Crítica – Encantados | Aquilo que é visto e ainda não se vê

Ouça essa notícia
|
Imagem – Sammi-Landweer
Por Jonas Alves
Licenciando em dança (UFPE), artista e professor de dança
Encantado – o mais novo trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças – desenvolve em cena uma proposta a partir do entendimento de seres, os encantados – e o próprio verbo encantar – que atravessam o tempo e se transmutam em diferentes expressões da natureza. Um espetáculo com 140 cobertores e 11 bailarinos concebido durante o período de pandemia, Encantado vem à cidade do Recife pelo TREMA! Festival, com uma única apresentação na abertura oficial do referido festival, no teatro Luiz Mendonça no Parque Dona Lindu.
Encantar-se: estar maravilhado por ações que nos remetem a um sentido de feitiço ou estar enfeitiçado. A coreógrafa Lia Rodrigues, questiona a palavra encantado a um sentido crítico social junto também as ações predatórias que ameaçam a vida na terra e impactam também a existência humana. Percebo esse pensamento como uma grande fumaça sendo soprada a todo momento em direção a nossos olhos distorcendo a realidade e aquilo que se está a nossa frente. No “desenrolar dos tecidos” enxerguei gritos de poder e esgotamento de um corpo vivo e em exaustão diante da violência arquitetada em nosso presente: No seu maior alvo, tratamos da periferia e do projeto de desmatamento contínuo que fere os povos originários e semelhantes vivendo no norte de nosso país, onde sua execução vem sendo investida por ações políticas de diferentes frentes atuais de representações nacionais.
Estimular a reflexão, proporcionar espaços de debate, sensibilizar outros indivíduos para as questões da arte contemporânea, gerar encontros intelectuais e afetivos, além de apoiar e investir na formação e informação de novas plateias são algumas das ações que a Lia Rodrigues Companhia de Danças vem desenvolvendo há 29 anos. A Companhia se mantém em atividade durante todo o ano, com aulas, ensaios do repertório e trabalho de pesquisa e criação, sempre em colaboração com os artistas-bailarinos. Além do espaço ser a sede da Lia Rodrigues Companhia de Danças, o mesmo também abriga outras iniciativas, sendo uma delas, a Escola Livre de Dança da Maré, um lugar de partilha, convivência e de troca de saberes, direcionado para a formação, criação, difusão e produção da dança e das artes.
No espetáculo, há um investimento de movimento gestual, de forma que, em uma das cenas, visualizei os bailarinos como deuses gigantes, manifestando-se contra todo descaso e irresponsabilidade que vem sendo feito a céu aberto no país, gerenciada por um presidente genocida com seu projeto bem sucedido de horror.
Ao final do trabalho, o pulso musical forte e contínuo, ainda se encontra em cena, entretanto, os bailarinos saem da lógica de contraste que eles construíram e assumem uma dança dentro do que a própria música propõe, um momento de uma “uma dança cafona”, todavia, também se mostra como uma dança de urgência, de revolta, de transformação, de vivacidade, de resistência e esperança por dias melhores e contra todo o projeto atual de morte das comunidades minoritárias de nosso país. Portanto, é indispensável que espectadores tenham a oportunidade de ver este trabalho de tamanha qualidade e configuração crítica que, por si só, trata de questões para reflexão e constrói sua dramaturgia a partir das possibilidades do encantamento – como suspensão da realidade, mas também resistência à mesma.