#21 Ruínas ou Reinvenção? | Entre Vitrines Seletivas e Ruínas Invisíveis – Crítica, Prêmio e Desigualdade na Cena Fluminense

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Jefferson Almeida (de Souza)
Diretor, ator, dramaturgo, professor e pesquisador. Bacharel em Teoria do Teatro e Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO
Nos últimos anos, a crítica teatral jornalística praticamente desapareceu do cenário fluminense. O que antes foi um espaço de mediação ativa entre artistas, espetáculos e público — por vezes também um campo de embates e contradições — hoje é apenas vestígio. O espaço que cabia ao pensamento crítico na imprensa foi tomado por silêncios, notas de divulgação e coberturas rarefeitas. Com isso, o lugar da legitimação simbólica passou a orbitar em torno de outro eixo: os prêmios.
Importa reforçar o recorte que delimita este ensaio: as reflexões aqui desenvolvidas dizem respeito, especificamente, ao território do Rio de Janeiro, com foco no período posterior à pandemia de covid-19. Não se trata de abordar os processos de reinvenção dos modos de criação durante a crise sanitária, mas de analisar a política cultural que passou a estruturar a chamada economia criativa na retomada de um suposto estado de normalidade. É nesse cenário que se intensificam as dinâmicas de exclusão e apagamento simbólico que este texto busca iluminar.
No estado do Rio de Janeiro, três são os principais selos de reconhecimento teatral: o Prêmio Shell, o Prêmio APTR e o Prêmio Cesgranrio — cada um com seu júri, suas categorias e critérios, mas todos funcionando como vitrines simbólicas da produção local. Se por um lado esses prêmios continuam a reconhecer talentos e contribuições relevantes, por outro, operam molduras que pouco dialogam com a realidade das práticas cênicas que dizem representar. Ainda mais no pós-pandemia, quando a precarização atingiu níveis alarmantes, e a maior parte das criações passou a se viabilizar por meio de editais públicos com formatos e prazos restritivos.
É nesse contexto que este ensaio se inscreve: não para deslegitimar as premiações, mas para observar como, em vez de preencherem o vácuo deixado pela crítica, elas terminam por reforçar desigualdades históricas. Entre vitrines seletivas e ruínas invisíveis, o que se vê é um campo artístico tensionado por exclusões, onde o reconhecimento muitas vezes depende menos da potência estética de uma obra e mais da sua capacidade de atender a exigências operacionais que, na prática, excluem boa parte dos artistas da cidade.
O SILÊNCIO: A CRÍTICA EM RUÍNA
Desde seus primórdios, o teatro brasileiro tem sido impulsionado por experiências à margem — muitas nascidas em contextos de precariedade, experimentação e resistência. Frequentemente, essas práticas foram reconhecidas tardiamente ou simplesmente apagadas. A crítica teatral, nesse percurso, teve papel fundamental: ao deslocar o olhar para os pontos de fricção, operou como instrumento de visibilidade e memória para formas cênicas que escapavam ao mainstream.
No recorte da cena fluminense contemporânea, porém, observa-se um fenômeno inquietante: o desaparecimento da crítica especializada dos grandes veículos. Seu lugar foi ocupado por resenhas apressadas, postagens dispersas em redes sociais e, sobretudo, pela ascensão das premiações como novo mecanismo de validação institucional. O que se perde quando o olhar crítico desaparece? Que rumos toma uma cena quando sua memória e complexidade são reduzidas à lógica binária do “ganha ou perde”?
A crítica teatral não é mero exercício de gosto; é, sobretudo, um dispositivo de mediação. Ao registrar, analisar e contextualizar um espetáculo, inscreve-o na história, forma público e tensiona o próprio campo artístico. Figuras como Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi e Yan Michalski produziram pensamento crítico estruturante, deslocando estéticas, abrindo espaço para o novo, o estranho, o marginal.
