Crítica – Solo para um sertão blues & Rainhas | O racismo é uma distração
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Imagem – Autor(a) Desconhecido(a)
Por Lorenna Rocha
Historiadora (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Lirismo, poesia, ritmos musicais e negruras convocam a constelação entre os espetáculos Solo para um sertão blues, dirigido por Claúdio Lira, e Rainhas, do Coletivo Abaya. Exibidas na PretAção – 3ª Mostra de Mulheres Pretas de Pernambuco, as obras partem de lugares diferentes para produzirem um movimento comum: o “enegrecimento” de narrativas que tangenciam o passado histórico brasileiro, questões contemporâneas ligadas à racialidade e a “positivação” dos símbolos e experiências atrelados às vidas, culturas e tecnologias negras.
Inspirado no livro Solo para Vialejo e em seus versos carregados de memórias da infância de Cida Pedrosa em Bodocó, Solo para um sertão blues inicia-se com um prólogo de sua jornada, fazendo uma promessa de deslocamento do mar ao sertão. Mas o trânsito vem de antes: em referência ao Atlântico Negro, marca-se não apenas o processo de escravização forçada conduzido pela empreitada moderna-colonial, como rememora-se tal abismo oceânico como um lugar de trocas e comunicação entre culturas. Para fazer ver essa elaboração, a conexão entre os povos negros diaspóricos e os povos ameríndios, em terras nomeadas brasileiras, é criada pelo espetáculo através de ritmos e canções que, muitas vezes, não são reconhecidos como partes das culturas negras e indígenas. Em relação a essa conexão no espetáculo, é importante destacar que há certa romantização e idealização sobre o mundo anterior à invasão colonial, que congelam as complexidades das relações existentes entre os povos donos desta terra.
No palco, Brunna Martins, Fernanda Spíndola, Jhanaína Gomes e Célia Regina movem-se com suas cestas de palha, fazendo alusão a catadoras de algodão. A dança que tracejam no palco desenham mapas imaginários, em que as quatro fazem uma jornada para o interior de Pernambuco. Não há um investimento em “desconstruir” possíveis estereótipos atrelados à figura de “sertanejos” ou “interioranos”, mas uma revisitação geográfica que se dá pela sonoridade e por personalidades da música, como Jackson do Pandeiro, Pixinguinha, Otacílio Rodrigues, entre outros. Ainda, o espetáculo chama atenção para artistas brancos, como Elvis Presley, que, se por um lado, influenciaram o imaginário e os ritmos de regiões do nosso estado, por outro, embranqueceram a imagem de vários ritmos que foram criados por pessoas negras e indígenas.
Ainda que chame atenção pelo seu trabalho musical, uma vez que Solo… é quase todo cantado e a trilha sonora é realizada ao vivo, as partituras corporais, desenhos e elementos cênicos manifestam certa desconexão em relação ao conjunto composicional do espetáculo, com a construção de imagens um tanto convencionais para as matérias que estão tratando tematicamente e em seu repertório sonoro. Não é a ideia de novidade, genialidade ou excepcionalidade que se defende aqui, mas a inventividade entre as conexões musicais realizadas pela obra, que une forró a atabaques e jazz ao samba, parecem não impactar ou inspirar diretamente a performance das atrizes em cena.
A dramaturgia do espetáculo aproxima-se da poesia de Cida Pedrosa, apostando na linguagem da narração, do conto e do lirismo. Os versos musicados pelas atrizes trazem expressões atreladas às demandas de representatividade, num caminho bastante previsível, que é oposto ao som e ao improviso da banda Jazz Band União Bodocoense, grupo musical constantemente referenciado no livro da escritora pernambucana e, em menor proporção, no trabalho dirigido por Claúdio Lira. A existência aparentemente “inusitada” de um grupo de jazz no interior de nosso estado poderia ser o ponto de virada para uma investigação estética mais improvisada, igualmente compromissada com seus temas políticos, mas ávida por possíveis experimentações que deslocassem o modo de se estar em cena, aderindo à matéria que trazem para dentro da obra.
Espetáculo ‘Rainhas’ | Imagem – Morgana Narjara | #ADnoTextoAlternativo
Se é a literatura que instiga a criação de Solo para um sertão blues, o universo mítico afro-brasileiro e vivências relacionadas ao racismo religioso, embranquecimento, representação da negrura e ligadas às feminilidades negras compõem o espetáculo Rainhas. Dividido em quatro monólogos, Brunna Martins, Camila Mendes, Luana Vitória e Kadydja Erlen criam partituras corporais através das técnicas da antropologia teatral para compartilhar com o público questões que constroem suas identidades.
Ao invés de usarem a primeira pessoa do singular, as atrizes performam a presença de quatro orixás femininos: Iemanjá (Kadydja Erlen), Obá (Luana Vitória), Oxum (Camila Mendes) e Iansã (Brunna Martins). O investimento estético no universo mítico que recriam, para destacarem alguns temas de suas experiências enquanto mulheres negras, se dá pela iluminação (que se associa às cores de cada orixá), pela sonoplastia (instrumentos são tocados de modo a dar maior amplitude às ações das atrizes em cena) e pela narrativa lírica, com tons fantasiosos, combinada com frases de intelectuais negras, como Angela Davis, ou de palavras de ordem da militância contemporânea, como “nenhuma mulher preta a menos”.
Em Rainhas, nos deparamos mais uma vez com uma cena teatral que se preocupa com a “positivação da imagem negra”, com o “empoderamento” e com a “representatividade”. A legibilidade discursiva parece nos encaminhar para uma areia movediça, uma vez que os mesmos lugares de enunciação, e consequentemente poéticos, são convocados pelo viés da “urgência” e “potência” da cena. Compreensível, quando se vive num mundo anti-negritude. No entanto, talvez, a fuga dessa coreografia esteja em uma aposta muito simples, como, por exemplo, a que uma das atrizes de Rainhas fez: enquanto se movimentava fazendo referência à corporeidade de Obá, Luana Vitória mesclou seus movimentos com o passinho do brega funk.
No monólogo dessa atriz, o mítico se reelabora dentro da própria cultura negra, produzindo algum tipo de deslocamento que pouco se encontra em todo o espetáculo. Não se aposta numa repetição de gestos e referenciais negros, mas na combinação entre códigos que elabora um outro lugar, ainda que em processo de revisitação das performatividades negras. Reforço: aqui não se defende ineditismos. A aposta é na deseducação do corpo e do discurso como forma de encontrar outras maneiras de elaborar as cenas negras, a fim de expandi-las, construí-las em pleno estado de experimentação.
A aproximação entre Solo para um sertão blues e Rainhas não se dá apenas por um viés temático, mas pelo reconhecimento de algo que ambos espetáculos compartilham: uma desatenção a suas próprias matérias e ao que elas podem oferecer para desmantelar aquilo que está cristalizado enquanto discurso e elaboração estética. Nenhum dos apontamentos aqui são fatores externos às obras, mas rastros, sinais ou pistas que elas mesmas produzem.
Se falta um exercício maior de autopercepção e atenção para aquilo que está dentro das obras, é porque, de alguma maneira, parafraseando Toni Morrison, o racismo é uma distração e operar as cenas negras dentro desse binômio de resposta a anti-negritude parece muito mais conter nossa criatividade do que necessariamente acender um espaço de confronto e de reformulação dos modos de olhar e estar neste mundo que nos mata.