio caminham de mãos dadas. Já me divorciei y reatei, no entanto, nossa relação hoje é aberta a possibilidades.
A busca por explorar as possibilidades, de me fazer útil, de contemplar uma experiência estética, de precisar finalizar um ciclo me levou a um espetáculo pelas artistas envolvidas, pela temática, pela estética, lancei o eké y com base em fotografias, videos y entrevista, analisei y dediquei um capítulo de meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre os quais vocês poderão conferir, pois aqui realizo o autoplágio, a divagação, o escárnio y a confusão. Só posteriori foi que pude ver a obra completa online, triste por não ter experienciado presencialmente.
Em Por Onde Andam os Porcos? K.Iara assume a direção geral y é intérprete-criadora junto a Junior Foster, Meuja Gonzaga, Natalie Revorêdo y Marcela Aragão. Com a direção de arte sendo assinada por Iagor Peres.
O espetáculo esteve em cartaz em curta temporada na Galeria Janete Costa (PE) em 2019 y no Teatro Sérgio Cardoso (SP) 2020, quase tendo sua apresentação cancelada por conta da pandemia por COVID-19.
O experimento traz a imagem do porco capitalista proposta por George Orwell no livro A revolução dos bichos y trabalha com as ideias do livro 24/7: capitalismo tardio e fins do sono, de Jonathan Crary; y a Sociedade do Cansaço, de Byung-chul Han.
Em conversa com Iara, pude conhecer mais sobre o processo de criação do espetáculo que foi se transformando ao longo dos ensaios. O porco, no início, era a imagem central y surgiu no tempo em que ela morava no bairro da Várzea, na cidade do Recife. Ela conta que foi uma época de muitas trocas artísticas com Iagor Peres, y que já existia entre elas o desejo de produzirem algo juntas. Em uma dessas idas y vindas de casa, ambas se depararam, numa rua escura, iluminada por um único poste de luz amarelada, com um porco gigante caminhando sozinho no meio da madrugada. “Pra onde vai esse porco?” Assim, após trocarem ideia sobre o que aquela imagem suscitava, escreveram o projeto y o submeteram ao edital do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), o qual foi aprovado posteriormente.
Vivemos num momento de crises paradigmáticas em que as linguagens da arte se hibridizam y se fundem sendo difícil categorizá-las, costume que julgo antiquado y irrelevante. Os “Porcos” borram fronteiras y muros.
Um imenso salão branco preenchido por luz branca. Limpeza, amplitude, atenção, foco nas atividades. Essa luz é constante em quase todo o experimento.
A luz branca é conhecida por ter um comprimento de onda azul muito pronunciado, famosa por perturbar nosso sono pela redução da produção de melatonina – hormônio do sono que é liberada ao escurecer – no corpo dos seres humanos.
Enquanto as pessoas entram y se acomodam, as criadoras-intérpretes caminham de um lado para o outro. Algumas dessas pessoas entram no jogo, ficando nítido que ali também não existe uma distinção hierárquica do artista x público, do vocês lá y nós cá: todas as pessoas fazem parte do espetáculo. Não há um foco, um ponto, cada corpa revela uma possibilidade y uma perspectiva.
Os movimentos, linhas y posições se alteram a partir de estímulos no espaço. O caminhar é tedioso demais, precisamos correr, nos reorganizar. Há uma constante inquietação que faz com que as artistas busquem movimentos novos. Entre um acelera, desacelera, para, retoma, muda de rota, há um jogo de ritmo estabelecido pela conexão do olhar com o outro, se não ficar ligeira vai ficar pra trás, não vai ter o mesmo desempenho. Excluída.
Na sociedade movida pelo desempenho, entramos numa competição conosco, caindo no abismo do próprio fracasso. Não há uma autoridade a nos comandar ou explorar nossa força de trabalho: precisamos obedecer a nós mesmos. Há uma ilusória ideia de liberdade. Você supostamente é responsável pela sua vida, pelos seus bens, por tudo o que tem y pelo o que não tem. Se você não potencializa o seu desempenho, você é culpada/o pela sua ruína.
Então seja uma pessoa positiva, se esforce, produza, supere. Yes, We can! É uma sociedade movida por um elevado padrão de sucesso, pela competência. Nos leva a uma auto agressão y auto acusação que culminam num adoecimento y fragmentação social.
Agressor é ao mesmo tempo vítima e sua liberdade imersa nessa imbricada rede de auto imposições se transforma em violência.
Em uma parede ao fundo, uma projeção anuncia o primeiro ato, VITIM A LGOZ.
O jogo muda.
Ingredientes:
6 seres humanos
1 espaço
Modo de preparo:
Em dupla, experimente tocar em alguma parte da corpa de sua/eu parceira/o. Este, por sua vez, deve tocar em sua mão y em seguida tocar em alguma parte da corpa da/o outrem.
À medida que o jogo avança, experimente se desvencilhar de outras formas do toque, experimente deslocamentos, ritmos, troca de duplas, surpreenda sua/eu colega, derrube-a/o.
