A dramaturgia metateatral de Luís Augusto Reis
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Por Igor de Almeida Silva
Doutor em Artes Cênicas (USP) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
O trabalho dramatúrgico de Luís Augusto Reis inscreve-se na linhagem de textos metateatrais que ganha força, sobretudo, na primeira metade do séc. XX. Seu tema é o próprio teatro, o jogo de ser e não ser, ser e parecer, cuja fronteira entre realidade e representação é constantemente friccionada, em um jogo ambíguo que trafega entre o elogio e a ironia mordaz ao teatro. Ao todo, escreveu cinco textos, todos sob a encomenda do encenador Antonio Cadengue, com a exceção de sua primeira peça: A filha do teatro (ensaio melodramático em 3 atos). Seus demais textos são: Thy name (elogio em um ato), A morte do artista popular (farsa burocrática em 12 quadros), O triunfo do realismo (drama-show em um ato) e, agora, Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade.
A filha do teatro[1] é construída em uma estrutura narrativa, paradoxalmente, plena de dramaticidade: nove monólogos intercalados por três atrizes, que interpretam alternadamente três personagens, uma diretora de teatro morta; uma jovem atriz, filha adotiva da encenadora; a mãe biológica da atriz, ex-prostituta, responsável pela morte da diretora.
Assim como Thy name e A morte do artista popular, A filha do teatro é um metadrama, como designa Jean-Pierre Sarrazac essa modalidade dramatúrgica que, ao seu modo, também coloca o drama em crise.[2] No texto, três atrizes ensaiam uma peça de teatro de feições melodramáticas onde as estórias de três mulheres se cruzam tendo como vetor convergente o próprio teatro. No entanto, a peça exterior revela-se apenas uma moldura que envolve a peça interior e que, por sua vez, preenche todo o texto. Só se toma conhecimento do “conteúdo” da peça exterior, a priori, por intermédio das didascálias que informam o jogo de papéis das atrizes que se revezam em 3 personagens ao longo da peça. No entanto, pela própria estrutura fabular da narrativa, a questão metalinguística transborda e se reflete em todos os níveis do texto, no que concerne à sua estrutura, ao seu enredo, às suas significações.
De antemão, mais que teatro dentro do teatro, o que encontramos é teatro sobre o teatro. Pois todos os personagens da trama interna, se não pertencem ao universo do teatro (como a diretora e a sua filha adotiva), por ele suas vidas foram atravessadas de modo significativo, como a ex-prostituta que, participando de um espetáculo da diretora de teatro, no qual faz uma cena de sexo explícito, passa mal e entra em trabalho de parto. A partir do nascimento dessa criança, filha do teatro, a vida dessas quatro mulheres (pois a diretora possui uma namorada, a Elisa que, no final das contas, é quem cuida da criança, após a morte da diretora e da prisão da ex-prostituta) é interligada. Teatro sobre o teatro porque boa parte das observações e narrativas das personagens refere-se ao teatro, seja tecendo seus pontos de vista sobre a arte teatral, seja utilizando o teatro como metáfora para ler o mundo, em um processo associativo contínuo. Essas associações são feitas prioritariamente pela diretora de teatro e pela jovem atriz.
O ponto de vista da jovem atriz sobre o teatro é construído basicamente a partir de suas experiências profissionais e acadêmicas no contato com outros artistas, diretores e atores com os quais trabalha, e com professores da universidade onde estuda. É, portanto, sempre a partir do outro. Mas esse outro é quase sempre um diretor. Inclusive, ela almeja ser diretora e não atriz, pois não se considera com talento suficiente para continuar investindo na atuação. Já o personagem da diretora de teatro também discute o teatro, mas do ponto de vista de uma artista madura e ciente de sua arte, ou seja, do ângulo da encenação.
Paradoxalmente, apesar de A filha do teatro lançar mão amplamente do jogo de papéis, em que os personagens da peça exterior são atores que interpretam outros personagens, em um jogo consciente de troca de personagens, a peça não trata da arte do ator. Mais espaço tem a discussão em torno da arte da encenação e da ética na arte.