Bárbara Heliodora[1], com seu último texto publicado em 2013, fez talvez seu gesto mais simbólico: olhar para o campo formativo[2]. Sua aposentadoria marcou também o fim de uma era nos jornais impressos, já combalidos pela crise do modelo comercial e pela mercantilização da cobertura cultural. Alguns críticos migraram para blogs e plataformas digitais — como Tânia Brandão[3], Leonel Fischer[4] e Daniel Schenker[5] — transformando a crítica em prática segmentada.
Embora a internet pareça terreno plural e democrático, a fragmentação da crítica trouxe efeitos contraditórios. A visibilidade passou a depender da segmentação de públicos e do capital simbólico dos elencos, privilegiando produções ligadas à televisão e ao cinema. Obras independentes e periféricas permanecem invisíveis, ampliando as desigualdades.
Esse conjunto de transformações aponta para uma pergunta-chave: o que se perde quando a crítica teatral, enquanto espaço público de mediação e memória, desaparece? No Rio de Janeiro, esse vácuo foi preenchido pelas premiações teatrais, que passaram a exercer centralidade simbólica na validação da produção local — mas o fizeram com filtros que ignoram as desigualdades estruturais do fazer teatral. Reconhecem-se talentos, também reproduzem exclusões: seus critérios desconsideram produções independentes, de curta temporada, realizadas em territórios periféricos. O resultado é um mapa teatral restrito, hegemônico e descolado da complexidade real da cena fluminense.
Diante desse quadro, este ensaio se propõe a refletir criticamente sobre os efeitos da substituição da crítica pelo regime dos prêmios — e a cartografar os filtros que hoje definem quem entra (ou não) na história da cena teatral fluminense.
O REGIME DAS PREMIAÇÕES: REGRAS, NÚMEROS E EXCLUSÕES
Ao observar os critérios adotados pelos principais prêmios teatrais do Rio de Janeiro, um dado salta aos olhos: para que uma produção seja elegível, é preciso atender a determinadas condições mínimas de apresentação pública. Trata-se de uma exigência comum aos dois principais selos de reconhecimento atualmente ativos no estado: o Prêmio Shell de Teatro e o Prêmio APTR.
Criado em 1988, o Prêmio Shell de Teatro[6] é um dos mais longevos e prestigiados do país. Patrocinado pela empresa Shell Brasil, é gerido por uma comissão de críticos e especialistas, e contempla, com troféu e uma quantia em dinheiro[7], produções do Rio de Janeiro e São Paulo, em diversas categorias, e exige que os espetáculos tenham realizado, no mínimo, vinte sessões ao longo de um ano para serem considerados. Esse critério, pensado para garantir uma certa constância da obra em cartaz, acaba, na prática, funcionando como uma barreira para boa parte das produções locais.
Já o Prêmio APTR[8], promovido desde 2007 pela Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro, é voltado exclusivamente para a cena fluminense. Seu júri também premia diversas categorias técnicas e artísticas[9]. O critério de elegibilidade é um pouco menos rigoroso que o do Shell: exige a realização de dezesseis sessões, ainda assim um número difícil de ser alcançado por produções independentes ou temporariamente viabilizadas por editais públicos.
Num primeiro olhar, essas exigências parecem razoáveis. Afinal, não se trata de reconhecer produções efêmeras, mas aquelas que, supostamente, mantêm uma relação mais consistente com o público. No entanto, para boa parte das produções fluminenses — sobretudo aquelas de caráter mais independente, coletivo ou experimental — atingir esse número mínimo de sessões é um desafio quase intransponível. A dificuldade não está apenas em manter uma temporada longa, mas em viabilizar qualquer temporada que extrapole o limite de uma ou duas semanas.