As corpas vão se despindo, se reunindo y caminhando lentamente em uma mesma direção. Em círculo. Para, em seguida, se dispersarem. Cada uma para o seu lugar, cada uma com seu derretimento em meio a decadência y o caos. As corpas despencam em histeria coletiva rumo ao chão.
Qual o limite da corpa?
Qual o limite do eu?
Ainda que para a sociedade do desempenho a corpa precise ser a única coisa do eu que deve ser mantida intacta, vida produtiva prolongada custe o que custar, a sede ambiciosa pelo sucesso nos colapsa, nos leva ao chão. Nos desconectamos do que sentimos. Apatia. Rotina. Ah, o cansaço…
ESQUECIMENTO é o segundo ato do espetáculo.
Sirene toca, corpos se levantam. Hora de levantar!
O funcionamento das corpas é levado a um nível insuportável. Excesso, curto período para se recuperar, respire na metade do tempo, se recomponha, reprima tudo o que sente.
FIM DO SONO é a terceira y última projeção do espetáculo.
Neste capítulo a grande caixa branca é imersa em escuridão, corpas nessa sociedade descansam?
Lanternas são acopladas nas cabeças das criadoras-intérprete enquanto estas giram em torno de seu próprio eixo. A luz tem formato arredondado, ilumina com o movimento dos corpos os rostos de quem as assiste.
É a imagem de um modelo não humano, não vivo, não orgânico que se inscreve sobre as corpas. Eficiência, durabilidade y exposição. Estamos em guerra?
Atente para o que pode interromper o fluxo da produção, circulação, consumo de mercadorias: y a aniquile.
Seria o sono a única função orgânica que não pode, ainda, ser capturada pelo capitalismo?
Há algum tempo achava y verbalizava que o sono era uma perda de tempo…
Neste sistema, todas as pessoas são capturadas por essa teia de eficiência, de carrasco de si mesma, mas não posso deixar de pontuar que nós pessoas negras vivemos à mercê disso há tempos. Como diz Jota Mombaça em seu plantação cognitiva “O corpo negro é uma máquina do tempo.”
Parece-me que vivemos num looping, mesmo quando alcançamos algum êxito estamos retornando ao mesmo problema. Nossas identidades sempre estão em negrito, sempre chegam antes de qualquer coisa. Nossas produções só valem por esse sentido, nossas identidades se tornam narrativa-produto. Ainda estamos submetidas à exploração.
ELKE: Amiga, como você enxerga sua corpa no mundo das artes?
IARA: Enxergo entre a cereja do bolo y o risco.
AMBAS: Risos.
Existe hoje uma exaltação de produções de corpas dissidentes, racializades, gordes, corpas que historicamente foram subalternizadas y desvalorizadas. Estamos na mira da economia, com nossas narrativas expropriadas, ascendendo socialmente y competindo entre as nossas, quem é caça y quem é predador? No corre do cash, amores…Ninguém quer ser janta.
Partilho do mesmo pensamento de Iara, o tempo todo há uma requisição de nossas corpas, há uma exigência estética, ética y política. Há a necessidade extrema de que nossas corpas y história de vida sejam públicas. Há o medo constante de falharmos y sermos esquecidas, se não nos enquadramos como sobreviveremos? Quantas concessões são necessárias para tornar a sobrevivência em vida? Ou será o inverso?
Como uma corpa pode se adaptar a ruína, ao colapso, ao caos da competitividade excessiva?
Quais novas tecnologias podem subverter nossa organicidade, prolongando nosso tempo útil em função da produtividade?
Pulmões aumentados, braços aumentados? Que tal uma extensão entre boca-cu?
Ainda sob penumbra projeções de raios atravessam as paredes, o chão, o teto, estamos num laboratório. As luzes brancas se acendem y as corpas das criadoras-intérpretes estão deformados por uma placa translúcida, aos poucos elas se mostram y nos revelam seus novos corpos, seus novos órgãos, agora, adaptados para este novo mundo, explorando as possibilidades de movimentos que estes lhes trazem, até, por fim deixar o público consigo.
Durante o espetáculo, o tempo todo um drone grava a sessão. Sorria, você está sendo filmado!
Na sociedade do desempenho a governança assume o modo de vigilância, olhos y ouvidos por todos os lados sem que tenhamos essa percepção, já se afastou de seu celular hoje?
O espetáculo conta com a presença constante da luz y do som. Não é dita uma única palavra, a comunicação é inteiramente visual. Espectador y criadoras-intérpretes estão em estado de vigília permanente.
O tédio y o excesso de positividade são denunciados pelo excesso de impulsos, informação, atividades y estímulos através dos jogos. Hiperatenção. Mudanças de foco.
Não existe uma preocupação em encontrar soluções para as crises desse mundo y nem traz a pretensão de desenhar um possível mundo novo. Como indicado por Iara, em entrevista, a ideia é propor a divisão da responsabilidade, para que em coletivo possamos nos aproximar do que realmente somos.
Contudo, a união de nossas vontades individuais produz a melhor y mais racional solução para o coletivo?