#17 Corpas Possíveis, Corpos Sensíveis | Corpo, aprendizagem e acessibilidade no ensino do teatro
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Patrícia Ragazzon
Pesquisadora, atriz e produtora. Mestra em Artes Cênicas (PPGAC/UFRS) e Doutoranda em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA)
Por Célida Salume
Professora da Escola de Teatro e do PPGAC (UFBA) e cursa pós-doutorado no Centro de História da Arte e Investigação Artística (CHAIA)
Propomos aqui um diálogo a respeito do corpo como espaço de aprendizagem e princípio para a acessibilidade no ensino de teatro, entre pessoas com deficiência intelectual. Este princípio emerge de experiências práticas entre as autoras Patrícia Avila Ragazzon, que ao longo de cinco anos coordenou oficinas de teatro para grupos de adultos na APABB RS*, no projeto Ligados pela Arte, em Porto Alegre; e Celida Salume Mendonça, como professora em cursos de Licenciatura em Teatro (UDESC e UFBA) e em seu trabalho em escolas de Ensino Fundamental, bem como em sua prática psicopedagógica de caráter interdisciplinar** e artístico-pedagógica realizada com crianças com autismo.
Historicamente, as pessoas com deficiência, em sua maioria, têm sido acolhidas em instituições de abrigo e escolas especiais. Essa escrita não tem o intuito de avaliar um ou outro ambiente como o espaço de formação mais adequado. O Relatório Mundial sobre a Deficiência defende que:
O sentido mais estrito de inclusão é que todas as crianças com deficiência devem ser educadas em classes normais, com colegas de idade apropriada. Esta abordagem enfatiza a necessidade de mudança em todo o sistema escolar. A educação inclusiva implica em identificar e remover barreiras e prover instalações razoáveis, permitindo a todos os alunos participarem e progredirem em cenários comuns. (2012, p.218)
A Organização Educacional Científica e Cultural das Nações Unidas (UNESCO) incentiva um sistema educacional mais inclusivo acreditando na necessidade das escolas desenvolverem métodos de ensino que respondam às diferenças individuais, para o benefício de todas as crianças, educando-as juntas. O que na prática, infelizmente, é difícil de assegurar.
O corpo das pessoas com deficiência, muitas vezes, é visto como um corpo vulnerável, com uma carga capacitista marcada pela estrutura social arcaica e preconceituosa que impõe quais são os corpos que merecem ter visibilidade. Assim como os movimentos sociais promovem as lutas anti-patriarcais, antirracistas, anti-homofóbicas, anti-transfóbicas e outras pautas urgentes de invisibilização desses grupos, o posicionamento anti-capacitista também é fundamental, já que quase um quarto da população brasileira possui algum tipo de deficiência, seja ela visual, auditiva, motora ou sensorial, de acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010.
O corpo visto como vulnerável é estigmatizado como um corpo incapaz de participar de processos de criação, sendo as pessoas com deficiência intelectual vistas, muitas vezes, como “eternas crianças”. Segundo o conceito da Associação Americana de Deficiências Intelectuais e de Desenvolvimento (AAIDD), a deficiência intelectual é caracterizada por importantes limitações, tanto do funcionamento intelectual quanto no comportamento adaptativo expresso em habilidades conceituais, sociais e práticas.
No entanto, a experiência da deficiência intelectual perpassa por cada pessoa de maneira diferente. Em algum momento da vida, uma pessoa com ou sem deficiência pode vir a necessitar de certo tipo de apoio, e esse fator não impede que muitas pessoas com deficiência intelectual tenham diferentes graus de dependência, andem sozinhas, utilizem o transporte público, trabalham ou tenham relacionamentos. A compreensão diferenciada de alguns conceitos não deve estar atrelada à ideia de um déficit ou de uma falha, mas sim, a uma forma de perceber o mundo. Somos seres múltiplos, temos vivências diferenciadas e nossas percepções podem ser pensadas a partir da diversidade de padrões sensoriais com os quais nos relacionamos com o mundo em nosso entorno.
Aprender com a diversidade se entrelaça ao princípio de aprendizagem pela experiência corporal, que é um processo de criação múltiplo, subjetivo de cada um de nós, e por isso, uma invenção de si mesmo. A proposta de uma aprendizagem que se processa a partir do corpo não propõe qualquer ineditismo, visto que alguns teóricos já vêm trazendo a discussão da corporeidade para o campo da educação. Porém, não se trata de um corpo da ordem do discurso, tampouco de um corpo inerte, objetivado, mas um corpo como princípio de materialidade artística, em processo constante de expansão e criação de si mesmo.
