#18 Atos de Retomada | Buscando fôlego: O teatro de grupo da Baixada Fluminense em meio à pandemia

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Leandro Fazolla
Ator e produtor da Cia Cerne (RJ), Doutorando em Artes Cênicas (Unirio) e Mestre em Arte e Cultura Contemporânea (UERJ)
Uma das maiores falácias disseminadas ao longo da pandemia de COVID-19 no Brasil foi a ideia de que “o vírus é democrático”. A frase, que teria o pretenso intuito de indicar que o vírus atinge todos os tipos de pessoas, independentemente de idade, etnia ou classe social, é perversa ao ignorar as desigualdades no país, nos mais diversos setores. Nesse sentido, é bastante emblemático lembrar que, no Rio de Janeiro, a primeira morte confirmada pela COVID-19 foi a de Cleonice Gonçalves, trabalhadora doméstica, moradora da periferia, contaminada por sua patroa que contraíra o vírus em uma viagem internacional. Se as condições de enfrentamento do vírus já são diferentes no que diz respeito a classe social, isso parece se escancarar ainda mais quando se leva em conta essas diferenças e seus reflexos no setor cultural, um dos mais impactados pelas regras de isolamento social devido a seu caráter coletivo.
O Rio de Janeiro é um estado composto por grandes disparidades no que diz respeito ao seu cenário cultural e artístico. Se, por um lado, a capital apresenta uma produção efusiva, com grupos e artistas de renome e espetáculos patrocinados por grandes empresas, por outro, regiões periféricas concentram cidades onde muitas vezes a cultura respira por aparelhos, uma vez que não possuem nenhum tipo de investimento e sequer um único espaço cultural municipal para receber trabalhos artísticos.
A Baixada Fluminense é uma das regiões mais importantes do estado do Rio de Janeiro. Composta por cerca de quatro milhões de habitantes, segundo dados do IBGE, possui treze municípios: Itaguaí, Seropédica, Paracambi, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti. A Baixada é também uma sub-região que constitui a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar de ser a segunda região mais importante do estado em termos econômicos e uma das microrregiões em destaque do país, o território é envolvido em conflitos ambientais, possui um desenvolvimento desordenado e enfrenta problemas relativos à poluição e violência. A histórica ausência de políticas públicas consistentes em relação a tal cenário produz diversas carências de ordem social, atingindo, inclusive, o desenvolvimento cultural da região.
São poucos os grupos teatrais que conseguem se desenvolver na Baixada Fluminense, se comparados a outros territórios como a capital do Rio de Janeiro. Em sua maioria, os que surgem são oriundos de escolas regulares, igrejas, cursos livres ou outras iniciativas capitaneadas por agentes culturais locais. Nas últimas décadas, artistas da região vem empreendendo esforços, sobretudo coletivos, para gerarem mudanças no setor artístico local. Ações como a Rede Baixada em Cena – coletivo que abrange quase vinte grupos de diversas cidades da região – somadas a novas políticas descentralizadoras, como a recente implantação do Sistema Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Lei 7.035[1], foram responsáveis por um gradual avanço no setor da economia criativa da Baixada Fluminense.
Hoje é possível ver uma série de grupos acessando espaços da capital, onde se localiza o chamado “circuitão” do teatro carioca, e disputando (e vencendo!) editais importantes como o Rumos Itaú Cultural (a Cia Cerne foi contemplada no ano de 2018), ou o Prêmio Culturas Populares, do MinC, recebido pela Cia de Arte Popular no mesmo ano. Isso também se confirma pelas recentes – e inéditas – aparições de artistas da Baixada em premiações bastante conhecidas do teatro do Rio de Janeiro: como Leandro Santanna, da Cia Queimados Encena, indicado ao Prêmio Shell na categoria de melhor ator, em 2018; Madson Vilela, do Teatro Baixo, ao Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças na categoria de melhor ator solo, em 2019; e a significativa vitória da Rede Baixada em Cena no Prêmio Shell de 2018, na categoria Inovação, “pelo movimento de discutir a criação estética e o poder de mobilização de 18 coletivos de 13 cidades da Baixada Fluminense”. Todas essas conquistas são sintomas de um circuito teatral em ebulição e de curva ascendente, surgido a partir de uma região sem nenhum tipo de valorização pública à arte e à cultura.
E então a pandemia.
