“… nossa cena é feita de coragem. Não podíamos ser vítimas…” – Entrevista – Cena Off
Imagens – Divulgação
Acontece enquanto você não quer ver continua sua nova temporada até o dia 20 de junho, no espaço Caramiolas Lab, aos sábados, às 20h (saiba mais AQUI). O espetáculo estreou em outubro de 2014 dentro do apartamento da produtora Três de Copas (conheça mais AQUI), onde cumpriu temporada por dois meses. O espetáculo é um projeto de articulação – não usual – que se debruça sobre aquilo que é proibido falar e que diante da moralidade vigente é preciso abafar sob a pena dos mais duros julgamentos humanos. A encenação, de 50 minutos, se utiliza de um ambiente domiciliar e é dividida em dois atos – Bem Guardado e Rua Garopaba, 410.
Os atores Daniel Barros e Fábio Calamy são responsáveis pela dramaturgia e encenação, e trazem, com atenção artesanal aos detalhes, as consequências da vida em uma sociedade doente e um questionamento sobre qual é o papel de cada um nessa necrofilização do cotidiano. O coletivo de teatro Cena Off (conheça mais AQUI) é movido pela livre experimentação na busca de construção de linguagem e pelo desejo de democratização cultural e multiplicação de conhecimento. Transitando entre o efêmero do teatro e o eterno do cinema dentro de um veículo chamado internet, na busca de um intermídia.
Nós, do Quarta Parede, queríamos entender um pouco mais das motivações e processos criativos de Daniel e Fábio e convidamos o grupo para uma entrevista com nosso editor-chefe, Márcio Andrade. Confira:
O que motivou você e Fábio a criarem o Cena Off?
Daniel Barros – Fábio e eu somos amigos há dez anos. A gente se conheceu quando Carlos Salles, um grande amigo nosso e meu primeiro professor de teatro, dirigia o grupo de teatro de rua Loucos e Oprimidos da Maciel e nos convidou para participar. A gente nunca mais se separou: eu saí do grupo e Fábio continuou, mas a gente se prometeu fazer um trabalho juntos. Eu passei por alguns outros processos; ele, também. A gente precisava colocar na cena as várias ideias que tínhamos juntado, precisávamos dizer coisas que, para nós dois, são urgentes. O que é importante nesse encontro é unir nossas identidades, nosso pensamento comum e se ajudar numa empreitada autoral.
Fábio Calamy – Eu acredito que tudo que foi partilhado nos outros trabalhos foi lenha para a fogueira que aprontamos pra aquecer esse nosso trabalho. Comungávamos demais nas muitas ideias e praticas. Afinamos o jogo de cena muito rápido e acho que isso foi tão prazeroso pra nós que fica perceptível pra quem nos vê. Além disso, tudo que eu buscava desenvolver dramaturgicamente e cenicamente dialogava com a busca de Daniel. Percebemos que não tinha outro caminho que não fosse o laboral.
DB – Estamos à procura dos limites das cenas, das reconfigurações de estruturas, do subverter o olhar, das regiões de fronteiras… E para isso a gente precisa muitas vezes correr riscos.
FC – A todo o momento estamos criando e buscando formas de comunicar, revelar ou detonar muitas das questões polêmicas que são expostas de forma branda ou eufêmica. Há quem diga que somos terroristas e subversivos pela abordagem dos temas e pelas escolhas dos mesmos. Eu acredito que estamos muito mais interessados em comunicar a partir de outras plataformas, e, para isso, não podemos negar o que essas linguagens nos oferecem. Isso nos dá outro caminho de defender e de criticar o que trazemos para a cena. Talvez, seja esse o ponto diferencial dos outros trabalhos vivenciados.
DB – Nesse momento, o Cena OFF é resultado de nossos caminhos percorridos, de experiências somadas e de uma grande amizade.
“Acontece Enquanto Você Não Quer Ver” é o primeiro espetáculo de vocês e é carregado de bastante angústia, ironia e urgência. Como foi o processo de transformar tudo isso dramaturgia e cena?