Para a pesquisadora Virgínia Kastrup (2007), a aprendizagem está relacionada a experimentar um saber, a inventar a si mesmo; e, com esta criação de subjetividade, também inventar o mundo. Partindo da ressignificação, a autora avalia que a aprendizagem se dá de forma encarnada, corporificada, resultante de experiências que se inscrevem no corpo e que são partilhadas. A aprendizagem seria, desta forma, como um movimento contínuo de expansão e processo de invenção possível em qualquer processo de criação artística, tanto em oficinas de teatro voltadas para pessoas com deficiência intelectual, quanto em turmas mistas no ensino formal, de acordo com a legislação vigente.
Desta forma, as artes cênicas, área que abrange as diversas práticas de expressão corporal, teatro, dança, circo, performance, podem possibilitar a produção de outros saberes a partir do corpo em movimento. O projeto Ligados pela Arte, por exemplo, integrava oficinas de teatro, dança, música e, nos últimos anos, artes visuais. O público das oficinas era composto por pessoas entre 21 e 54 anos com síndromes diversas, transtorno do espectro autista e múltiplas deficiências que afetam a coordenação motora e a capacidade intelectual em diferentes níveis, compreendendo uma diversidade de entendimentos, habilidades, motricidades e capacidades de verbalização.
Nas oficinas de teatro foram desenvolvidas diferentes práticas cênicas, compreendendo a percepção do corpo, sua relação com as materialidades e a relação com o espaço da sala, explorando movimentos e formas de locomoção, de acordo com a possibilidade de interação de cada um. O teatro se misturava à dança e à performance, uma proposta híbrida no encontro com a diversidade de compreensões e expressões artísticas.
No trabalho psicopedagógico com crianças com autismo foi verificado que, quando mediadas por um adulto, e na escola, pelos próprios colegas, essas crianças se inserem mais facilmente nas brincadeiras, jogos e atividades em grupo, e tem a possibilidade de trabalhar o potencial expressivo do seu corpo; o que possibilita lançarem-se em oportunidades de aprendizagem e de socialização trazendo avanços significativos para o seu desenvolvimento. Na docência dos cursos de Licenciatura em Teatro (disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado) e em Escolas de Ensino Fundamental, foi constatada a dificuldade em se realizar um efetivo processo de inclusão de crianças com deficiências em turmas de ensino regular. Muitas vezes os(as) professores(as) não se sentem preparados(as), o que demanda um movimento de iniciativa, desejo e sensibilidade particular de cada profissional na busca desse objetivo.
O aprendizado é um lugar que também pode ser criado. A questão do outro e da diferença deveria ser uma preocupação de todos nós educadores(as), mesmo não nos sentindo muitas vezes preparados para uma tomada de decisão assertiva nessa direção. Como educadoras e profissionais do ensino de Arte/Teatro, consideramos de extrema importância o trabalho com o corpo expressivo. Pela corporeidade fazemos do mundo a extensão de nossas experiências. Apesar de um pouco esquecido no contexto escolar, o corpo deveria ter o seu protagonismo no processo de ensino. O corpo na escola não deveria ser o que interrompe, o que nos distancia uns dos(as) outros(as), mas o que nos une aos(às) outros(as). Infelizmente, apenas as aulas de Artes e as de Educação Física são os raros momentos em que é oportunizado aos(às) alunos(as) saírem de suas carteiras e se relacionarem com os(as) colegas.
O trabalho com materialidades nos percursos criativos das aulas de Teatro tem sido um foco de investigação. Crianças que geralmente não se relacionavam com outras da mesma turma, ao vivenciarem jogos com diferentes materialidades, mostravam-se mais espontâneas, próximas e afetivas (MENDONÇA, 2020). São chamadas de materialidades (objetos, tecidos, imagens, músicas, substâncias, elementos da natureza – água, areia, folhas, aromas… ou até mesmo o próprio espaço enquadrado) introduzidas intencionalmente como desencadeadores de reações, movimentos, sensações ou mesmo para o desenvolvimento de exercícios, construção de personagens, narrativas e/ou cenas. Docentes e discentes observaram que as múltiplas possibilidades oferecidas pelas materialidades em ação e em fricção como o corpo atuante abrem perspectivas aos participantes para a inventividade, aproximam os participantes e podem ajudar no processo de inclusão no contexto educacional.
