#21 Ruínas ou Reinvenção? | Território em movimento: a política dos corpos no breaking

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Ana Caroline Leopoldino
Artista-docente, Mestranda em Artes Cênicas (ECA/USP) e Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Dança (Unespar)
“A rua não é só o lugar onde se está.
É o lugar onde se pensa.
Onde se forma.
Onde se inventa”
Manuel Peixeiro
O território, mais do que uma delimitação espacial, é também um campo de experiências, memórias e disputas. Essa compreensão amplia o entendimento tradicional de território, visto apenas como espaço físico, para uma perspectiva que considera os modos de ser e estar no mundo. No contexto da cultura Hip-hop e, especificamente, do breaking, o território se apresenta como um elemento central. Este texto propõe uma análise do conceito de território a partir de uma classificação em três dimensões identificadas em minha pesquisa de mestrado em andamento: território simbólico, território concreto e território dançado. Ao abordar essas diferentes dimensões, que por vezes se entrelaçam, busco compreender como o *breaking* atua enquanto prática estética e política, criando e ressignificando espaços por meio da presença do corpo em movimento, da subjetividade e da coletividade.
A rua, considerada aqui o primeiro território do Hip-hop, é um elemento-chave que nos ajuda a compreender a trajetória dos desdobramentos desse conceito, que caminha junto à história desta cultura de maneira política, considerando as relações entre corpo e ambiente. Os desdobramentos acerca dessas dimensões de território foram traçados a partir de minha experiência como dançarina na cidade de Curitiba, especialmente por meio das práticas de breaking no Shopping Itália, local histórico para a cultura Hip-hop na cidade. Desta forma, o texto busca evidenciar como corpo, território e política são dimensões inerentes umas às outras e fundamentais para a análise do contexto da prática da dança breaking aqui discutido.
Parece intuitivo relacionar o território à prática do breaking, talvez pelo fato de que a cultura Hip-hop, historicamente, ocupa espaços públicos. Podemos citar, por exemplo, as block parties que aconteciam nas ruas de bairros periféricos da cidade de Nova Iorque na década de 1970 ou os graffitis que, até hoje, desafiam a lógica do espaço público restrito e da propriedade privada. Além disso, o breaking também é uma dança com fortes relações com o chão e que se constituiu atuando como uma tecnologia de contranarrativa na representação de jovens periféricos na cidade, por meio do corpo em movimento e do uso do espaço urbano. Todas essas características que marcam a relação entre o Hip-hop e o território se entrelaçam por meio de um vetor em comum: a rua.
A cultura hip-hop também é conhecida como “cultura de rua”, ou como a “escola das ruas”. Uma rua que se configura como território de todos e de ninguém, da criação autodidata e onde se descobre constantemente em alternância criativa novas formas de comunicação. (D’ALVA, 2014, p. 13)
“Rua”, além de sua forma e significado literal, é, para a cultura Hip-hop, um conceito. Trata-se do espaço físico da urbe que representa a práxis do Hip-hop, ou seja, a prática aprofundada por meio das epistemes culturais. Isso faz da palavra “rua” um conceito expandido, que não se limita à sua literalidade. A rua representa o primeiro território do Hip-hop e, talvez, percorrê-la seja a melhor forma de explicar o que tenho compreendido por território.
Para discorrer sobre o conceito de território, recorro inicialmente a alguns pesquisadores do campo da geografia, cuja ênfase está no estudo do território enquanto espaço físico. Raffestin (1993, p. 143), estudioso da relação entre geografia e poder, formula:
É necessário compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo pela representação), o ator ‘territorializa’ o espaço.
Dessa maneira, ao se apropriar do espaço rua, cria-se um território com diversas dimensões, sendo elas simbólicas e concretas, nas quais atribuem-se sentidos aos sujeitos do contexto em questão. Segundo Fuini (2015, p. 134): “A territorialidade […] é trabalhada com a ideia de pertencimento a um território em termos de exclusividade e limite”. A territorialidade, portanto, está diretamente ligada às práticas dos sujeitos nos territórios.
