Crítica – A receita | Solo de fogo – Ingredientes para mudar o fim da história
Imagem – Luiz Mendonça
Por Anderson Leite
Ator, diretor, dramaturgo, pesquisador e produtor cultural
Poderia ter sido mais um dia com o ponteiro do relógio retardando o tempo, a atualização de óbitos e novos casos chegando pela tela, meu filho correndo pela casa, estressado em decorrência do isolamento numa metragem tão pequena, a frequente dificuldade de lembrar a data de hoje e a busca viciante de encontrar nas redes A Receita para que esse momento passe sem ferir mais, e que o futuro nos chegue como aquele algodão doce que quando criança a gente trocava por uma panela velha.
No entanto, não foi mais um dia!
Logo cedo, como de costume, eu coloquei a água do café no fogo. Sendo que, dessa vez, me preparei para assistir o trabalho de um grupo que, há 16 anos, desenvolve importantes contribuições no campo artístico do estado de Pernambuco. Grupo que surge como um coletivo de iluminação cênica, e, no decorrer de sua trajetória, por volta de onze anos, passa a produzir seus trabalhos com o enfoque nos métodos do teatro antropológico. Aliando-o ao teatro físico, o grupo apresenta como pilar de sustentação e inspiração a matriz africana/afro-brasileira, mergulhando na força da ancestralidade como base para a composição corporal, vocal e estética de suas montagens.
Composto por Agri Melo, Naná Sodré e Samuel Santos, o grupo, formado por artistas pretos(as), coloca como protagonista as histórias e culturas negras em suas criações, contribuindo para a desconstrução dos estereótipos em torno do povo negro e abrindo caminhos para outros artistas negros(as) que ocupam a cena pernambucana.
Vê-los em cena é o tipo de coisa que nos borbulha por dentro, que levanta os pelos e faz a gente sentir o coração correr. Foi assim quando assisti Cordel do Amor Sem Fim. Pude me ver naquela montagem e ali constatei o sentido da representatividade. Lembro que os tons de preto preenchiam personagens redondos, ou seja, cuja história tem início, meio e fim. Parece comum, mas antes não era. E hoje, é comum ver pretes protagonizando espetáculos fora das caixas estereotipadas? O grupo tem nome e “dá nome”: O Poste Soluções Luminosas, que há muito tempo vem iluminando o negro num estado de plenitude.
“Eita”, a água já tava fervendo, minha cabeça também!
O café ficou pronto. Então peguei meu celular e cliquei num link que me direcionou para A Receita, solo da atriz Naná Sodré. Preciso dizer que meu primeiro contato com a obra foi por meio de um arquivo audiovisual da peça, de modo que os ingredientes por mim saboreados podem ser diferentes dos provados pelos espectadores daquela sessão registrada pelo vídeo.
Inclusive, fiquei sabendo que, logo na entrada, a plateia era recebida com um caldinho de feijoada. Gostos, cheiros… A possibilidade de ouvir a respiração da atriz, o quente da luz… No entanto, eu, em meu estado de isolamento, enfrento a tela armado com o fone de ouvido e aperto o play. Ainda é possível sentir! Cheiros, gostos. Sim, é possível sentir teatro.
Tanto que, nesse momento, ao escrever, ainda sinto o gosto da montagem…
E se eu pudesse traduzir essas sensações em alimento, seria em um acarajé: frito no azeite de dendê, com uma crosta áspera e crocante, e por dentro uma massa macia e muito apimentada. Acarajé, mesmo sabendo que a memória gustativa ativada pelo solo é outra: a da feijoada, a qual era sempre servida aos domingos, dia em que as agressões eram mais frequentes àquela personagem da história de A Receita… Mesmo assim, não pude furtar-me do gosto que me veio à boca durante a encenação: um acarajé!
Me arrisco nessa tradução, pois, ainda que a montagem tenha aparência simples, assim como esse alimento, é com muita articulação cênica que somos atingidos pela poética envolvida no solo de Naná Sodré. São poucos os elementos usados, mas, assim como a massa do acarajé, eles explodem nos olhos e na boca. Lembro-me também que o acarajé é um dos alimentos oferecido a Oyá. A partir daí, tudo parece se encaixar: Oyá se fez presente naquele ritual cênico… E se fez ventania durante aqueles 40 minutos do espetáculo.
Eparrê Oyá!