Por fim, o Prêmio Cesgranrio de Teatro, criado em 2013 pela Fundação Cesgranrio, também se consolidou como um dos reconhecimentos mais relevantes da cena fluminense[10]. Embora não estabelecesse[11] publicamente um número fixo de sessões como critério absoluto, suas indicações costumam privilegiar montagens que circularam pelos palcos mais tradicionais da cidade, operando dentro da mesma lógica consagradora dos demais selos. O Cesgranrio tornou-se, tão logo foi criado, um dos prêmios mais desejados pelas produções por, além da visibilidade, oferecer o valor de R$25mil a cada categoria vencedora, “buscando oferecer à classe um reconhecimento mais significativo que aquele dado atualmente no panorama cultural da cidade.”[12] Em seu discurso de agradecimento, Guida Vianna, ao receber o prêmio na categoria Atriz, em 2018, pela peça Agosto, dimensionou a importância do aporte financeiro:
Vou aproveitar meus quinze minutos de fama. (…) O nosso país é muito desigual, e a nossa profissão não estaria fora dessa desigualdade. Eu sei que esse prêmio, eu recebo em nome de todos os meus amigos, companheiros, que fazemos aquele teatro que faz o Circuito Sesc, o Circuito Sesi, o Palco Giratório, as Lonas Culturais. A gente fica oito horas por dia numa sala de ensaio, todos nós somos professores, temos outros empregos pra poder continuar fazendo teatro. Eu adoraria, [Antônio] Fagundes[13], ser você. Eu juro por Deus! Mas eu não sou. Eu não ponho 700 mil pessoas numa temporada. A gente trabalha em salas de oitenta lugares… Semana passada, eu estava no metrô filipetando pra conseguir lotar o Sesi, no centro da cidade. (…) Particularmente, aqui no Rio de Janeiro, a gente tá num momento muito triste porque nós temos um governo falido, uma prefeitura que não dá a mínima para a cultura, que retirou todos os editais… Eu adoraria, também, Fafá, não precisar pedir patrocínio, mas eu preciso. Esse prêmio que eu vou receber, hoje, equivale ao salário que eu ganhei para dois meses de ensaio e quatro de temporada; são seis meses de trabalho.[14] (Grifo nosso.)
A fala da atriz, para além da questão financeira, traz outra informação importante para as nossas reflexões: o tempo de execução do projeto. Guida refere uma temporada de quatro meses. A saber: Agosto estreou em 2017, no Teatro do Centro Cultural Oi Futuro, no Flamengo (zona sul), e teve sua produção viabilizada pelo Programa Oi de Patrocínios de Projetos Incentivados, através da lei do ICMS, fato que garante ao espetáculo uma vida de mais fôlego; algo próximo ao praticado pelo Centro Cultural Banco do Brasil que realiza o Edital de Patrocínio CCBB através da Lei Rouanet. Em ambos os casos, além da produção do espetáculo, fica garantida a temporada em um dos espaços dos respectivos centros culturais com suas estruturas técnicas incluídas.
Contudo, desde a pandemia de covid-19, grande parte da produção teatral fluminense tem se sustentado por meio dos editais públicos que surgiram no rastro do Plano Nacional Aldir Blanc (PNAB) que atuam sob o formato de prêmios para criação e/ou circulação de espetáculos, não necessariamente vinculados à garantia de temporadas longas. O segundo pulmão da produção cultural fluminense – os editais de parceria público-privadas como o Sesc Pulsar – também operam dentro de uma lógica que não possibilita a concorrência a certos prêmios; para espetáculos estreantes, por exemplo, o Pulsar prevê uma temporada de, no máximo, 16 sessões.
O outro fator dessa equação se refere aos espaços onde é possível realizar as temporadas viabilizadas pelos editais supracitados e/ou por meios próprios de cada produção. Dentro dos princípios que orientam estas reflexões, não estamos considerando os espaços particulares, para os quais, em alguns casos, o valor total dos prêmios oferecidos pelos editais pagaria, tão somente, o aluguel diário. Estamos considerando, então, os espaços públicos municipais e estaduais, como teatros da FUNARJ[15] e da Prefeitura do Rio[16], cuja programação também é feita por meio de chamamentos públicos e que, sob o argumento da democratização dos espaços, seguem a lógica das pautas curtas. Espetáculos adultos, em horário nobre, costumam ter no máximo 4 semanas de ocupação (16 sessões), quando conseguem vencer a competição pelo espaço.