A cultura Hip-hop se territorializa nas ruas, fazendo delas mais do que um espaço físico. É a ação nela praticada que a territorializa. A experiência nova-iorquina das primeiras práticas das linguagens artísticas do Hip-hop nas ruas contribuiu para que ela se constituísse enquanto um conceito através da territorialização. O geógrafo Milton Santos propõe o termo “território usado” ao se referir à apropriação do espaço como o lugar onde se concretizam as relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Santos (1998, p. 15) afirma:
É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. […] O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro.
A noção de uso do território elaborada por Santos nos possibilita refletir sobre a forma como a rua, neste contexto, extrapola a noção de um espaço estático e imóvel, alcançando estados de corpo e modos de agir que se forjam no território. Isso faz com que essa noção de território acompanhe a prática artística e cultural onde quer que ela aconteça. Fica evidente que, nesse conceito, há uma confluência entre sujeitos e ambiente, pois são os sujeitos que fazem do espaço um território, ao mesmo tempo que são por ele afetados. A Teoria Corpomídia, formulada por duas pesquisadoras brasileiras da área da dança, defende que “Meio e corpo se ajustam permanentemente, num fluxo inestancável de transformações e mudanças” (KATZ; GREINER, 2001, p. 71). Dessa maneira, é impossível dissociar o corpo do território. O corpo não é algo dado, natural, mas sim produzido continuamente nas trocas com o ambiente. Ele é mídia de si mesmo, contaminado por fluxos sociais, técnicos e afetivos:
Mas o que importa ressaltar é a implicação do corpo no ambiente, que cancela a possibilidade de entendimento do mundo como um objeto aguardando um observador. Capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo. Algumas informações do mundo são selecionadas para se organizar na forma de corpo – processo sempre condicionado pelo entendimento de que o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. (KATZ; GREINER, 2005, p. 7)
O corpo sempre terá centralidade nas discussões sobre dança, mas, neste caso, compreendo que não é possível abordar a questão do território sem enfatizar a imbricação do corpo nesses contextos. Território e corpo são como são por conta de suas correlações sempre presentes. Há, ainda, um elemento pertinente a essa discussão, que envolve tanto o corpo quanto o território: a política. Como corpo e território não seriam afetados pelo modo de produção capitalista, por exemplo? Ainda que a política não se resuma a isso, o sistema econômico tem um papel central nas determinações políticas de nosso tempo. Dessa maneira, é necessário refletir sobre como a produção de território também passa por essas determinações, imposições e disputas. Por isso, é preciso adotar uma abordagem metodológica que leve em conta esses parâmetros.
O materialismo histórico-dialético (MHD), método marxista de análise e interpretação crítica da realidade capitalista, compreende que é preciso atentar-se aos fatores históricos considerando suas contradições e interpretar a matéria concreta. Ainda entende que “[…] não existem oposições dualistas/dicotômicas entre as instâncias sociais e individuais, objetividade-subjetividade, interno-externo” (ALVES, 2010, p. 2). A negação dessas dicotomias nas categorias de análise nos leva, também, à negação da lógica cartesiana que dissocia corpo e mente, por exemplo. Corpo, território e política não devem ser dissociados, pois seus fenômenos são interdependentes. É preciso distanciar-se do idealismo e olhar para a concretude da realidade, a fim de evidenciar aquilo que a determina.
[…] o materialismo histórico dialético designa um conjunto de doutrinas filosóficas que, ao rejeitar a existência de um princípio espiritual, liga toda a realidade à matéria e às suas modificações. É uma tese do marxismo, segundo a qual o modo de produção da vida material condiciona o conjunto da vida social, política e espiritual. (Ibidem, p.3)
A burguesia capitalista subalterniza alguns corpos e alguns territórios, entre eles, os que trato aqui: aqueles que se relacionam com as periferias. Por mais que o Hip-hop não aconteça apenas nas periferias e que, através da mercantilização, haja muitos indivíduos lucrando com a despolitização dessa cultura, é preciso fortalecer a tese de que o Hip-hop é periférico, mesmo quando não acontece nas periferias. Essa é a sua gênese e, para além disso, é essa territorialização nas ruas periféricas que lhe confere características e modos próprios de operar.