Com a explosão da COVID-19 no Brasil, da necessidade de novas regras de isolamento social e do lockdown instituído, muitas companhias tiveram que interromper projetos, planos, apresentações e contratos já assinados. A Cia Cerne, da qual participo, é uma companhia fundada na cidade de São João de Meriti no ano de 2013. Ao longo do tempo, foi consolidando seu trabalho na cidade, fechando parcerias para fomentar a cena local e circulando festivais em todo o país. Seu mais recente trabalho, Turmalina 18-50, conta a vida do líder da Revolta da Chibata, João Cândido, com enfoque especial para suas ultimas décadas de vida, quando morou em Meriti, onde ainda residem seus descendentes. O espetáculo, que estreou no final de 2019, se preparava para o início de sua circulação quando a pandemia avançou no país. Duas temporadas foram canceladas, assim como uma viagem que levaria a montagem pela primeira vez a São Paulo. Outras companhias e grupos passaram por processos semelhantes, com trabalhos cancelados e adiados sem nenhuma previsão de retorno.
Com o lento entendimento de que os artistas de teatro precisavam resistir de alguma forma, em meio a descrença até mesmo do próprio setor teatral, surgiram as criações online, que de alguma forma também deixava clara a existência de dicotomias entre os grupos do centro e os das periferias. Coletivos da capital migravam para o virtual amparados e patrocinados por grandes instituições e enalteciam o “caráter democrático” que este formato proporcionaria, uma vez que grande parte do conteúdo artístico criado era distribuído de forma gratuita na internet, e um possível fácil acesso permitia que pessoas das mais variadas regiões do país (e do mundo) pudessem consumir simultaneamente as mesmas obras artísticas. Neste mesmo momento companhias e público de regiões como a Baixada Fluminense passavam por dificuldades que iam desde a falta de recursos para investir em equipamentos como câmeras, aparelhos celulares com boa qualidade para filmagem ou equipamentos mínimos de iluminação, até mesmo ausência de internet de qualidade em alguns pontos da região, o que impossibilitava transmissões ao vivo. Assim como o vírus não é democrático, a suposta democracia dada pela internet também é seletiva.
Após mais de um ano parados, uma nova lufada de ar veio para os fazedores de cultura através da Lei Aldir Blanc e, tempos depois, de uma abertura gradual dos espaços culturais. Com o declínio no número de mortos e o início lento da vacinação no país, alguns grupos aprovados em editais públicos anteriores à pandemia começaram a ensaiar possíveis retornos aos seus projetos. A fim de entender como se deu este processo de retomada gradual, conversei com representantes de três importantes grupos da Baixada Fluminense: Juliana França, atriz e coordenadora do Grupo Código, de Japeri; Marcos Covask, diretor da Trupe Investigativa Arroto Cênico, e Alexandre Gomes, um dos gestores da Cia. Atores da Fábrica e da Escola Livre Fábrica de Atores e Materiais Artísticos, os três últimos de Nova Iguaçu.
O GRUPO CÓDIGO
Contemplado no Edital FUNARJ de Montagem Teatral (ano 2019) com o espetáculo Muros, o Grupo Código tinha realizado algumas de suas primeiras reuniões antes da pandemia e estava programado para estrear seu trabalho em 2020. Com a parada das atividades por conta da COVID-19 e sem saber por quanto tempo iriam permanecer em lockdown, o coletivo tentou dar continuidade à construção de Muros de forma remota, até mesmo para não perder os vínculos recém-criados entre a equipe.
De início, a experiência foi bem-sucedida. Mas sem nenhuma previsão de estreia e com o esgarçamento do tempo provocado por um isolamento que parecia não ter prazo para acabar, o grupo foi começando a se desgastar e cansar de tanto tempo de trabalho remoto. Os processos sufocantes da pandemia traziam abalos psicológicos que dificultaram a dedicação intensiva do grupo em relação ao seu processo de criação artística. Assim, o grupo passou a voltar seus esforços para questões administrativas e outras entendidas como mais práticas e urgentes no momento, como sua atuação na comunidade de Japeri, sua cidade-sede. Oriundo de uma das cidades mais distantes da capital, o grupo, que administra o Espaço Sociocultural Código, foi um dos grandes mobilizadores locais para auxiliar famílias em situação de vulnerabilidade.