A equação é cruel: o artista precisa, antes de tudo, conseguir produzir, o que por si só já implica disputar recursos escassos, driblar a ausência de apoio continuado, negociar com a precarização dos espaços. Superado esse primeiro obstáculo, é necessário atingir o número mínimo de sessões exigido, mesmo sem garantia de público, de bilheteria ou de retorno. Só então entra a última etapa do jogo: ser visto pelos jurados, circular nos espaços onde o olhar das premiações alcança, e ainda convencer esses mesmos jurados de que a obra merece reconhecimento. Trata-se de uma maratona desigual, em que os critérios não apenas excluem — eles silenciam.
Quando uma premiação exige vinte sessões, o que ela está, de fato, premiando? A relevância da obra? Sua qualidade estética? Ou sua capacidade logística e financeira de permanecer em cartaz? Quantas obras que propõem novos caminhos para a linguagem cênica são perdidas nesse processo por não conseguirem atender às exigências de um sistema que ignora a própria realidade da produção?
Na prática, os prêmios acabam por reconhecer um tipo específico de teatro: aquele que consegue durar, ocupar, circular; ações para as quais é preciso dispor de estrutura, rede e acesso — recursos que, sabemos, não estão igualmente distribuídos entre artistas e coletivos da cidade. O gesto simbólico de premiar carrega, então, um peso que vai além do troféu: ele reafirma uma hierarquia de acesso e de visibilidade.
GEOGRAFIA DO RECONHECIMENTO: A LINHA CENTRO-ZONA SUL E SEUS FANTASMAS
Ainda que uma produção consiga superar os inúmeros obstáculos de financiamento e estrutura e atinja o número mínimo de sessões para ser elegível a uma premiação, um novo desafio se impõe: ser vista. Isso implica, antes de tudo, estar em um circuito visível — e, no Rio de Janeiro, esse circuito é profundamente determinado por uma geografia simbólica e desigual.
Há uma linha invisível, mas extremamente eficaz, que separa o que é visto daquilo que permanece à margem. Essa linha costuma coincidir, não por acaso, com os eixos da zona sul e do centro da cidade. É nesses bairros que se concentram os teatros “tradicionais”, os espaços de circulação mais frequente dos jurados, os centros culturais com maior projeção. Fora desse perímetro, o teatro raramente é considerado parte do “panorama da cena fluminense”.
Vejamos o quadro abaixo, onde estão expostas as três últimas edições de dois dos principais prêmios do Rio de Janeiro (nos dados analisados, o critério territorial diz respeito ao local de estreia dos espetáculos, e não à sua origem institucional, artística ou geográfica).
| TEMPORADA DE 2022 | ||||||||||
| CENTRO | ZONA SUL | ZONA NORTE | ZONA OESTE | BAIXADA FLUMINENSE | ||||||
| INDIC. | VENC. | INDIC. | VENC. | INDIC. | VENC. | INDIC. | VENC. | INDIC. | VENC. | |
| SHELL (33ª ed.) | 09 | 03 | 14 | 05 | 02 | – | 01 | – | – | – |
| APTR (17ª ed) | 04 | 03 | 20 | 07 | – | – | 01 | 01 | – | – |
| TEMPORADA DE 2023 | ||||||||||
| SHELL (34ª ed.) | 06 | 03 | 12 | 03 | 02 | 01 | 01 | 01 | – | – |
| APTR (18ª ed) | 12 | 05 | 12 | 06 | – | – | 02 | 01 | – | – |
| TEMPORADA DE 2024 | ||||||||||
| SHELL (35ª ed.) | 06 | 01 | 14 | 06 | 02 | 01 | – | – | – | – |
| APTR (19ª ed) | 09 | 01 | 25 | 13 | – | – | 01 | – | – | – |
Essa exclusão se revela com nitidez nos dados dos últimos três anos. Nas edições de 2022 a 2024 dos prêmios Shell e APTR, o centro e a zona sul concentraram a ampla maioria das indicações e premiações. A zona oeste aparece de forma esporádica, com no máximo duas indicações por ano e raríssimas vitórias[17]. A zona norte, um pouco mais presente, obteve algumas premiações isoladas. Já a Baixada Fluminense, mesmo com intensa produção teatral, não registrou nenhuma indicação ou premiação direta em nenhuma das edições.