O enquadramento de uma narrativa na outra duplica-se e se ramifica a um segundo nível de teatro dentro do teatro ao se inserir trechos das peças Yerma, de Lorca, e Woyzeck, de Büchner, que funcionam como intertextos ou citações dramáticas. Cria-se uma peça dentro de uma peça dentro de outra peça. Outro nível de metateatralidade reside no diálogo que o autor estabelece com o gênero melodramático por meio de sua fábula e personagens. Paradoxalmente, toda estrutura fabular do drama tem como suporte a narratividade. Como efeito, há uma dialética de enternecimento (próprio do gênero melodramático) e de distanciamento (pertinente ao épico), que revela um segundo nível de autoconsciência do texto, que o suporte narrativo lhe confere. O personagem da diretora de teatro é o mais autoconsciente da narrativa e, assim, o mais metateatral no que concerne à sua existência puramente ficcional, visto que a diretora de teatro já está morta desde o início da representação. É uma morta que inicia e conclui a peça, assim como Geni de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues.
Não há uma busca, por parte do autor, de uma localização temporal e espacial, de uma verossimilhança que enquadre os vários níveis de ficção do texto. Os tempos e espaços da peça são sempre os do palco. Só há um lugar, o palco. E o tempo é sempre subordinado ao espaço-tempo da performance. Existe apenas uma consciência nessa peça: a do narrador oculto e onisciente que se metamorfoseia nos personagens, e cuja fala é compartilhada pelas três atrizes. A narrativa existe por si só enquanto puro artifício, como entidade autônoma, semelhante a Vestido de noiva, também de Nelson Rodrigues.
Talvez o personagem mais peculiar seja o da jovem atriz, híbrido de personagem melodramática e metateatral. Toda sua vida existe a partir do teatro e nele é refletida. Filha de duas encenadoras e de uma atriz de sexo explícito, praticamente nasce em cena. Em seguida, torna-se uma atriz (apesar de desejar ser diretora) e muitos dos diretores com os quais trabalha usam de sua história pessoal como material cênico dos espetáculos nos quais atua. Sua vida é fruto do teatro que, por sua vez, continua a alimentar o próprio teatro, em um processo continuamente autofágico.
Em Thy name,[3] um velho ator vai ao palco para representar um espetáculo-homenagem ao seu pai encenador, dramaturgo e teatrólogo já morto. No entanto, em um ato de “rebeldia”, o ator decide fazer sua própria homenagem, a despeito do espetáculo preparado pelo autor e pelo encenador, e lê em cena uma antiga carta que seu pai havia lhe enviado pouco tempo antes de vir a falecer em 1976. Como os personagens pirandellianos, o ator rebela-se contra o autor e encenador do espetáculo ao fazer de improviso sua própria homenagem. E este improviso que antecede o “espetáculo-homenagem” – cujo início é constantemente prometido e obviamente sempre adiado – constitui toda a homenagem, visto que, devido à emoção, ao final da leitura da carta, o ator se diz incapaz de iniciar o espetáculo planejado. A representação finda-se antes mesmo de começar. Ela é interrompida e abortada antes de seu início. Tal qual a trilogia pirandelliana, trata-se de una commedia da fare, uma peça por fazer, pois se vê um ator impedido de dar início ao seu espetáculo antes ensaiado, apresentando em seu lugar outra homenagem, aparentemente extraída de um documento real, de suas memórias.
Como o próprio subtítulo do texto já indica, trata-se de um eulogy, palavra inglesa que pode significar aquele discurso que se faz durante o funeral de alguém, quando se destacam todas as qualidades do morto. E o próprio título da peça também faz menção ao seu caráter fúnebre e litúrgico, “vosso nome”, como uma oração que o velho ator dedica ao pai e que, de fato, o faz ao final do texto.
O texto é uma homenagem a Hermilo Borba Filho, homem de teatro de inestimável contribuição para o moderno teatro brasileiro, particularmente no processo de modernização do teatro no Nordeste. Ironicamente, contradizendo a origem etimológica da palavra inglesa eulogy, o texto fala do fracasso, tanto na vida quanto na arte. Fracasso na vida pois se trata da relação entre um pai e um filho, entrecortada por conflitos, ausências e rupturas; fracasso profissional pelas vicissitudes próprias do métier teatral: ausência de estabilidade financeira, certos fracassos artísticos e a autoconsciência do artista que reconhece seus limites e reveses na arte teatral.