Portanto, território é um conceito material e simbólico. No breaking, o território configura uma rede de relações a partir do corpo em movimento. É uma forma de organização dos espaços de memória coletiva, produções epistêmicas, pertencimento e tomada de consciência. É permeado por imposições, subversões dessas imposições, desobediências e errâncias. Mas não nos deixemos enganar: é preciso não romantizar as discussões acerca do território. Este não é um espaço apenas de transgressões à hegemonia. Em uma realidade na qual estamos tomados pela alienação capitalista, não podemos deixar de considerar as contradições presentes nos estudos de arte e cultura. É preciso atentar-se ao movimento dialético da vida. Por isso, corpos e territórios não são neutros; existem desafios, consensos e dissensos que precisam ser evidenciados.
Dessa forma, ao observar a prática do breaking no contexto da cultura Hip-hop, torna-se possível desdobrar o conceito de território em três dimensões interligadas, abordadas nas próximas linhas.
Território simbólico
O termo ‘simbólico’ é compreendido aqui como a dimensão de produção de significados que transcendem a materialidade imediata dos objetos, práticas e espaços, levando em conta o que há nas relações, afetos e memórias que atribuem sentidos aos espaços. Desta forma, o território simbólico se configura como a dimensão do território constituída pelas significações sociais na relação dos sujeitos que geral a produção simbólica ancorada na memória e nos afetos.
O território simbólico, portanto, não se restringe ao “o quê”, mas envolve também o “como”. Como os dançarinos se relacionam? Como se mantêm e como mantêm sua rede de relações viva? Assim, podemos ecoar o que Santos (1998) formulou no trecho já citado no início deste texto, sobre o entendimento do território usado ser importante para “[…] afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro” (p. 15).
Essa dimensão nos aproxima da solidariedade e da cooperação enquanto elementos de uma rede simbólica que configura o corpo coletivo e o corpo individual como territórios. Para muitos, essas são tecnologias de sobrevivência. É a estrutura coletiva que garante a manutenção da vida e que nos ajuda a nos territorializar — e o corpo é a locomotiva dessas ações. O corpo em relação consigo, com outros corpos e com a prática faz deste um corpo-território, como defende Gago:
A conjunção das palavras corpo-território fala por si mesma: diz que é impossível recortar e isolar o corpo individual do corpo coletivo, o corpo humano do território e da paisagem. Corpo e território compactados como única palavra desliberaliza a noção do corpo como propriedade individual e especifica uma continuidade política, produtiva e epistêmica do corpo enquanto território. O corpo se revela, assim, composição de afetos, recursos e possibilidades que não são “individuais”, mas se singularizam, porque passam pelo corpo de cada um na medida em que cada corpo nunca é só “um”, mas o é sempre com outros, e com outras forças também não humanas. (2020, p. 79 – 80)
No breaking, os coletivos de sujeitos reunidos pela prática da dança são denominados crews. As crews comumente organizam-se pela proximidade e convivência. Esses coletivos manifestam uma identidade coletiva destes sujeitos reunidos e reforçam relações que não ficam restritas apenas às práticas de dança. Segundo Rose (2021, p. 59), as crews são “uma fonte local de identidade, afiliação grupal e sistema de apoio”. A crew é um território simbólico de construção coletiva, um espaço vivido em meio a uma rede de relações construídas por meio de trocas constantes. Ela produz vínculos, memórias, linguagens, políticas e modos de viver. Uma crew, portanto, é um corpo coletivo que materializa essa conjunção corpo-território.