Isso gera um paradoxo: grupos oriundos de regiões historicamente excluídas precisam migrar sua estreia para o centro ou para a zona sul, sob pena de permanecerem invisíveis para os mecanismos de reconhecimento. É o caso do Instituto Cultural Cerne que, sediado em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, precisou estrear o espetáculo Turmalina 18-50 no Teatro Laura Alvim (zona sul) para só então ter o reconhecimento do seu valor, sendo indicado à 33ª edição do Prêmio Shell. Em seguida, venceu o mesmo, prêmio na categoria Dramaturgia, com Três irmãos, que estreou no Sesc Tijuca (zona norte) — que parece ser a última estação do perímetro “elegível”. A instituição é responsável pela Escola Popular de Teatro da Baixada, iniciativa que está indicada à 36ª edição do prêmio na categoria Energia Que Vem da Gente[18]. O reconhecimento só chegou quando o território de origem foi transposto, como se a legitimidade não pudesse brotar do próprio chão onde nasce.
Essa geografia do reconhecimento não é um mero detalhe logístico; ela atua como um mecanismo de exclusão simbólica. Espetáculos apresentados em zonas mais periféricas, mesmo quando alcançam temporadas consistentes, muitas vezes não são visitados pelos jurados. E, quando o são, enfrentam olhares marcados por filtros invisíveis que tendem a valorizar o que se aproxima das estéticas e dos modos de produção já consagrados nos grandes centros. Mesmo a zona norte, que aparece com alguma frequência nas listas de indicados e premiados, o faz sobretudo por força do capital simbólico e das redes pessoais dos envolvidos nas produções. Em jargão popular, não é fácil fazer os jurados “atravessarem o túnel”[19].
A mobilidade urbana precária e a insegurança pública, aliadas à centralização da moradia e dos interesses dos formadores de opinião nas zonas mais abastadas, reforçam esse ciclo. O teatro periférico ou suburbano só atravessa essa fronteira simbólica quando é estetizado sob um viés que o torne palatável — ou exótico — aos circuitos centrais. Há, portanto, uma lógica perversa que promove reconhecimento apenas quando o “outro” cabe no enquadramento já estabelecido.
Esse mecanismo de apagamento se articula com o desaparecimento da crítica jornalística. Quando havia mais espaços de crítica escrita — ainda que centralizados — era possível, ao menos, tensionar esses recortes, propor deslocamentos, dar visibilidade ao que escapava dos radares institucionais. Hoje, sem uma mediação crítica ativa e constante, os prêmios passam a operar como juízes únicos da memória recente.
Enquanto a linha centro-zona sul seguir ditando o que é visível e digno de nota, a cena teatral fluminense continuará a reproduzir a lógica excludente que tanto denuncia em outras esferas da vida social. E o que está em jogo não é apenas quem ganha ou perde um troféu, mas quem é reconhecido como produtor legítimo de pensamento estético, político e poético — e quem será lembrado como parte da história viva do teatro na cidade.
ENTRE VITRINES SELETIVAS E RUÍNAS INVISÍVEIS
O que este ensaio procurou evidenciar é que o reconhecimento, tal como tem sido construído na cena teatral fluminense contemporânea, está longe de ser um ato neutro. Ele obedece a lógicas de visibilidade que não apenas refletem desigualdades históricas, mas também as reproduzem. Por trás das estatuetas entregues, operam filtros silenciosos que definem quem pode ser visto, quem pode ser lembrado — e, portanto, quem pode existir como parte da memória cultural compartilhada.
