#21 Ruínas ou Reinvenção? | Panapaná e a escrita como dança

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Carolina Amaral
Professora de Roteiro e Dramaturgia para cinema e TV (PUC-RIO). Pesquisadora, roteirista e produtora formada em Cinema (UFF). Doutora e Mestre em Comunicação (UFF) e professora do PPGCINE-UFF
Dançar e escrever
Eu sempre escrevi. Ou melhor, sempre escrevo, mas escrever demorou a se tornar uma atividade profissional. Talvez por insegurança, talvez porque a vida acabou me levando para outros caminhos e a escrita foi se colocando mais como uma necessidade porque simplesmente não era possível não escrever. Na adolescência, escrever diário era a minha maneira de lidar com o mundo, refletir e, ao mesmo tempo, registrar esse período que eu já tinha consciência de que seria fugaz e revelador.
Escrever poesia também era uma necessidade porque era como eu conseguia lidar com sensações e palavras. Mais tarde, escrever críticas porque eu achava que tinha algo a dizer. E já adulta, escrever artigos porque mostrar o meu olhar para o mundo me parecia importante. E sempre escrever histórias, porque elas habitavam o meu corpo e precisavam sair. Em todas essas situações, sentia que tinha coisas bonitas ou interessantes ou grotescas dentro de mim que precisava mostrar e escrever normalmente era o caminho
Conforme os anos passavam, todas essas escritas que sempre me atravessaram foram rareando a ponto de eu quase perder a necessidade da escrita confessional, do ímpeto lírico, dos artigos, das histórias. A correria da rotina, o esmero excessivo, não há uma razão, fui só pouco a pouco escrevendo menos, abandonei o blog que alimentava com dedicação, abandonei diários e quase abandonei os cadernos. Foi nesse arquipélago quase alagado, como países insulares que ameaçam sumir que a minha escrita foi quase sucumbindo em alguns anos.
E, não achava que o que faltava era material vivido, porque, ao mesmo tempo, vivia as experiências mais radicais como amar de verdade, engravidar, parir, amamentar. Não escrever me pareceu aquele aumento de peso que, por ser gradual e silencioso, ninguém repara, nem mesmo a gente. Me olhava no espelho e me reconhecia nesse corpo, esse corpo com uma gordura a mais de coisas não escritas que não saíam mais.
Se escrever foi uma maneira de me inventar desde a pré-adolescência, dançar era tudo o que eu fazia desde sempre. Antes de tudo, eu era uma criança que dançava. Meu mundo era dançar, minha brincadeira de criança era criar coreografias e fazer outras crianças dançarem. Mas na mesma adolescência, parei de fazer aulas de dança. Algum comentário degradante sobre o modo como eu me movia, me afastou daquela rotina.
Pelo menos, tirou aquela minha entrega total para dança que já naquela idade eu percebia que nunca seria o suficiente, não importa o quanto eu desse de mim, era preciso ser perfeita. Converse com pessoas de dança e elas sempre terão histórias para te contar sobre algum trauma com a dança. Nos filmes, dançar está sempre associado a movimentos leves ou intensos e à capacidade de ser livre. Mas a vida na dança, às vezes, me lembra mais uma rotina militar que um sonho libertador.
E assim, fiquei 25 anos sem dançar. Um dia, numa terapia reichiana, a vontade de dançar veio à tona. A vontade de escrever era sempre uma questão de análise e ainda é, mas dançar nunca. Então, me matriculei naquela que foi minha dança de formação: jazz. O corpo parecia lembrar dos movimentos, das pausas, de como é ser leve e intensa, ainda que enferrujada e sem a liberdade dos filmes. Dançar, muitas vezes, é executar à exaustão uma coreografia. Aprender movimentos e células de movimentos até parecer natural, até entrar no corpo, para poder sair na performance. Voltar a dançar, a me movimentar com graça, a fazer giros no palco, a ensaiar, praticar praticar praticar.