Há ainda uma dimensão ritualística no breaking se pensarmos nas batalhas, treinos, festas e cyphers. Esses são territórios simbólicos da presença, do encontro e da ação que buscam ritualizar e dar continuidade às práticas históricas dessa dança, mantendo-as vivas. O termo cypher, por exemplo, deriva do árabe “ṣifr”, que significa: zero, vazio; incorporado ao inglês como cipher, com sentidos de código, enigma e círculo. No Hip-hop dos anos 1970, passou a designar o círculo formado em torno do breaking, constituindo-se como espaço de improviso, disputa e troca coletiva. Esse círculo formado em torno da dança configura o uso de um espaço através da reunião de sujeitos que relacionam-se através da troca compartilhada seja pelos que estão no centro da cypher ou pelos o que estão formando o círculo, visto que uma roda não se forma com apenas um indivíduo, mas sim pela presença coletiva, o que marca uma dimensão ritual que se conecta com as práticas afro-diaspóricas. Essa dimensão ritual é evidenciada também nas festas dentro da cultura Hip-hop. D’Alva (2014, p. 4) nos recorda que:
Muitas análises sobre o hip-hop são feitas a partir do prisma de que ele é a voz da periferia ou a crônica social dos excluídos, o que não deixa de ser realmente uma característica marcante e definidora da cultura, principalmente ao chegar às periferias do Brasil e dos demais países da América Latina. Mas a tendência à generalização muitas vezes possui um matiz de contundència carrancuda, que pinta o quadro apenas com tintas vociferantes e raivosas, muitas vezes deixando esquecidas as nuances e um dos fatos mais relevantes sobre sua origem: o hip-hop nasce em uma festa, Mais precisamente, em uma festa de rua, a chamada block party, que inevitavelmente traz consigo as forças presentes na festa popular realizada num espaço público: autorrepresentação, celebração e diversidade. Uma festa que surge como possibilidade de vida frente à morte planejada a toda uma comunidade de excluídos, um momento único de comunhão.
A celebração sempre esteve presente no Hip-hop e este é um aspecto que não pode ser deixado de lado. Como pontua D’Alva, a celebração na forma de festa trouxe sentido à vida dos jovens periféricos inseridos em um contexto de desigualdade e mazelas ocasionadas pelo capitalismo. O breaking surgiu entre b-boys, b-girls e as sistematizações musicais dos DJs e tinha a festa como seu ápice antes mesmo da batalha. A festa é um território de encontro, convite para a dança e um rito de comunhão da cultura Hip-hop.
As batalhas, por outro lado, são o rito da representação de um território em disputa. Já os treinos são territórios de criação, ensino, aprendizagem, espaço-tempo de produção de sentidos e tessitura de subjetividades entre os movimentos historicamente realizados no breaking e a invenção a partir da relação entre corpo e ambiente. Desta forma, compreender o território simbólico no breaking é reconhecer a potência dos vínculos subjetivos que atravessam os corpos e suas danças. É entender que o território não está apenas na fisicalidade, mas também na memória, na relação, no afeto e na invenção. Nesse sentido, o território simbólico não é estático nem dado: ele é construído e reconstruído continuamente.
Território concreto
Do chão concreto das cidades à concretude de nossas experiências, aqui abordaremos essa dimensão: concreta, física e objetiva. O território concreto refere-se à dimensão material do território, entendida a partir de sua base física e geográfica. Trata-se do espaço delimitado por elementos objetivos como ruas, edifícios, praças e infraestruturas, que possibilitam a ocupação, a circulação e a apropriação por diferentes sujeitos sociais. Ao contrário do território simbólico, que é constituído pelas significações e representações atribuídas ao espaço, o território concreto diz respeito à sua materialidade tangível, constituindo o suporte onde as práticas sociais, políticas e culturais se realizam.
