Crítica – Jr | A micropolítica da narrativa do desejo
Imagens – Pedro Portugal
Por Wellington Júnior*
“Qualquer revolução ao nível micropolítico diz também respeito à produção de subjetividade.”
Felix Guattari/Suely Rolnik
A estreia de Jr. no Janeiro de Grandes Espetáculos traz para o centro do debate as reflexões sobre os gêneros na cena contemporânea, seja através das sexualidades, ou a partir da hibridação entre teatro e literatura.
O espetáculo do “agrupamento” OPTE (Operários do Teatro) mostra as narrativas do personagem Júnior desde seu nascimento. A partir de seu olhar inusitado e questionador, a vivência travesti de Júnior apresenta sua subjetividade para o mundo. A construção cênica épica do espetáculo possibilita a presença potente desta subjetivação ‘trans’. Esse empoderamento da narratividade clarifica a necessidade de trocas de experiências. Então, a contação de história surge como uma forma de entendimento do mundo – de outros mundos.
O texto de Marcelino Freire propõe uma narratividade que cria deslocamentos espaciais e temporais no desenvolvimento da ação. A grande força da dramaturgia está na forma poética do discurso da personagem. Mas essa estruturação não amplifica seus sentidos. O autor possui uma camada de enunciação extremamente vigorosa, mas se amarra em um olhar totalizante da personagem. Alexsando Souto Maior traz como marca de sua escrita cênica as explorações do diálogo entre teatro e literatura. E o espetáculo Jr. amplifica essa poética. A encenação valoriza a palavra como sistema estruturante do espetáculo, assim a cena é ator e palavra. Esse elemento é um achado para a investigação das potencialidades do ator. Ao mesmo tempo, essa essencialidade também mostra as tensões da palavra com a ação cênica.
Este trabalho é o maior desafio de Tatto Medinni em sua jovem trajetória artística. Acompanho este ator há algum tempo e vejo como ele vem se desenvolvendo sempre em busca de novas aventuras estéticas no campo da atuação. Em Jr., ele é o centro juntamente com a palavra. Tatto consegue dominar bem o princípio da narratividade e sabe explorar com cuidado esse universo da personagem. Mas é necessário um maior aprofundamento e envolvimento estético com a identidade trans. Nos dois dias que assisti, observei uma forte presença formal na composição da ação – ainda sem manter um jogo efetivo com os espectadores. Também notei que no segundo dia ator foi se apropriando mais das ações e intenções da cena narrativa.
Em um debate promovido por um diretório do PT do Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1982; um dos integrantes diz:
“Uma das grandes questões atuais da prática política é a de como investir ‘decentemente’ os processos de produção capitalista da subjetividade. Tradicionalmente, ligava-se essa questão à noção de ideologia. O projeto de Brecht, por exemplo, envolve uma crítica que parte de uma consciência político-ator para atingir a conscientização das massas. Mas, se pretendemos subverter a subjetividade, temos de agir criticamente e abandonar propostas como as de Brecht. Temos de abandonar a noção de ideologia e, junto com ela, a problemática da consciência.Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la. Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos liberdade (noção indissoluvelmente ligada à consciência), temos de retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam desmoronar”
O debate sobre a presença das sexualidades contemporâneas ganham cada vez mais força e isso mostra a relevância da montagem do espetáculo Jr. no panorama teatral de Recife. A edição 2016 do Janeiro também revela como a grande maioria dos espetáculos presentes em sua grade de programação de alguma forma traz essa questão à tona. Além disso, a iniciativa de Tatto Medinni está inserida em um movimento maior de atores/artistas que são empreendedores. Lutam por seus sonhos, por suas pesquisas. Esse é um momento de ocupar as Utopias, mesmo que isso pareça uma incongruência; mas revela a necessidade de estar presente em diálogo com a sociedade.
Infelizmente, não pude acompanhar o processo de construção do espetáculo – algo hoje tão experimentado por alguns críticos teatrais. Mas conversei com uma parte dos criadores (Alexsandro Souto Maior, Tatto Medinni, Eron Villar e Gerailton Salles-Gera Cyber). E pude perceber como o processo possibilitou novos riscos em seus sistemas criativos. Observo o espetáculo Jr. como um trabalho de alta potencialidade que aprofundará ainda mais em sua trajetória sua pesquisa estética.
Gostaria de finalizar indicando três pesquisas pernambucanas que são fundamentais para o debate sobre teatro e identidade trans:
– Bonecas falando para o mundo: identidades sexuais desviantes e teatro contemporâneo – de Rodrigo Dourado – esta pesquisa é um marco na relação entre teoria queer e teatralidade.
– A crise da masculinidade nas dramaturgias de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Newton Moreno – de Bruno Siqueira – um estudo aprofundado sobre as relações entre discurso, sexualidade e dramaturgia.
– Copi: Transgressão e Escrita Transformista – De Renata Pimentel – uma apaixonante pesquisa sobre a dramaturgia de Copi.