As premiações, em sua configuração atual, tornaram-se o espelho estreito no qual a cena fluminense tenta se ver — mas que só devolve uma imagem parcial. Grupos de pesquisa, coletivos periféricos, artistas independentes, projetos nascidos fora do eixo centro-zona sul, práticas artísticas dissidentes e inovadoras: todos esses agentes vêm sendo sistematicamente empurrados para fora do quadro de reconhecimento institucional. E, quando eventualmente aparecem, o fazem mais como exceção tolerada do que como parte legítima do todo.
A crítica teatral jornalística dificilmente retomará o protagonismo que já teve. É um sinal dos tempos. Mas é justamente por isso que os prêmios passaram a ocupar, por inércia ou por delegação simbólica, o lugar da crítica como principal instância de validação, mediação e memória da cena. E com esse lugar, vem uma responsabilidade histórica — que não pode ser ignorada sob o pretexto de que se trata de uma iniciativa privada ou de um gesto meramente simbólico.
Se, por um lado, os prêmios são oferecidos por empresas ou instituições com interesses próprios, por outro, carregam consigo um apelo ético: o de reconhecer a vitalidade da cena teatral em sua complexidade e diversidade. Ignorar este apelo — seguir premiando apenas o que já está legitimado, visível e bem instalado — não é apenas uma escolha estética. É um gesto de apagamento. Um recuo covarde diante da responsabilidade de registrar o presente com justiça e sensibilidade.
Por isso, mais do que uma denúncia, este texto é um chamado: os prêmios precisam repensar suas estruturas, critérios e procedimentos. Precisam assumir que não são apenas celebrações — são instrumentos de construção histórica. E como tal, devem ser repensados com coragem e compromisso ético. É preciso sair do conforto da vitrine e encarar o risco de enxergar o que hoje ainda permanece invisível.
Notas de Rodapé
[1] Crítica, professora, tradutora. Durante mais de vinte anos ocupou o principal espaço destinado à crítica teatral no jornal O Globo tornando-se uma figura emblemática com seus textos duros capazes de determinar o destino de algumas temporadas.
[2] Para encerrar seu ciclo de mais de vinte anos (de 1990 a 2013) como mediadora entre espetáculos e o público por meio da crítica jornalística, Heliodora escolheu retornar à Escola de Teatro da UNIRIO — de onde foi professora emérita, tendo lecionado na graduação e na pós-graduação, sendo, inclusive decana do Centro de Letras e Artes, de 1982 a 1985 — e escrever sobre a montagem de The Book of Mormon, realização do Projeto Teatro Musicado, do Prof. Dr. Rubens Lima Jr. Seu texto foi publicado em 19 de dezembro de 2013, no jornal O Globo, sob o título “The Book of Mormon”, uma divertida surpresa.
[3] A professora, historiadora, dramaturga e crítica mantém o blog Folias teatrais
[4] O ator, professor e crítico mantém o blog Lionel Fischer
[5] O professor, pesquisador, historiador e crítico mantém o site Daniel Schenker
[6] Os jurados são críticos, artistas e produtores culturais convidados anualmente e atuam de forma remunerada. O atual corpo de jurados, no Rio de Janeiro, é formado por: Beatriz Radunski, Biza Vianna, Danielle Ávila, Leandro Santanna e Paulo Mattos; em São Paulo: Evaristo Martins de Azevedo, Ferdinando Martins, Lucelia Sergio, Luiz Amorim e Maria Luisa Barsanelli.
[7] O site do prêmio não fornece o valor destinado a cada categoria. Ver mais AQUI
[8] Os jurados são profissionais do meio cultural, convidados a cada edição e atuam de forma não remunerada. A comissão permanente da APTR também participa da escolha final. Os jurados, atualmente, são: Ary Coslov, Clarisse Derziê Luz, Claudia Chaves, Fátima Sá, Jane Celeste, Luiz Antonio Pilar e Maria Ceiça. A Comissão é formada por: Bianca De Felippes, Eduardo Barata, Gaby de Saboya, Márcia Dias, Norma Thiré e Marta Paret.