O uso e a ocupação das cidades sempre tiveram centralidade nas práticas de breaking e nas discussões sobre o Hip-hop, principalmente quando o assunto é voltado para as zonas periféricas das cidades. As periferias formaram a cultura Hip-hop e desta forma, se faz necessário abordá-las. Mesmo que os dançarinos de breaking não estejam todos nas periferias, eles se relacionam com elas em alguma medida, pois não há como fazer parte do Hip-hop e não tecer esta relação. D’Andrea (2020, p. 8) afirma que “A periferia sempre foi o território-outro do pensamento hegemônico”. Além de um território-outro, na lógica hegemônica ela é considerada também um não-território. Sobre o termo periferia, D’Andrea formula:
Em sua acepção urbana, o termo periferia deriva dos debates econômicos ocorridos nas décadas de 1950 e 1960 que versavam sobre a relação dos países da periferia do capitalismo com as economias centrais. Naquele momento, uma série de estudos analisou os desdobramentos dessa ordem econômica sobre as cidades latino-americanas que passavam por um processo de explosão demográfica. No caso de São Paulo, intelectuais passaram a denominar periferia um território geográfico cujas principais características eram pobreza, precariedade e distância em relação ao centro. Cabe lembrar que havia distintas posições nesse debate. (D’ANDREA, 2020, p. 20)
D’Andrea, ainda que esteja contextualizado nas periferias da cidade de São Paulo, suas formulações se aplicam a várias cidades do Brasil, como é o caso das periferias de Curitiba. O autor explica que o distanciamento dos grandes centros comerciais caracteriza os espaços para onde são levadas as pessoas em situação de vulnerabilidade social. Essa é uma prática histórica do capitalismo, intensificada no neoliberalismo. Ao mesmo tempo, as pessoas segregadas ficam afastadas das áreas das cidades onde há maior oferta de vagas de emprego, o que as obriga a se deslocar com frequência, resultando em menos tempo para práticas artísticas e atuações políticas na cidade, por exemplo. Por conta disso, afirmar-se enquanto periférico nem sempre foi fácil para os moradores desses territórios, principalmente devido às segregações e aos estigmas impostos a eles. No entanto, a cultura Hip-hop teve um papel muito importante na autoafirmação desses sujeitos:
O momento da mudança na preponderância ocorreu nos primeiros anos da década de 1990, quando fundamentalmente o movimento hip-hop passou a publicizar o termo. Naquele momento, a periferia reivindicou a palavra periferia, começando um processo histórico de modificação de seus significados. Os principais artífices desse processo foram expressões culturais. (ibidem, p. 21)
Especialmente por meio das músicas de rap, mas também através do breaking e das demais linguagens da cultura Hip-hop, essa autoafirmação foi significativa para a coesão entre os territórios periféricos, contribuindo para processos de pacificação e para a denúncia das diversas formas de violência vivenciadas por esses grupos. Assim como a afirmação da identidade dos sujeitos é relevante, a afirmação de seus territórios também se mostra essencial. Desde a década de 1970, no Sul do Bronx, essa afirmação tem marcado formas de união e solidariedade no contexto do Hip-hop. Houve, ainda, a quebra de estigmas em relação às periferias:
Embora a narrativa hegemônica caracterize as periferias como espaços de pobreza, violência e precariedade, jovens moradores desses territórios começaram a construir narrativas que, por um lado, denunciam as contradições existentes em seus territórios a partir de uma perspectiva estrutural mais abrangente, responsabilizando quem está fora deles pelas condições a que estão submetidos, e, por outro lado, enfatizam também as potencialidades e fortalezas construídas pelas pessoas que lá habitam apesar de todas as adversidades. (ARRUDA; SHARYLAINE; SANTOS, 2023, p. 26)
A conscientização da necessidade de autoafirmação, de certa forma, passou por uma dimensão simbólica para chegar à luta do território concreto. As autoras mencionadas afirmam que a periferia não é apenas um lugar de faltas, como mostram os veículos de mídia patrocinados pelos agentes hegemônicos; afinal, se pensarmos nas culturas, práticas e linguagens que surgem nesses territórios, facilmente compreendemos que o que elas comunicam vai muito além.
No entanto, o território concreto não se reduz apenas às periferias, até porque nem todas as práticas ocorrem nelas, ainda que tenham surgido ali. Por uma questão estratégica, inclusive, muitas vezes os dançarinos em cidades grandes se encontram em locais centrais para treinar, já que a locomoção se torna mais fácil — visto que as periferias, na maioria das vezes, são distantes umas das outras. Este é o caso do Shopping Itália, na cidade de Curitiba, local próximo a um terminal de ônibus central que faz conexões com as cidades das regiões metropolitanas e que é ponto de encontro semanal de muitos dançarinos da região desde os anos 1990.