Apesar de exausta, uma parte de mim parecia estar de volta, como uma alma que volta para o corpo. Continuei sem vontade de escrever diários ou poesia ou falar sobre mim como se fosse um outro cheio de véus. Mas tenho pensado sobre ações de dançar e escrever, o que elas têm em comum. O quanto escrever e dançar são sobre criar frases. Frases de palavras e frases de movimento. Karen Pearlman (2012, p. 218) vai refletir sobre a coreografia como a arte de dar forma aos movimentos “reelaborando tempo, espaço e energia em formas e estruturas afetivas”. Muitas vezes, acho que escrever também organiza uma estrutura de afetos dispersos.
A escrita a quente
Sergio Rodrigues (2025) fala em dois tipos de escrita: a escrita a quente, que vem como um jorro, um ímpeto, uma necessidade irrefreável, e a escrita a frio, que pensa, para e calcula o que vai no papel. Acho que a dança também pode ser a quente ou a frio: o frenesi da pista ou o movimento treinado e estudado. Tão treinado e estudado que já sai em jorro e a pista morna da coreografia, fácil e pronta.
Assim, habitando a dança e a escrita e, talvez apenas frequentando uma e a outra, que recebi a proposta de compor o grupo multiartístico Panapaná que se define como uma escola de criatividade. A ideia era realizar um musical totalmente improvisado com bailarinos, atores, cantores, músicos, artistas de circo e escritores. Caberia a mim e a outros colegas de naipe improvisar na escrita e para isso teríamos treinos toda semana.
Como na aula de dança, eu agora tinha uma turma para encontrar toda semana. A princípio, era assustador porque desenvolvi um gosto por uma certa solidão de filha única. A escrita, para mim, era muitas vezes um momento de introspecção. Ficar sozinha comigo e me escutar com atenção. A escrita e a dança precisam de escuta, é preciso ouvir atentamente os contratempos, os instrumentos, os acordes que casam com o passo e com as palavras e imagens.

O naipe de escrita e visão lateral do espetáculo – Panapaná no Cinearte UFF em março de 2025 – Fotografias Arthur Waismann
O nome Parapaná, de origem Tupi, se refere ao coletivo de borboletas e descreve onomatopeicamente a sensação/barulho de uma nuvem de borboletas. Inspirado na Teoria do Caos e no aspecto do Efeito Borboleta, o espetáculo celebra o amor, o humor, e o potencial de pequeninas ações para gerar gigantescos impactos.
A proposta é utilizar uma linguagem de sinais para composição ao vivo, na qual um maestro através de gestos propõe parâmetros aos quais os artistas respondem num processo criativo instantâneo, onde gestos mínimos desencadeiam cenas musicais imprevisíveis. Reunindo uma banda, atrizes e atores, um coro cênico, um corpo de baile, artistas plásticos e escritores, são mais de 30 artistas em cena, criando juntos um musical efêmero[1].
A escrita no Panapaná atende aos comandos do maestro, mas também é um processo de escuta do que está acontecendo em cena. Tudo que escrevemos é projetado ao vivo, o público e os outros artistas podem ler acompanhando até o ritmo que o texto vai sendo desenvolvido. Às vezes, partimos da escrita, ainda que não tenha tido nenhum gesto específico do maestro, às vezes, escrevemos a partir do que está acontecendo, seja através da música, dos movimentos, da voz. Às vezes, o que eu escrevo vira cena, letra de música e é preciso escrever ao vivo para que a canção se complete.
Tem sido muito emocionante ver as pessoas lendo minhas palavras e usando em cena, cantando, sapateando, declamando palavras que mal as escrevia na tela projetada, elas já não eram mais minhas. Eu sempre fui desapegada das minhas escritas, sempre quis que fizessem o que quisessem de tudo que escrevo porque uma vez no papel, ou numa tela, a escrita não é mais minha, mas de quem lê. Como diz Paul Zumthor (2007), é o corpo de quem lê que toma posse do texto porque é nele que se realiza a leitura, numa espécie de performance. Zumthor (2007, p. 53) vê o texto poético como “um tecido perfurado de espaços brancos, interstícios a preencher” pelo leitor.
