“Fazer teatro é estar nesse lugar também da luta” | Entrevista – Grupo Carmim
Imagens – Divulgação
Uma frasqueira encontrada no lixo contendo vestígios de vida de uma mulher de 90 anos. Este fato real levou o grupo Carmin a conduzir uma investigação que durou três anos e que, em agosto de 2013, resultou na peça de teatro documental intitulada Jacy, que acompanha a vida de uma mulher comum que atravessou a 2ª Guerra mundial e a ditadura no Brasil, esteve no centro de um importante conflito da política no RN, viveu um amor estrangeiro e terminou os seus dias sozinha em Natal.
Durante a passagem do espetáculo pelo TREMA! Festival 2016, nosso editor-chefe, Márcio Andrade, conversou com o diretor, dramaturgo (junto com Pablo Capistrano) e ator (com Quitéria Kelly) do espetáculo, Henrique Fontes.
Como foi a descoberta dos documentos que levaram à personagem do espetáculo de vocês e como foi o processo de construção da dramaturgia e da encenação?
O encontro da frasqueira no lixo perto da casa dos meus pais, em março de 2010, aconteceu no início do processo de pesquisa sobre a velhice e o envelhecer. Aquilo mexeu conosco porque era uma evidência cabal do abandono e descarte da memória dos idosos.
A partir dali, começamos a investir numa construção de uma obra de ficção baseada nos vestígios que encontramos na frasqueira. Depois de um ano e meio, percebemos que aquele texto não dava conta da potência do material biográfico que havíamos encontrado. Até chegar nesse formato que estreou em 2013, foram três anos de investigação: tanto do material sobre a vida dela e da história que fazia ecoar da vida dela como da linguagem. Eu tive com contato com o teatro documentário através da obra da Lola Arias, que é uma diretora, dramaturga e atriz argentina. Em 2012, eu fui ao Santiago a Mil e assisti ao Mi vida después. Ela trabalha muito com a linguagem audiovisual e eu percebi que isso era uma recorrência no teatro documental, talvez pelo tom jornalístico ou talvez pela evidência ser ali ampliada através das imagens, terminava dando mais credibilidade à história. Muitas vezes, a negação também é feita ali, ao vivo, através das imagens – que é um recurso que Lola usa bastante. E isso me chamou muita atenção.
Na época, a gente tinha uma parceria com Pedro Fiúza, um cineasta que tem pesquisado cada vez mais esse hibridismo de linguagens e já estava junto conosco no registro do espetáculo Pobres de Marré, e terminei o convidando para participar desse processo de montagem. Foi aí que ele começou a investir nessa ideia da dramaturgia audiovisual. E, realmente, o tom documental feito ao vivo foi uma opção consciente nossa para que toda a obra fosse realizada de forma efêmera: não se teria um vídeo para ser exibido, mas estaríamos fazendo tudo ao vivo, com recursos precários e correndo o risco de dar problemas. E tudo isso seria dramaturgia e documento.
Como este movimento de exposição de intimidades (no teatro, na dança, no cinema, nos quadrinhos etc..) dialoga com a proposta de Jacy?
Na peça, o tom que a gente dá à narrativa não passa pelo autobiográfico. A gente traz relatos do nosso processo de investigação, das nossas memórias a partir da frasqueira, mas a gente não revela muitas das nossas intimidades. Tem fases das nossas vidas que estão lá, mas o foco não é esse. Até porque o foco é Jacy, é o encontro fortuito dessas memórias, do lugar para onde essas memórias nos levaram. O encontro da cuidadora dela, que nos contou toda a história de vida de Jacy – ou, ao menos, a versão dela dessa história. E o quanto isso ecoou na macrohistória da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte e no Brasil nessas nove décadas de vida de Jacy. Então, a peça vai atravessa esse trajeto de documentos, mas a parte autobiográfica mesmo é muito pequena: é a reconstituição da memória a partir daqueles fragmentos com que a gente se deparou, logo no começo do espetáculo.
Sobre esse movimento de exposição de intimidade de maneira geral, eu acredito que todo material que pode gerar documentos, seja ele um documento a partir do corpo-documento, um documento de registro histórico, de relato, tem uma potência cênica que merece ser investigada. Eu só não sou muito interessado nos processos em que o relato pessoal já é a obra. Nada contra, mas acredito que, no nosso trabalho, há uma investigação da estética dessa narrativa, de como a gente constrói esses meios para comunicar. Tem um elemento que a gente sempre procurou enfatizar no grupo que é o humor: não um cômico do deboche, mas da ironia, do abrir canais para fazer as pessoas refletirem mais profundamente sobre assuntos que a gente considera mais sérios. O autobiográfico como depoimento, ao menos no nosso trabalho, não possui essa veia tão marcante.
Em 2016, o TREMA! Festival tematiza trata da (Re)Construção caldado na nossa crise política e, de certa forma, ideológica. Como essa esfera temática pode ser pensada nos espetáculos de vocês?
Eu acredito que a gente já sabe que todo teatro é político. O próprio ato em si já traz essa força por reunir aquelas pessoas naquele momento em torno de um tema, da história, do que seja. No nosso caso, a gente sempre investigou uma temática que era muito urbana, muito ligada ao universo da rua. Foi assim no nosso primeiro espetáculo, Pobres de Marré, que tinha como material de base moradores de rua com que tivemos contato no bairro onde a gente ensaia – Ribeira, em Natal. Desde lá, nós tivemos muito essa conexão com o que as ruas diziam. Não por acaso, foi na rua que a gente encontrou a frasqueira que deu origem ao Jacy e isso terminou nos levando para vários lugares. Também não por acaso, estamos cada vez mais nas ruas tentando reverter esse momento terrível que temos vivido sobretudo nos últimos meses. Acredito que estar nesse nosso contexto de teatro é estar nesse lugar também da luta, da denúncia, do questionamento, da reflexão. Eu, particularmente, acredito que não exista muito espaço para criarmos histórias muito desconectadas dessa atual realidade.
Não estou falando somente daqui do Brasil, mas do mundo. Mas nossa realidade recente é de um desmanche, de um descompasso abissal. Então, ou a gente dá voz a isso ou não sei muito bem para onde a gente vai com essa arte. Jacy tem esse peso político, não somente pelo retrato histórico, mas por uma cena em específico em que a gente faz uma genealogia do poder no estado do Rio Grande do Norte, a relação com a ditadura… E tudo isso termina se conectando com todo o organismo político que a gente viu se manifestando no dia 17 de abril, representado pela Câmara dos Deputados – que parecia ser um grande churrasco familiar de burgueses que estão há muitos anos no poder. Nosso espetáculo mais recente, Porque Paris?, vai na mesma linha, mas a gente não parte somente da pessoa, mas também da obra de Marguerite Duras, escritores que também trabalhou com esse limite entre ficção e realidade – e relaciona isso com os atentados de Paris. Então, acredito que o grupo tem esse lugar muito claro de um “precisamos falar disso”.