[9] A APTR não tem um site oficial, de modo que não é possível afirmar se a premiação inclui um valor em dinheiro, para além do troféu entregue nas cerimônias públicas.
[10] Em 2019, o ator e humorista Fábio Porchat criou o Prêmio do Humor, hoje, Prêmio I Love Prio do Humor. Embora também contemple o Rio de Janeiro, o prêmio não está considerado nestas reflexões pela sua ação nichada que tem como intuito “incentivar e qualificar constantemente, os profissionais e projetos do gênero [humor/comédia], além de resgatar e divulgar a memória da comédia no Brasil” (Disponível AQUI. Acesso em 14/08/2025).
[11] O Prêmio Cesgranrio encontra-se descontinuado. Sua última lista de indicados se referiu à temporada de 2022, razão pela qual seus respectivos indicados e vencedores não estão contabilizados no quadro comparativo que será visto adiante. Detalhes AQUI.
[12] Disponível AQUI. Acesso em 25/07/2025.
[13] A atriz dirige-se diretamente ao ator e produtor Antônio Fagundes, homenageado daquela 5ª edição do Prêmio. Pouco antes de a atriz ser contemplada, foi exibida uma entrevista previamente gravada em que Fagundes afirma, conforme publicado em O Globo, que “evita buscar patrocínio para suas peças, sugerindo que a garantia de verbas poderia tornar o artista menos compromissado com o público.” Ao subir no palco para receber sua medalha, o ator fez um importante discurso sobre o fechamento de alguns espaços teatrais, no Rio de Janeiro, e disse: “Queria dizer uma coisa… Eu não quero os R$25 mil não, mas eu queria o troféu, tá?”. Matéria disponível AQUI Acesso em 11/08/2025. Discurso de Fagundes disponível AQUI. Acesso em 11/08/2025.
[14] Disponível AQUI. Acesso em 25/07/2025.
[15] A Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro é a entidade do Governo do Estado responsável pela promoção da cultura tendo, sob sua administração, os seguintes teatros: Teatro Armando Gonzaga (zona norte), Teatro Arthur Azevedo, (zona oeste), Teatro Gláucio Gill (zona sul) Teatro João Caetano (centro), Teatro Mário Lago (zona oeste). Ver mais AQUI.
[16] A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) administra os seguintes teatros: Teatro Café Pequeno (zona sul), Teatro Carlos Gomes (centro), Teatro Carlos Werneck (zona sul), Teatro Correios Léa Garcia (centro), Teatro Domingos de Oliveira (zona sul), Teatro Gonzaguinha (centro), Teatro Guignol Méier (zona norte), Teatro Guignol Tijuca (zona norte), Teatro Ipanema (zona sul), Teatro Ruth de Souza (zona sul) e Teatro Ziembinski (zona norte). Ver mais AQUI.
[17] A entrada da zona oeste nos dados de indicações e premiações se deve, em grande parte, à presença de grandes complexos culturais como a Cidade das Artes, que tem recebido produções de projeção internacional (como espetáculos de Bob Wilson) e remontagens históricas como O rei da vela. Também se destacam os palcos comerciais da região, como os do Espaço Multiplan, ocupados por grandes musicais de produtoras hegemônicas. Trata-se, portanto, de uma inserção que não representa uma ampliação efetiva dos circuitos de visibilidade, mas a reprodução de lógicas centrais em novos territórios.
[18] O texto completo da indicação diz: “Instituto Cerne – Pela criação da Escola Popular de Teatro da Baixada e pela dedicação à formação e à programação cultural contínua em São João de Meriti.” Disponível AQUI. Acesso em 11/08/2025.
[19] Referência ao Túnel Rebouças, que liga, e ao mesmo tempo separa, as zonas sul e norte do Rio de Janeiro.