Nesse sentido, as referências ao teatro são bastante generosas, particularmente no que concerne à produção artística de Borba Filho, mas sobretudo ao teatro brasileiro. Ao período ditatorial marcado pela repressão e censura artística, às experiências da criação coletiva durante os anos 1970 e, principalmente, à peça Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, vencedora do Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, em 1974, imediatamente interditada pelo governo federal. Hermilo Borba Filho, na vida real, participa da comissão julgadora que outorga o prêmio a Vianninha, e são suas impressões acerca dessa peça que deflagram diversas considerações sobre o fazer teatral, particularmente o da arte de escrever para o teatro, e sobre a história recente do teatro brasileiro sob a tutela dos militares, em que no e através do teatro se apresenta a relação de um pai e um filho. Uma tentativa de reparação póstuma e de entendimento, mesmo que tardia. Além disso, a peça de Vianninha, Rasga coração, que apresenta duas gerações em conflito, também um pai e um filho, espelha as relações conflituosas e, ao mesmo tempo, ternas do pai Hermilo Borba Filho e do filho ator Alfredo Borba, por meio dessa suposta carta. Como já dito, aqui, o palco torna-se espaço de reparação e entendimento.
Em A morte do artista popular,[4] o procedimento do teatro dentro do teatro reaparece de modo paradoxal. O que encontramos? Um drama debaixo do outro, eis literalmente a resposta. Pois se, em A filha do teatro, seu caráter metateatral é exposto desde o princípio; em A morte do artista popular, sua metateatralidade oculta-se, lançando apenas pistas muito sutis e de modo ambíguo até o desfecho da peça, quando sua verdadeira natureza é revelada: apenas teatro.
Resumindo: na trama secundária ou peça interior, uma comissão de especialistas é formada para o concurso de dramaturgia Palavra e Palco. Durante suas reuniões, discutem-se as qualidades de algumas peças (sobretudo de uma peça “meio esquisita”, chamada A morte do artista popular, como diz um dos personagens, já um indício da autoironia e autorreferência do autor). Nessas discussões, surgem questões de ordem ética, política e estética, que sobrenadam toda a trama e desencadeiam os conflitos entre os membros da comissão até a divulgação do resultado final, quando A morte do artista popular fica em segundo lugar por apenas 1 décimo. Tudo em um clima kafkiano, de excessiva burocracia e constante vigilância. E na trama primária ou peça exterior: uma diretora de teatro e seu assistente ensaiam um espetáculo com aspirantes a atores. Trata-se também de uma seleção (provavelmente para ingressar em uma companhia de teatro) onde os julgados (os atores) interpretam jurados de um concurso de dramaturgia. Como em Pirandello, uma trama espelha a outra, duplicam-se. Seu desfecho é cruel e irônico: nenhum dos atores é selecionado.
O que torna paradoxal este texto de Luís Augusto Reis é que não se sabe com precisão os princípios que regem seus mundos de ficção. Ou seja, onde começa e termina cada uma de suas tramas. O autor procura todo o tempo ocultar uma ficção na outra, como se em um processo contínuo de mascaramento. Sua estrutura e estilo é completamente diverso de A filha do teatro. Se nesta a fábula é oferecida sob uma moldura narrativa, em que os personagens estão imersos no pathos e há certa voluptuosidade no uso da língua por parte do autor; em A morte do artista popular, o diálogo ganha novamente seu lugar, dessa vez de modo econômico, essencial, com frases curtas e secas, que se alternam com eventuais momentos nos quais certos personagens da peça interior tomam a palavra em longas e elaboradas defesas de seus pontos de vista.
O texto é composto por 12 quadros, em que cada um possui o título dos itens de um projeto cultural: apresentação, objetivos, justificativa, fundamentação teórica, metodologia, cronograma, orçamento, contrapartida social, anexos etc. Não há protagonistas, as cenas alternam-se entre momentos corais e solos dos personagens. Cada quadro apresenta uma situação em seu clímax, sem oferecer, entretanto (ou então de modo bastante difuso), ao espectador subsídios, uma contextualização, que o permita localizar-se na trama. Retomar e compreender a fábula, os personagens e suas ações. Este drama está submerso. Só o espectador pode reconstituí-lo imaginariamente, mesmo que com muitas lacunas. Isso porque seu fluxo, o do drama, é todo o tempo interrompido, ocorre aos saltos. O que vemos são apenas fragmentos ou, como o autor mesmo indica, quadros, que apresentam situações provisórias, incompletas.
