Crítica – Meia Noite | Gingar com a luz da escuridão
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Imagem – Fernando Figueirôa
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
É Meia Noite. No arquivo audiovisual, apresentado na quarta edição do Festival Luz Negra, o círculo luminoso, que faz um desenho âmbar em meio a escuridão azulada do espaço teatral, nos convida a olhar para Orun Santana. Agachado, o performer começa a lançar no espaço um pó branco secretamente guardado em uma cabaça. Ele desenha as curvas de uma espiral. Os grãos de areia caem lentamente de dentro do recipiente, criando uma plasticidade cênica que não se limita a demarcar a espacialidade da ação performática. De contornos circulares, ela é a imagem da poética fragmentada onde se cabe o tempo, memórias e caminhos a serem gestados.
Meia noite é uma das expressões que podemos usar para marcar a temporalidade. É hora de abertura e proteção. É negrura. É ancestral. É Mestre Meia Noite, pai de Orun. De dentro da espiral, o performer reencontra sua figura paterna e as energias masculinas que o constituem. Construído a partir de um solo de capoeira performado pelo Mestre Meia Noite, no espetáculo Nordeste, do Balé Popular do Recife, Orun ativa a memória corporal de seu pai na própria pele. Ele é energia que mobiliza uma jornada interna, mas que não se limita às vivências particulares que permeiam a relação entre pai e filho. A memória gestual, sonora e convivial entre eles dão espaço para um mergulho na negrura e nas coletividades pretas.
Tudo é preto. O âmbar, o vermelho e o azul se alternam em Meia Noite. As mudanças das cores e suas frequências orquestram, junto ao som do berimbau, os estados de presença de Orun. Quando o círculo inicial perde amplitude, o raio de luz atravessa o corpo do bailarino, que dança, esquiva-se e penetra-se no foco luminoso. A negrura de sua pele reluz. Escuridão torna-se zona de busca. Nessa ginga com a iluminação, o performer passa a se reconectar com seu próprio corpo. E com as histórias implicadas a essa pretura.
A capoeira é energia cinética que faz com que tudo aconteça. À medida que os tons quentes da luz vão ganhando extensão novamente no palco, o corpo de Orun também cresce. Seus rodopios se tornam prolongados, firmes e ele não para de brincar com os ritmos. Jogo para dentro, jogo para fora. Um movimento de capoeira se transforma em passo de maracatu, frevo, samba ou passinho. Tudo ao mesmo tempo. Os ritmos e gêneros musicais formam uma encruzilhada cultural e temporal. O fervor da dança de Orun nos conduz para milhares de corpos pretos em sua infinitude de ser e existir enquanto negrura.
Evocando as cosmologias africanas, elementos da natureza e orixás são reverenciados na jornada de Orun. O vermelho é símbolo do fogo no palco. Energias de vida e de morte circulam no mesmo lugar. Na encruzilhada, o corpo de Orun se torna cada vez mais desobediente e brincante. Se, num outro momento, fora interrompido em sua dança pelo som da sirene e de balas que derrubaram seu corpo em cena, é nesse entre-lugar que o performer insiste em se manter de pé, com sua energia humana transmutada para uma forma animalesca, demarcada no corpo em ebulição e através do crânio bovino usado como objeto cênico, rearticulando mais uma vez as gestualidades múltiplas e infinitas das culturas afro-diaspóricas.
O azul que compõe a negrura do espetáculo o direciona a um encontro com as águas. O corpo do bailarino se movimenta de maneira mais fluída, sem passos tão rígidos e firmes, conectado às energias femininas, às yabás, às mulheres que permeiam sua história. Na integração entre água e fogo, está Orun. A espiral dramatúrgica performada por ele se encerra retornando ao lugar de onde ele partiu: uma música do Daruê Malungo é cantada por Orun, que culmina sua jornada se voltando para o movimento político-cultural construído pelo seus pais, o qual marca significativamente sua trajetória pessoal e artística. Seu retorno ancestral provoca deslocamentos profundos, sem pretensão de revelar os segredos envolvidos em sua caminhada e dança. Ir ao passado, em Meia Noite, não se inscreve na vontade do encontro com origens essencializadas ou estáticas, mas como possibilidade de celebrar e fabular existências, vidas e futuros.
Esse texto foi produzido durante a cobertura crítica do Festival Luz Negra – 4ª edição (Grupo O Poste), realizado na modalidade on-line com incentivo da Lei Aldir Blanc – Pernambuco.