Os corpos, como principal materialidade do fazer teatral, convertem-se na própria fonte de invenção criativa. Entendemos que a deficiência pode se referir às dificuldades encontradas em alguma das áreas da funcionalidade, como alterações das estruturas e funções corporais ou limitações para compreender e/ou executar certas atividades, o que não compromete a participação nos processos criativos. A deficiência nem sempre é uma restrição para a própria pessoa. As estratégias permitem que crianças e jovens se adaptem às situações propostas. Abertos à reinvenção, cada corpo em sua singularidade, em ação no espaço de jogo, pode reinventar formas de se comunicar e se expressar. Um processo artístico vivenciado em uma oficina ou aulas de Teatro não impõe padrões, ele conta com a imaginação e a inventividade de cada sujeito envolvido. São todas estas subjetividades que formam o grupo em confronto com elementos objetivos.
Acionar diferentes materialidades como dispositivos do fazer teatral viabiliza sensações de liberdade, energia, entusiasmo e divertimento. Inseridas com intencionalidade, essas materialidades também aproximam, conectam esses corpos. Expressar-se ou jogar com esses elementos “desencadeia uma disponibilidade sensorial e motora, libera um potencial de experimentação” (RYNGAERT, 2009, p.56). Como o processo de aprendizagem passa pelo nosso corpo e pelo corpo do outro, nos permite também vivenciar novas formas de estarmos juntos. Aprendizagem aqui não se refere apenas ao aspecto cognitivo, mas a possibilidade de estabelecer relações afetivas.
Acreditamos que a convivência compartilhada de crianças e jovens com deficiências, a partir de mediação adequada, favoreça não só o seu desenvolvimento, mas igualmente o das outras crianças, na medida em que estas últimas convivam e aprendam com as diferenças. Entretanto, a escola inclusiva não é simplesmente aquela que abre espaço para todas as crianças e jovens, mas que também se preocupa e tem consciência da importância de um efetivo trabalho voltado para a socialização entre eles. A frase “diversidade é convidar para a festa, inclusão é convidar para dançar…” traduz muito essa perspectiva. Não basta termos a presença de uma pessoa com deficiência em uma sala do sistema regular de ensino, mas é necessário estar atento a como é viabilizada essa inclusão, a quanto estes corpos estão em jogo.
Com estas considerações pretendemos pautar algumas questões que nos mobilizam como artistas e educadores. O corpo invisibilizado por exclusões, estruturas arcaicas e legislações que não dão conta das demandas da acessibilidade, emerge a partir da prática artística como um corpo potente a partir do ensino de teatro acessível para diversas percepções. Corpo como forma de aprender, se relacionar com a experiência artística, recriando a si mesmo e possibilitando a reinvenção de outras formas da sociedade repensar o mundo.
Referências
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE DEFICIÊNCIAS INTELECTUAL E DO DESENVOLVIMENTO (AADID). Concepção de deficiência intelectual segundo a Associação Americana de Deficiências Intelectual e do Desenvolvimento. Washington, DC: AAIDD, 2010. Disponível AQUI.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Rio de janeiro, 2002. Disponível AQUI.
KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
MENDONÇA, Celida S., BEZELGA, Isabel. Um olhar sob impacto da experiência teatral no exercício da alteridade e no processo de socialização de crianças em contextos educacionais. In: Revista Educação, Artes e Inclusão, UDESC, Florianópolis, v. 16, n. 4, 2020.
RYNGAERT, Jean Pierre. Jogar, representar. São Paulo: Cosac & Naif, 2009.
Relatório mundial sobre a deficiência / World Health Organization, The World Bank; tradução Lexicus Serviços Lingüísticos. – São Paulo: SEDPcD, 2012. 334 p. Disponível AQUI.
Notas de Rodapé
*APABB RS – A APABB RS é a Associação de Pais e Amigos de Funcionários do Banco do Brasil foi fundada em 1987, presente em treze estados do país, sem fins lucrativos. Em Porto Alegre, desde 1999, desenvolve projetos por meio de doações, visando à acessibilidade e a qualidade de vida de pessoas com deficiência, atuando nas áreas do esporte, lazer e cultura.
**Trabalho psicopedagógico realizado em termos de articulação interdisciplinar com o Grupo Mediações de estudos de casos clínicos do NUCA (Núcleo Castor – Estudos e Atividades em Existencialismo) em Florianópolis (SC).