Se em A filha do teatro, a metateatralidade é explícita; o autor, em suas peças seguintes, vai da negação da representação (Thy name) até a dissimulação de sua metateatralidade (A morte do artista popular). Em sua quarta peça, O triunfo do realismo,[5] o teatro deixa de ser seu tema de predileção, tornando-se presença fantasmal ao apresentar uma família de classe média que teatraliza seu próprio cotidiano. Um casal, um ex-sogro e um enteado não dialogam, mas monologam do começo ao fim como se participassem de um programa de reality show, falando diretamente ao público que se torna uma câmera e o palco um estúdio. Teatralização do cotidiano de uma sociedade que, cada vez mais, nega a arte enquanto mimese e representação, em função de um “real” transformado em espetáculo. Sua riqueza e paradoxo encontra-se nos desafios que lança a atores e encenadores de se contar uma história em contextos de ficção e/ou enunciação no quais a própria fábula parece ser sabotada por seu criador. De modo geral, sua dramaturgia explora os limites do drama e da representação por meio de uma experimentação formal na qual o drama aparentemente desapareceu, ou simplesmente recebeu outro enquadramento.
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade acontece diante de nós sob outro diapasão. Espécie de texto-roteiro ou performance-roteiro cuja estrutura dramatúrgica existe como suporte para a atuação dos atores. Antes de tudo, ele é um “pré-texto”, uma provocação à inventividade e à inteligência de todos os envolvidos nesse ato criativo. É um convite à brincadeira. Reis procurou trabalhar com os procedimentos típicos do Vivencial: paradoxo, ambiguidade (todas), poesia, paródia, alta-cultura misturada ao pop-chulo, carnaval e pathos, política micro-macro, crueldade e inocência, safadeza e ingenuidade. Como diz o autor, “Não se trata, porém, de tentar replicar o Vivencial nos dias de hoje – impossível! É apenas um tributo, uma festa, um agradecimento. Lança-se um olhar, atual, sobre aquele acontecimento tão incrivelmente forte dos anos 1970 e 80, mapeando poeticamente suas reverberações em nosso próprio modo de ver/fazer teatro hoje”.
Lá estão a trajetória e as figuras mais emblemáticas do Grupo de Teatro Vivencial; mostradas e narradas, apresentadas e re-apresentadas, em constante recriação e miXturação. No entanto, dizer e mostrar o Vivencial em cena, por meio dos corpos dos atores, não é sua única preocupação. Ao mesmo tempo em que a dramaturgia se volta para o Vivencial (sua história), ela se preocupa também com a própria linguagem, isto é, em dizer o próprio teatro. Pleno de sentidos possíveis, Puro lixo não se presta exatamente a um ensaio crítico (como aqui se esboça). Seu ensaio é de outra ordem que apenas se manifesta devidamente pela criação artística, na qual o palco é sua origem e destino.
Mais do que afirmar ou contar algo acerca de nós mesmos, por intermédio do Vivencial, Puro lixo oferece-nos interrogações. Pode-se dizer, com Barthes, que Puro lixo pertence à categoria dos textos escriptíveis, isto é, aqueles textos que solicitam não apenas uma leitura ou representação, mas, sobretudo, uma re-apresentação, o que lhe confere ainda uma natureza performativa. Ele deve ser lido e re-escrito em cena; exige uma nova escritura, pois, como diz Leyla Perrone-Moisés, “A própria práxis da escritura, tendo um outro texto como instigação já é uma valoração desse texto. Escrever um texto [em nosso caso, o espetáculo ou a performance] a partir de outro texto é demonstrar o seu valor. […] é a qualidade do segundo texto que atesta a qualidade do primeiro; e a sua própria qualidade só será atestada se ele produzir um terceiro, e assim por diante”.[6]
Portanto, uma escritura dramática que só pode atestar sua potência poética à medida que instiga outro texto, dessa vez uma escritura cênica, que se pretende (como o subtítulo de Puro lixo indica) vibrante, plena de prazer e gozo.
[1] Estreia em 6 de junho de 2007, no Teatro Hermilo Borba Filho, sob a direção de Antonio Cadengue, pela Companhia Teatro de Seraphim. Esta produção inicia a colaboração artística entre Antonio Cadengue e Luís Augusto Reis.
[2] Cf. SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 106-108.
[3] Estreia em 30 de julho de 2009, sob a direção de Antonio Cadengue, como parte das atividades programadas da Semana Hermilo 2009, dedicadas à obra do teatrólogo pernambucano Hermilo Borba Filho.
[4] Espetáculo de conclusão do curso de formação do ator, promovido pela Escola SESC de Teatro, da unidade SESC Piedade, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, estreado em 4 de dezembro de 2010, no Recife, no Teatro Marco Camarotti, sob a direção de Antonio Cadengue.
[5] Exercício cênico escrito para o curso “A Encenação: da teoria à encenação”, sob a direção de Antonio Cadengue, promovido pela Unidade SESC Piedade, realizado nos dias 1 e 2 de dezembro de 2012.
[6] PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 57.