Entrevista – Hilton Cobra | Um delírio que alimenta
Imagem – Divulgação
Criado especialmente para comemorar seus 40 anos de carreira do ator Hilton Cobra, o espetáculo Traga-me a Cabeça de Lima Barreto (acesse a crítica AQUI), com texto de Luiz Marfuz e direção de Fernanda Júlia, esteve nos dias 17 e 18 de fevereiro no Recife. Nessa entrevista, o ator conversa com nossos colaboradores Bruno Siqueira e Lorenna Rocha, que acompanharam as atividades que compuseram a passagem do artista pela cidade.
A vinda de Hilton Cobra para Recife contou com a realização de uma roda de diálogo no Centro de Artes e Comunicação (CAC – UFPE) sobre o Teatro Negro no Brasil, o Encontro de Artistas e Produtores Negros(as) no Espaço O Poste Soluções Luminosas com a mediação de Agri Melo, Naná Sodré e Samuel Santos.
Hilton Cobra é ator, iluminador, gestor e membro fundador da Companhia dos Comuns, desde 2001, criada com o objetivo de dar maior visibilidade às culturas negras e ampliar a presença de artistas negros no teatro brasileiro contemporâneo. Foi presidente da Fundação Cultural Palmares (2013-2014) e co-coordenador do Fórum Nacional de Performance Negra (2005, 2006, 2009 e 2015).
Nas apresentações do espetáculo, você estava visivelmente emocionado e agradecido. Para você, como foi ter uma plateia ocupada, majoritariamente, por estudantes universitários negros?
Esta é a pergunta mais fácil. Eu fiz esse espetáculo no ano passado e a última vez em que o apresentei foi em dezembro. Desde então, não o havia apresentado ou ensaiado de forma contínua. Eu havia ensaiado durante esta semana e me deparei com o Barreto Júnior, um dos melhores palcos em que eu já subi com o Lima Barreto.
Chegar em Recife como o primeiro espetáculo dessa turnê que foi muito importante. Primeiro, a gente queria fazer em Recife. Eu sei que Recife tem uma força, uma energia, que seria muito interessante para essa retomada, e o Barreto foi a oportunidade de encontrar o público pernambucano, dar início a essa temporada-turnê de 2019 e, também, vamos dizer assim, “reatualizar” o espetáculo. Eu acho que foi um espetáculo, sim, muito bom, muito forte dentro do Barreto Júnior. Fiquei feliz e satisfeito com a apresentação. Sei que o espetáculo tocou, de fato, todo aquele público que lá estava.
Lá, no Teatro Milton Bacarelli, aconteceu uma coisa muito interessante. Primeiro, eu estava bem cansado. E o cansaço às vezes favorece as interpretações, a atuação, via Grotowski. Quando eu tô muito cansado, eu fico quase à flor da pele, de forma emocionada, de fato. Eu já estava mais extenuado, e a equipe também, por conta do trabalho anterior no Barreto.
A montagem lá na Universidade foi, digamos assim, mais tranquila. Agora, mais importante: o ambiente dentro da Universidade me deixou completamente à vontade, querendo fazer muito, embora estivesse exausto. Aquela conversa que fizemos anteriormente, à tarde, com os estudantes, foi um reaquecimento, um aquecimento, de fato, para que eu pudesse entrar em cena ali às 19h.
Quando eu entrei em cena e vi aquele teatro lotado… eu pude realmente perceber – eu vejo tudo e todo mundo – e eu disse: “Algo hoje vai acontecer diferente. O espetáculo vai seguir normalmente, mas algo vai acontecer diferente”. E tem mais: esse espetáculo foi concebido para espaços pequenos. Esse espetáculo é nada mais, nada menos do que uma conversa. Essa conversa, às vezes, num teatro grande, não se estabelece de forma suprema. Mas em um espaço menor, ela se estabelece.
As vozes e as técnicas têm que baixar um pouco mais e você realmente começa a bater papo. No Milton Baccarelli teve. Ali houve aquela troca de que a gente fala, aquela que o teatro realmente estabelece: é quando tem faísca. Faísca é: eu recebo do espectador, o espectador recebe de mim. É ai que se estabelece o teatro. Foi isso que aconteceu ontem lá.
Então, eu estava inteiro, emocionado e muito à vontade. E muito cansado. Tudo isso favoreceu. E a receptividade. Aquele público que estava lá ontem – não quero dizer que estava tão diferente de lá do Barreto Júnior – mas aquele público que estava ontem no teatro, lotado de estudantes, no primeiro dia de aula da Universidade… tudo estava favorecendo para que a gente estabelecesse aquela comunicação.
As imagens que você traz no espetáculo parecem formas de lutar contra os referenciais hegemônicos e convocar a comunidade negra a se organizar e conhecer sua própria história. Como esse desejo de se conectar com as raízes africanas deságua na sua arte?