Obviamente, é comum relacionar as práticas de breaking à ocupação dos espaços da cidade e associar os dançarinos a sujeitos que rompem as normativas das cidades capitalistas nas formas como as ocupam — o que não está errado. Porém, muitas pesquisas sobre o breaking estigmatizam os dançarinos e os relegam ao lugar da precariedade. O que quero dizer com isso é que me parece haver a ideia de que o único espaço que os dançarinos devem ocupar são as ruas, e que eles devem estar sempre nelas. Muito se fala sobre ocupar a cidade dessa forma, mas existem outras maneiras de ocupá-la, e devemos refletir sobre isso.
A cidade de Curitiba, por exemplo, é a capital mais fria do Brasil. No inverno, a temperatura cai muito. Três semanas antes da primeira escrita deste texto, eu estava treinando com alguns b-boys no Shopping Itália, já mencionado aqui, durante a noite. A temperatura era de 6ºC. Bem, nesse momento, gostaríamos de estar treinando em uma sala fechada, com um bom piso e ar-condicionado. Além de não ser agradável treinar nessa temperatura em espaço público aberto, há também as questões de saúde e cuidado com o corpo que precisam ser levadas em conta.
O ponto é que, comumente, se romantiza a ocupação da cidade. É claro que os espaços públicos abertos precisam continuar sendo ocupados, mas também é necessário que existam outros espaços. Dançarinos não podem adoecer ou viver no desconforto para que pessoas externas valorizem suas práticas. Nesse sentido, torna-se urgente refletir sobre a necessidade de garantir condições dignas para a prática da dança, reconhecendo que a cidade também deve oferecer espaços adequados, seguros e acessíveis para que o breaking possa florescer em toda a sua potência estética, política e pedagógica.
Território dançado
O território dançado corresponde à dimensão do território constituída pelo movimento do corpo em dança. Diferentemente do território concreto, que se refere à materialidade física, e do território simbólico, ligado às significações atribuídas ao espaço, o território dançado emerge da interação entre corpo e espaço, produzindo novas formas de ocupação e reconhecimento. Nesse sentido, a dança não apenas acontece em um território, mas também o recria, ressignificando suas fronteiras, temporalidades e usos. No caso do breaking e do Hip-hop, o território dançado se manifesta como prática que, ao inscrever gestos e movimentos dançados no espaço urbano, transforma o lugar em um campo de memória e disputas pelos seus significados. Lepecki (2013) discorre sobre a formulação de uma “política do chão”, proposta por Paul Carter:
Para Carter, a política do chão não é mais do que isto: um atentar agudo às particularidades físicas de todos os elementos de uma situação, sabendo que essas particularidades se coformatam num plano de composição entre corpo e chão chamado história. Ou seja, no nosso caso, uma política coreográfica do chão atentaria à maneira como coreografias determinam os modos como danças fincam seus pés nos chãos que as sustentam; e como diferentes chãos sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se transformando no processo. Nessa dialética infinita, uma corresonância coconstitutiva se estabelece entre danças e seus lugares; e entre lugares e suas danças. (p. 47)
As políticas do chão compõem o encontro entre corpos e territórios atravessados por histórias e que dialogam com a Teoria Corpomídia de Katz e Greiner (2005), já citada neste texto. Cada território pode impor limites à maneira como a dança se desenvolve, mas os sujeitos, em diálogo com esse espaço, também escolhem o que e como propor ao território, configurando-lhe novas imagens. Aqui, é interessante levar em conta a presença de olhares terceiros. Frequentemente, quando estamos treinando no Shopping Itália, algumas pessoas param para conversar conosco e dizem que há anos passam por ali e se deparam com esses treinos. A partir disso, é interessante pensar que a imagem da fachada do Shopping Itália, para essas pessoas, pode estar vinculada aos dançarinos de breaking, então a associação daqueles movimentos ao local cria um território dançado. Ainda segundo Lepecki:
Como dançar uma dança que muda lugares mas que ao mesmo tempo sabe que um lugar é uma singularidade histórica, reverberando passados, presentes e futuros (políticos)? Como promover uma mobilidade outra que não reproduza a cinética do capital e das máquinas deguerra e policiais? Como coreografar uma dança que rache o chão liso da coreopolícia e que rache a sujeição dos sujeitos arregimentados pela coreopolícia? Dançar para rachar o chão do movimento, dançar no movimento rachado do chão, rachar a sujeição.” (LEPECKI, 2013, p. 56)