No arquivo audiovisual de A Receita, a câmera está posicionada frontalmente, permitindo ao espectador uma visão panorâmica do monólogo, que está montado em arena. Ainda que a imagem se desfoque por algumas vezes e que, pela disposição do desenho cênico, o espectador (remoto) perca algumas ações, o que salta aos olhos é a forte presença de Naná Sodré. Ela dá corpo/voz a uma dramaturgia que versa sobre as situações/opressões/violências sofridas pelas mulheres, seja em casa, no trabalho ou em outros espaços da sociedade.
Ela interpreta uma anônima, uma mulher-preta-mãe-filha-esposa-cozinheira… Todas elas numa só. E que passou por diversas humilhações, tendo vivido a maior parte do seu tempo temperando as suas ilusões com sal, alho e coentro com cebolinha. Ao ver sua vida se perdendo aos poucos, como madeira em fogo de lenha, ela chega ao seu limite e encontra a receita para sua libertação.
No monólogo, através da técnica de interpretação trazida por Naná, em consonância com a direção, se vê/sente de forma fluida o seu corpo imbuído da verve hipnotizante da antropologia teatral, no que diz respeito a sua partitura intrinsecamente preenchida de ancestralidade. Os gestos psicológicos repetitivamente utilizados reforçam essa imagem e potencializam a energia necessária para atingir os altos e baixos da personagem.
Em Naná, o teatro físico faz morada, pois, o conteúdo se dilui, sem rigidez, e a forma fluida se destaca. A direção, me parece se valer do teatro pobre grotowiskiano, eliminando tudo que é “desnecessário”, deixando a atriz com poucos elementos cênicos, possibilitando que seu corpo conte toda essa história. No solo, constata-se um cardápio vivo do conceito experienciado pelo grupo ao longo de sua trajetória nas artes cênicas.
A temática do monólogo se abre para todas as mulheres, sobretudo para as mulheres negras, cujo racismo, abandono e abusos são agravantes em suas vidas. Mulheres que são diretamente violentadas e humilhadas. O solo nos faz refletir como a sociedade machista, racista e misógina consome a vida das mulheres. O espetáculo abre os olhos dos homens e, nos machistas e/ou misóginos, a montagem arregala os olhos com faca. Dando a obra relevância não apenas artística, como também social.
Confesso:
Durante toda a peça, através da negritude de Naná e a da personagem, eu só me lembrava da minha Vó Cidalha: mulher preta, que viu sua vida sendo consumida num pequeno fogão feito de barro e lata de tinta. Ela vendeu durante toda sua vida acarajé lá na Av. Dantas Barreto, para criar meu pai…
Nesse momento o café esfriou. E eu compreendi o acarajé.
Na história, aquela mulher fazia um tipo de carne para cada dia da semana, um feijão diferente para cada dia, tudo bem temperado com sal, alho e coentro com cebolinha. Servia a todos com esmero, no entanto, a sua carne era abatida e servida diariamente, sem tempo para descanso. Maus tratos no trabalho, na rua e em casa, não tinha diferença.
Ela era agredida física e psicologicamente pelo homem com quem dividia a vida. Depois de muita humilhação/violência, ela finalmente encontra a receita para libertar-se dessa situação: sal, alho, coentro com cebolinha… e pequenas doses diárias de veneno. Aos poucos, o agressor é abatido e a vítima rebenta para a vida.
Esse homem não vai sugar mais os ingredientes dessa mulher.
Aqui, nos furtamos a pensar sobre essa necessidade de “violência” por parte da mulher para se livrar das mais variadas violências que talham seu corpo e sua alma. Mesmo que se queira pensar num julgamento imparcial da cega justiça, nós sabemos que de cega ela não tem nada.
E quando falamos sobre classe, gênero e raça bem específica, a injustiça rouba a cena. Desse modo, a personagem que se encontra no limite, age em legítima defesa. Pois, sua vida estava em risco! Às vezes, precisamos fazer uso da força para não sucumbir.
Até quando?
Dado momento, enquanto assistia ao arquivo de A Receita, minha internet travou. O vídeo congelou num momento em que a personagem estava de costas, retirando o avental que fazia parte de seu figurino.
Aquele gesto, junto a sua mão esquerda erguida, sintetizava seu manifesto em prol da liberdade, do empoderamento, enquanto sua mão direita retirava de si as vestes racistas, machistas e misóginas impostas sobre seu corpo. E, sob a luz amarelo cru, que se traduz em fogo, pisando num chão terra, com os cabelos soltos ao vento, o seu corpo se transforma em água e banha a cena de LIBERDADE.
Daí, Oyá solta seus ares na voz de Elza Soares e a personagem, Naná, minha vó Cidalha e tantas outras mulheres dançam… De peito livre.