Mais do que nunca, o trabalho artístico deu lugar ao trabalho social (dois dos pilares que sempre nortearam o coletivo). O grupo fechou parcerias com instituições públicas e privadas e foi às ruas distribuir kits de higiene pessoal, cestas de alimentos e até mesmo chocolates no período da Páscoa, uma forma de levar um respiro a tantas famílias atingidas implacavelmente pela COVID-19. Evocando Adorno e seu questionamento sobre a possibilidade de fazer arte após Auschwitz, uma das questões que mais pairava sobre o setor artístico, possivelmente, era como produzir arte após – e durante! – uma pandemia tão devastadora. Como fazer poesia – ou teatro! – em meio a quatro mil mortes por dia?
Com o retorno paulatino dos teatros no segundo semestre de 2021, o Grupo Código foi convocado a fazer sua temporada de estreia do espetáculo Muros. A volta foi conturbada, sobretudo pela perda prematura, para o vírus, de uma de suas atrizes e fundadoras, Rita Diva. A dor da perda se somava ao medo de se expor e, também, a certa euforia em sentir o retorno à normalidade (ou, ao menos, ao chamado “novo normal”). Juliana relembra: “foi uma sensação estranha voltar ao teatro depois de quase dois anos sem pisar num palco. Não consigo mensurar ainda o que eu sentia. A gente sabia que tinha que cumprir os prazos do edital, mas não sabíamos muito bem como agir, não podíamos interagir como antes. Me emocionei algumas vezes com a chegada do público, ao ver os espectadores voltando ao teatro, mas com a memória do falecimento da Rita e vendo pessoas ainda morrendo, me perguntava se o que estávamos fazendo era correto. Era uma mistura de emoções que eu não consigo mensurar. Se eu pudesse sintetizar, eu diria que era um estado de suspensão o que eu sentia a cada uma das oito apresentações que fizemos”.
A TRUPE INVESTIGATIVA ARROTO CÊNICO

O Mistério da Rua de Cima, Trupe Investigativa Arroto Cênico | Imagem – Divulgação | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
A Trupe Investigativa Arroto Cênico passou por experiência similar. Contemplada no mesmo edital do Grupo Código, viu seu processo se modificar completamente para atender às medidas sanitárias preventivas para esse momento de retorno. Uma cartilha enviada aos grupos pela FUNARJ apresentava medidas de segurança a serem adotadas nas apresentações, como uso de máscaras pelos atores, distanciamento entre o elenco em cena e um número máximo específico de pessoas que podiam estar no palco a partir das dimensões dos mesmos, além da impossibilidade de toque e compartilhamento de objetos cênicos entre os atores. Apesar de extremamente compreensíveis, as medidas geravam grande impacto na concepção artística previamente pensada para o trabalho.
O espetáculo em questão era O Mistério da Rua de Cima, infantil que faz uma transposição cênica da lenda do homem do saco. Essa figura misteriosa tão presente nas histórias populares e no imaginário infantil, tratado como um personagem assustador, é desmistificada pela trupe, que agrega novas possibilidades para sua existência.
Com o processo já em andamento, o diretor Marcos Covask conta que teve que buscar novas alternativas para encaixar suas concepções às novas regras de segurança: o elenco, que canta e toca ao vivo, teve que reaprender as canções de forma que cada ator utilizasse um único instrumento, uma vez que não podiam mais compartilhá-los entre si como faziam antes. Um músico, antes colocado no palco junto ao elenco, teve que ser deslocado para um mezanino à direita, na lateral da plateia. No mesmo espaço, um dos atores se relacionava à distância com outros quatro atores no palco e ainda com um sexto intérprete, posicionado em outro mezanino à esquerda.
A encenação precisou ser completamente repensada a fim de respeitar o distanciamento entre o elenco, dividido nesses três espaços. Para dar conta de tantas regras sem perder a dinâmica de cena, recursos como profundidade, planos e quebras tiveram que ser cada vez mais explorados pela direção. Durante as apresentações, casa cheia (pelo menos dentro das regras de um terço do público permitido nesse momento). Ao fim dos espetáculos, a impossibilidade de abraços deixava entre artistas e público uma sensação de incompletude, ainda que, de uma forma bastante estranha, chegasse o alívio de ver que, com dificuldades, o teatro voltava aos poucos a respirar.