Enquanto os textos que escrevo são dos leitores, as danças que performo, são minhas. Dançar uma coreografia a torna mais minha, eu tomo posse, quando ela chega no meu corpo me pertence eternamente. Leda Maria Martins acredita não ser tão dicotômica a relação oralidade/palavra escrita, uma vez que a inscrição da palavra falada em tradições não eurocêntrica, muitas vezes usa coreografias para grafar o corpo não apenas de ritos e experiências liminares, mas também “uma variedade imensa de formulações e convenções que instalam, fixam, revisam e se disseminam” (Martins, 2021, p.27). O corpo como esse local de memória, como uma partitura, como escrita. Nos seus estudos sobre o Reinados, Congos e Jongos, Martins (idem, p. 23) analisa como a coreografia é também uma forma de escrita do corpo.
Grafar o saber era, sim, sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber encorpado, que encontrava nesse corpo em performance seu lugar e ambiente de inscrição. Dançava-se a palavra, cantava-se o gesto, em todo movimento ressoava uma coreografia da voz, uma partitura da dicção, uma pigmentação grafitada da pele, uma sonoridade de cores.
A escrita e a dança se aproximam dessa forma, como grafias de palavras e de movimentos. Toda escrita é um pouco uma escrita de si. No Panapaná, principalmente, a escrita essencialmente a quente, acaba por recorrer à nossa experiência para compor a performance. Num texto, contei que minha filha e eu dávamos nomes às partes do corpo que não tinham nome: entre os olhos, se chama quinoa; atrás do joelho, é canoa. Em outro, revelei que minha cachorra lambe cotovelos.
Esses pedaços de vida se tornam retalhos de história no Panapaná, ilustrações pueris de um cotidiano mágico. Tudo sou eu e, ao mesmo tempo, não me pertencem. Um segundo depois e já estavam sendo encenados pelos atores. São palavras que apenas passam por mim. Sou um caminho, um meio por onde as palavras dançam. Um movimento com ritmo, pausas e narração.
A escrita ao vivo, como venho chamando minha função no grupo, é uma mistura de performance e texto, mas sem as pressões da performance ao vivo, porque só o que se vê são minhas palavras, as pessoas acompanham e aguardam o que vou fazendo num estado de atenção; também não sinto as pressões da escrita, principalmente aquela escrita a frio que calcula, pontua e avalia, porque tudo acontece rápido demais abraçando o risco, a imperfeição, o diálogo.
No grupo, eu nunca escrevo sozinha e quando escrevo sempre é mais interessante perceber o que vão fazer das minhas palavras que uma vez escritas, são dos outros. Numa apresentação em maio de 2025, no Teatro Ziembinski, antes do clímax final, ganharam o centro do palco os bailarinos. No ar, a artista circense. Eu escrevia. O texto, escrito em parceria com Leonardo Bastos seguia assim:
Já imaginou uma bailarina dançando no céu
Uma corda que vem lá de cima, como quem joga um sonho e consegue resposta.
Num tecido que parece cortina de teatro
Um balanço acrobata
para lá, para cá, de cabeça para baixo
É sempre uma ideia genial
Balançar no céu
Vamos fazer um casulo com o tecido e depois criar asas para ir bem longe
às vezes, o próprio casulo é um lugar bem longe dentro do tecido da gente.
Pupa. Eu gosto dessa palavra, fazer uma pupa e depois voar, esse sempre foi o plano.
Nesse momento, larguei o texto e saí para dançar. Fui dançar minhas palavras improvisando nos movimentos da mesma forma que faço com o texto: compondo a imagem saturada e sensorial desse espetáculo improvisado. Com uma saia muito longa e o movimento de pernas que pareciam asas, pude experimentar uma liberdade da dança próxima daquelas que vemos nos filmes. Mais que dançar coreografias, me encanta dançar palavras. Toda escrita é uma escrita de si, mas de um eu que já não existe mais.
Bibliografia
Pearlman, Karen. A edição como coreografia. In: Dança em foco: ensaios contempo râneos de videodança / [organização de Paulo Caldas… et al. – .Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012.
Martins, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
RODRIGUES, Sergio. Escrever é humano: como dar vida à sua escrita em tempo de robôs. São Paulo: Companhia das Letras, 2025.
Zumthor, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.