Eu acho que a gente não pode se afastar dessas raízes seculares, milenares. Nós, que somos africanos diaspóricos, temos que sempre buscar essa raiz. Para darmos respostas também ou para ficarmos mais fortalecidos no enfrentamento ao racismo em um país como o Brasil ou como os Estados Unidos. Então, nós temos que ser amparados por essas coisas, por essa ancestralidade.
Eu acho que Lima Barreto, por exemplo, sofreu muito em vida. Produziu muito, demais. Foi bastante injustiçado. E eu, encarnado em Lima, digo: “aqui está, leia minha obra, pensem nisso, eu retorno para o outro lado do Atlântico para reencontrar os meus ancestrais, ali alinhados no seu doce e sofregante esconderijo das almas”. Isto é de uma beleza… Isto é absolutamente bakular.
Como eu disse, Bakulo são aquelas figuras que vieram à Terra, e depois foram embora, mas fizeram algo significativo… e foram embora. Então, viraram Bakulos. Eu acho que você tem sempre que buscar essas referências ancestrais, de fato. Eu acho que é uma forma de você restabelecer suas forças para hoje lutar contra o racismo estruturado e institucionalizado, por esta suposta ciência eugenista que se implantou no Brasil no final do século XIX e início do século XX, capitaneada por crápulas como Nina Rodrigues, Monteiro Lobato, Renato Kehl e tantos outros.
Situado entre os séculos XIX e XX, o espetáculo provoca reflexões sobre teorias científicas que legitimaram o racismo da época. Como você percebe os mecanismos que sustentam o racismo no Brasil hoje?
Eu acho que o melhor exemplo que eu posso dar é o estabelecimento desse governo de ultradireita que nós temos hoje. Isso está mais do que alicerçado por essa suposta ciência eugenista de purificação de raça. Olha só como eles estão lutando contra nossas questões ideológicas, dentro da escola, da arte, da cultura.
Eles vão ceifando todas essas coisas que há pouco tempo conquistamos. Conquistamos algo e esses caras estão tirando. Eles estão ancorados nesse processo eugenista, não temos dúvida disso, no qual as instituições ainda estão ancoradas: racistas e estruturadas pela eugenia.
Então, por exemplo, você só tem o Bolsonaro hoje porque buscaram, de fato, esses princípios eugenistas. E o que vai fortalecer esse governo é justamente a luta contra a perseguição que eles vêm fazendo às nossas ideologias – ideologias estas que vêm de todas as matrizes africanas, afro-brasileiras, indigenistas, culturalmente falando.
Quando nós criamos o espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto!, não existia ainda Bolsonaro, não existia essa ultradireita com perigo de tomar o poder no Brasil. E então, por exemplo, nosso espetáculo, diante dessa terrível realidade, vai se tornando cada vez mais atual.
E, sendo atual, fica mais fácil poder contribuir, através do nosso ofício, do fazer teatral, para transformar esse universo opaco que transtorna o povo brasileiro. E é isso que é profundo na arte. Lembremos do que disso Glauber: “Somente a arte é livre e portanto capaz de transformar qualquer coisa”. Talvez seja um delírio, mas o delírio também alimenta. Eu acredito nisso.
Um tema que perpassa a vida e a obra de Lima Barreto é a loucura, assim como as pesquisa de Frantz Fanon, psiquiatra e militante martinicano se debruçou sobre vítimas de racismo. Como este tema atravessou as pesquisas para o espetáculo?
Quando nós decidimos trabalhar com Traga-me a cabeça de Lima Barreto!, trabalhar o Lima Barreto, a gente não sabia que queria trabalhar com eugenia. Era Lima, mas não sabíamos o que era. Não sabíamos que haveria uma autópsia da cabeça dele. Isso é bom não saber.
Eu fiz Silêncio, que é trabalho com a loucura; eu fiz Quaresma (Triste Fim de Policarpo Quaresma), em que tem uma certa coisa alucinada na cabeça daquele homem; e eu vim fazer agora o Traga-me, onde nós entramos na questão da loucura – a loucura em que Lima delirava, enlouquecia etc. E eu quero continuar o trabalho de Teatro trabalhando com o tema “loucura”. O Fanon vem daí.
E, daí para frente, eu não sei nada do que vai acontecer. Sei que eu tenho que mergulhar na obra de Fanon e ainda perceber se é possível, realmente, cruzar Fanon com a loucura, mas eu sei que sim, que dá para fazer. Mas aí também o tempo exige um campo político para isto, um espaço político para trabalhar a loucura, e exige pensar como trazer Fanon para os dias de hoje.
O que eu viesse a falar daqui para frente seria delírio, eu iria mentir. Há essa demanda bacana que é o “quero fazer”. Quando começarmos a fazer e a focar, irão surgir as ideias. Uma coisa é certa: eu quero continuar trabalhando com a loucura. Fanon agora, depois, buscar outro ou outra… Mas eu quero trabalhar com o universo da loucura.