O texto de Lepecki poderia facilmente ser lido como uma reflexão sobre o breaking. Ao dançar em um território, esse território se transforma; e ao dançar continuamente nesse espaço, promove-se uma mobilidade de significados ainda mais intensa. Talvez o espaço do Shopping Itália pudesse passar despercebido se não houvesse treinos de breaking ali. Essa movimentação é uma ocupação do espaço diferente do movimento utilitarista do ir e vir cotidiano. Trata-se de um rompimento com a lógica cinética dominante e da instauração de outras perspectivas possíveis, em que o utilitarismo não é prioridade e onde a produção de outros significados para outros espaços torna-se, muitas vezes, uma questão de sobrevivência. Dança-se para rachar o chão, mas também se dança neste mesmo chão para pavimentá-lo de outras percepções, para abrir espaço para outros dançarinos que virão, como também para os sujeitos transeuntes que possam se deparar com movimentos dançados, rompendo a cinética lógica utilitária cotidiana do capitalismo.
Essa presença constante consolidou o Shopping Itália como um espaço histórico para o breaking em Curitiba; ele contribuiu significativamente para a popularização da dança na cidade. O breaking se territorializa ali: muitas pessoas já sabem o que acontece naquele espaço, o que faz com que haja menos surpresa ou estranhamento em relação à dança acontecendo ali do que em comparação com outros lugares da cidade.
Diversas dimensões podem ser alcançadas por meio da noção de território dançado, e são vários os elementos que permeiam essa relação a respeito do que a dança pode configurar no espaço. As paisagens constituídas pela materialidade do corpo em movimento atribuem novos sentidos aos lugares e aos sujeitos, sejam eles os dançarinos ou aqueles que se deparam com uma dança em seu cotidiano.
Para concluir
A articulação entre as noções de território simbólico, concreto e dançado revela a complexidade das relações que sustentam o breaking enquanto prática estética, política e cultural. Existem fortes interlocuções entre essas categorias, visto que é possível notar suas influências mútuas, justamente porque todas elas fazem parte de um grande conceito: o território.
Ainda que essas dimensões estejam relacionadas em alguma medida, é importante estabelecer distinções entre as dimensões propostas. O território concreto refere-se à materialidade física do espaço (ruas, praças, prédios, equipamentos urbanos), que constitui o suporte para a ação social. O território simbólico, por sua vez, abarca as significações sociais e culturais atribuídas a esse espaço, assim, transformando-o. Já o território dançado enfatiza a dimensão performativa do corpo em movimento, que, ao inscrever gestos e coreografias no espaço, produz simbologias próprias da dança e ressignifica continuamente o território concreto. Com relação a essas duas últimas, pode-se afirmar que o território dançado é sempre simbólico, pois está atravessado por sentidos culturais e políticos, mas nem todo território simbólico se constitui como dançado. No caso do breaking, essa tríplice articulação revela como corpo, espaço e significado se imbricam na produção de sentidos para os sujeitos que dançam e que se relacionam de alguma maneira com essa prática.
É claro que existem muitos outros assuntos para abordar no que diz respeito ao território no breaking e na cultura Hip-hop, assim como existem outras críticas necessárias a serem feitas e que continuarão sendo tecidas ao longo de minha pesquisa de mestrado. Este é um fragmento da pesquisa com elementos que tem me ajudado a compreender o território nesse contexto. Essas dimensões foram elaboradas dentro desta pesquisa e foram percebidas através da prática e da relação, enquanto me territorializei em todos esses territórios. A territorialização é importante porque mantém os dançarinos em um estado de produção de sentidos que nos leva à continuidade, assim como é indispensável para o prosseguimento desta escrita.
Essas dimensões colocam o território em constante movimento, e a política dos corpos se faz nos territórios que nos conectam com a memória da história em uma dimensão ritualística na cultura Hip-hop.
Referências
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