Crítica – Tropeço enquanto falo | Carta ao artista que tropeça enquanto fala
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Imagem – Erique Nascimento
Por Francini Pontes
Profa. da Licenciatura em Dança (UFPE)
Novembro de 2022.
“Simplesmente, depois de longos dias e longas noites, a imagem do preto-biológico-sexual-sensual-genital lhe foi imposta, e o senhor não soube se livrar dela.”[1] Frantz Fanon.
Sentados na plateia, esperamos que se abra a cortina. Ao invés disso surge você. O rosto coberto revela seus olhos que, no canto direito do palco, inquisidores, nos fitam e abrem uma pequena passagem. Entramos no palco, um a um, testemunhados por seu olhar, seu corpo quase desnudo, preto, que contrasta com o branco gesso do tênis. Sobre a pele, apenas um tapa-sexo, igualmente preto. Quem é esse outro que me ordena com um aceno de cabeça, que adentre o espaço cênico? Um Outro? O outro?
O contorno do espaço é demarcado, mas é de nossa responsabilidade sua ocupação. E o fazemos, mais ou menos, de forma aleatória, seguindo apenas o “bom senso(?)”, de nos mantermos à margem, nas bordas, tentativa inútil de garantirmos certo anonimato e, sobretudo, passividade.
E, ali, também na borda, parado, você nos fita. O “preto-biológico-sexual-sensual-genital” não tem rosto. Cabeça envolta por uma máscara, só os olhos disponíveis ao contato.
Corpo imóvel para quem não capta a sutileza de seus músculos lentamente se retesando.
Corpo pulsa, corpo espasma, corpo impulso.
Os valores que sinto, os pelos eriçados em minhas costas quando de seus espasmos. O brilho de suas costas provocando meus calores.
E se não fosse preto? Se não estivesse desnudo? Provocaria em mim que efeitos? Consequências de que marcas mentais, corporais? De que lugar fala e se inscreve em meu corpo? Tropeça?
De que lugar fala? Exige minha escuta ao alterar os estados perceptivos do meu próprio corpo que retesa, sua, sofre, espasma. O riso é grito no meu peito. Minha escuta, minha parte nessa fruição. O que significa, o faz para mim e em mim?
Sua Fala é Escritura porque se inscreve no meu corpo, no eixo da coluna, nas dobras, nas plantas das mãos que espasmam independentes de minha vontade. Escritura no sentido derridiano[2] de ser fala “e” escrita. De estar entre; o que se manifesta em fenômeno para a percepção não tem causa, mas é rastro, efeito, consequência de consequência. Entrego-me a pequenas e sutis percepções[3] e contra-imagens surgem, respostas poéticas autônomas e imediatas, meus impulsos de leitura e escrita. Suas imagens propostas produzem em mim forças que me levam a buscar uma significação ausente, disjuntadas que estão de correspondentes verbais.
Adentro.
O movimento é impulso. É pré-reflexivo, dialoga com o escuro manifesto na pele. O impulso é possibilidade de movimento e revela sua errância na expressão do trauma, leitura do mundo que se ergue do corpo “preto-biológico-sexual-sensual-genital” e colonizado. Impulsos que irrompem anunciando palavras habitadas por sua vivência no preto da pele. Impulsos são arquivos[4], não como memórias resgatadas, mas como uma ruptura com a natureza, produção e registros de eventos. Para isso funcionam os arquivos: para que as coisas e nossos mundos possam ser expressos sem que tenhamos sobre eles qualquer controle para além de nossa capacidade de expressão. Desvinculados de um discurso narrativo “claro”, impulsos expressam a vida de quem os pronuncia, dissociados de acordos, do senso comum em relação a seu poder de significação.
Seu corpo “preto-biológico-sexual-sensual-genital” belo-nu, não é corpo matéria, é calor no meu corpo. Perde definição, contorno, e vira água que brota dos poros e escorre. E brilha. E cheira. Seus espasmos, impulsos, urros, esses dos quais tantos de nós riem agora, são testemunhas de tantos urros silenciados e escorrem por seu/meu corpo, feitos suor.
Ex belo, ex nu, ex sensual, ex preto, biológico mais do que nunca. Pela potência da desconstrução da cadeia significativa proposta, os papéis se diluem. Sua estranheza cumpre o potencial de deformação gerando outros “existires”. A alteridade se impõe como reconhecimento desse outro imoral e obsceno, cujos sinais identitários já não posso definir, dado que são marcas transitórias que de mim também se elevam. Seu ato desestabiliza o espaço onde a identidade permanece em constante deslize.
Seus tropeços são impulsos que balbuciam. Sua escritura é o tropeço. Tropeça, escorrega e não cai. Já não suporta e reage. Soca os pés no chão e nos fita. E me fita. E me devolve a violência. A ferida está exposta e revela nosso fracasso.
Novo gesto, nova ordem: devemos sair do placo. Obedeço. Obedecemos. É só o que nos resta.
Silenciosos estamos agora, sentados, inertes, à espera que algo nos aconteça. À espera de sua fala. Inocentes que somos. Já estás inscrito em nossas dobras. O que mais?
Silêncio.
Notas de Rodapé
[1] Texto presente no folder da performance tropeço enquanto Falo, de Lucas Bebiano. Apresentações fruídas no Teatro Milton Baccarelli, no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, em novembro de 2022.
[2] Para maior aprofundamento na proposta da desconstrução por Derrida:
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2017.
[3] Para maior aprofundamento das “pequenas percepções” de José Gil:
GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções: estética e fenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água, 1995, p.15.
[4] A perspectiva do arquivo aqui abordada é devida à leitura de Derrida para o arquivo freudiano. Freud associa o arquivo a uma memória espontânea, no entanto inatingível devido a obstáculos internos (recalques) e externos (repressões). Derrida, por sua vez, situa o arquivo no lugar da falta da memória, onde o que se pressupõe é uma exterioridade. O arquivo, então, esqueceria a memória por jamais se reduzir a ela. Arquivo como algo que se eleva, uma “prótese do dentro”, como produção e registro do evento; uma noção apenas. Para maior aprofundamento:
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo, uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.