Paralelamente à estreia do espetáculo, a companhia enveredou por outros caminhos de criação, impulsionados pela Lei Aldir Blanc. Contemplados por diferentes editais, lançaram o Festival Sonoridades Cênicas, que tinha como intuito promover a criação de novas dramaturgias de artistas da Baixada e produzi-las em formato de podcast, bem como outros experimentos virtuais, como curtas-metragens e versões online de espetáculos de seu repertório. Covask aponta que, “apesar das limitações, esse retorno gradativo foi muito gratificante. Acho que nunca produzimos tanto como nesse período da pandemia. Houve uma urgência criativa no grupo, uma necessidade de produzir, produzir e produzir como um ato de resistência artística. Pois, além da pandemia, estamos vivendo um momento caótico com um governo que tem total aversão às causas da classe [artística]”.
A CIA. ATORES DA FÁBRICA E A ESCOLA FÁBRICA DE ATORES E MATERIAIS ARTÍSTICOS

A Jornada do Herói, Cia. Atores da Fábrica | Imagem – frame de vídeo | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Longe dos palcos, outro grupo de Nova Iguaçu também lutava pela sobrevivência. Uma das poucas escolas de teatro da Baixada, a Escola Fábrica de Atores e Materiais Artísticos, gerenciada pelo grupo Atores da Fábrica, sem poder manter seus cursos e apresentações no espaço, viu as dívidas se acumularem. Pagar o aluguel se tornou impossível, mesmo com as várias atividades online e “vaquinhas” empreendidas pelo coletivo. Após negociações com os locadores, tiveram a dívida perdoada e devolveram parte do espaço, diminuindo a quantidade de salas conquistada em anos de trabalho na cidade. O grupo, que vinha de uma bem-sucedida temporada de seu espetáculo Ricardo III, viu suas apresentações serem canceladas por conta da pandemia de COVID-19. Em meio ao lockdown, tentou seguir com uma versão online desse projeto, mas, devido a suas precariedades para se manter ao vivo online, tiveram que declinar da ideia.
Em meio a tantas preocupações e frustrações, seguiam com dificuldade as aulas virtuais. Nos encontros com os alunos, viram nascer o projeto A Jornada do Herói, escrito e interpretado pelo ator Mateus Amorim. Feito originalmente para uma mostra virtual da escola, gravado com celular e editado pelos próprios alunos, logo os responsáveis pela instituição viram o potencial do trabalho e incentivaram seu aprimoramento e inscrição no FESTU – Festival de Teatro Estudantil. No solo de Amorim, a Baixada Fluminense é colocada em cena: utilizando-se da conhecida jornada do herói (conjunto de etapas utilizado em diversas narrativas), o texto enaltece as camadas mais pobres da população e suas grandes travessias diárias, elevando à condição de herói o homem comum que luta dia a dia por um espaço numa sociedade que cada vez mais tenta sufocá-lo. A experiência foi um sucesso. O grupo venceu diversos prêmios durante o festival, inclusive de “Melhor Cena”, garantindo um valor em dinheiro para que a esquete se transformasse posteriormente num espetáculo de longa duração.
NOVOS TEMPOS
Nos últimos meses de 2021, com a vacinação avançando e as restrições diminuindo, tanto o Grupo Código quanto a Trupe Investigativa Arroto Cênico puderam retornar aos palcos de uma maneira mais próxima à normalidade que conhecíamos antes da pandemia. Sem máscaras para o elenco, as companhias puderam voltar ao circuito, respectivamente, com os espetáculos Até (A)onde vão suas raízes (contemplado pelo edital SESC Primeiros Olhares 2019) e O Patinho Feio. Um sopro de alívio e esperança parecia pairar no ar. Na sala de ensaios da Escola Fábrica de Atores e Materiais Artísticos, a Cia Atores da Fábrica também prepara seu retorno com a estreia da versão expandida de Sobre a Jornada do Herói.
Grupo Código. Trupe Investigativa Arroto Cênico. Atores da Fábrica. Três coletivos diferentes que, partindo da margem, enfrentam mar revolto em meio a tempestade que ainda não tem prazo para passar. A eles, se juntam Cia. Cerne, Cia de Arte Popular, Grupo Cochicho na Coxia, Queimados Encena, Teatro Baixo, Trupe Sol Sem Dó, Inepta Cia, e muitos outros coletivos da Baixada Fluminense e das periferias do Brasil que, após quase sucumbirem, começam a buscar o fôlego necessário e a preparar os pulmões para os novos ares que, esperamos, estão por vir.
Notas de Rodapé
[1] A lei 7.035 assegura o investimento de 40% do orçamento destinado à cultura para projetos desenvolvidos na capital e 60% destinado às produções culturais de municípios da Baixada Fluminense e demais regiões do estado.