DB: O espetáculo é dividido em dois atos. No ato I que se chama O bem guardado é inspirado num conto de Grégorio Bacic, chamado Pequenas Distrações. Fábio é responsável por essa dramaturgia. O texto fala sobre a sensação de insegurança que estamos expostos: segurança pública, paranoias sociais e sobre tudo o medo da violência, que é um companheiro diário e que alimentamos mais e mais a partir dos dispositivos de segurança que nos são oferecidos. Queríamos aproximar o tema à nossa realidade e essa busca chegou dentro de nós. Daí, surgiram várias histórias nossas e dos nossos. Quem nunca levou um “baculejo”? Quem nunca foi constrangido por um rótulo digno de desconfiança? Quantas paranoias levaram pessoas pacatas a surtos de proporções trágicas. Vimos o quanto temos o medo dentro da gente o quanto ele é alimentado até virar monstro. E, assim, isso foi para o texto e para a cena.
No segundo ato, que se chama Rua Garopaba, 410, pelo qual eu sou o responsável e é fruto das minhas memórias. São histórias que me perturbavam, e eu não sabia se elas tinham acontecido mesmo ou era fruto de minha imaginação. Eu nasci no bairro do Pina, na comunidade do bode e lá vivenciei muitas pequenas tragédias e era disso que queria falar: eu via a face crua e o peso da realidade, muitas vezes absurda, acontecer na minha frente. E isso preencheu meu imaginário e essas histórias ficaram manchadas em mim e eu precisava expor. De certa forma, também me vingar dos algozes. Passei muito tempo registrando e escrevendo as histórias e, antes do projeto acontecer, eu já tinha esses textos guardados e poucas pessoas tinham lido, pois lá tem o risco de uma grande exposição. Mas sim, eu precisava falar sobre isso. A nossa cena é feita de coragem, a gente não podia se colocar como vitima. Então, escolhemos a ironia que permeia todo nosso trabalho e, em cena, os algozes estão se defendendo.
Os diálogos do espetáculo com outras linguagens foram pensados desde o início?
DB: Pensamos muito no intermídia, nas novas plataformas de comunicação, como forma de expandir nosso discurso da cena presencial. Pesquisamos companhias de teatro que experimentam hibridizar linguagens, procurando novas linhas de força, e achamos alguns grupos que nos inspiraram como o Phila 7 (SP), La fura del baus (Espanha), Teatro da Vertigem (SP), Teatro Oficina(SP), Espanca(MG), dentre outros que serviram de norte para a nossa experiência. Dentro das nossas pesquisas, chegamos ao teatro digital, em que alguns grupos pensam e objetivam a cena também para a internet, como uma plataforma protagonista – e que vem valorizando a consciência de presença consequente à experiência digital. A nossa primeira ideia era transmitir ao vivo pela web, via streaming, mas empacamos nas possibilidades técnicas e até agora não aconteceu. Durante a primeira temporada, chegamos aos filmes de extensão, que têm conexões com universo do espetáculo Acontece Enquanto Você Não Quer Ver. São histórias que complementam o universo da cena presencial e expandem nosso discurso também para web. Produzimos quatro filmes – Cabra Macho (assista AQUI), Pedras e Palavras (assista AQUI), Motoboy (assista AQUI) e Diretora (assista AQUI) –, que têm roteiro e direção de Ricardo Maciel (Três de Copas), que também assina a parte audiovisual do espetáculo.
Este espetáculo, em sua primeira temporada, foi realizado em uma casa no bairro da Boa Vista e possuía muitas conexões com o espaço. O que esperar da mudança para o Espaço Caramiolas?
DB: Quando saímos do apartamento do Três de Copas, onde moram Ricardo Maciel (Diretor de Audiovisual) e Kelen Link (Diretora de Arte), a gente tinha um novo desafio: encontrar novas conexões com o novo espaço. O nosso espetáculo é pensado para o ambiente de uma casa – é muito importante para a construção do nosso imaginário –, pois a casa e os seus cômodos são um personagem importante nessa construção. Mexemos muito no apartamento do Três de Copas e isso implicava numa mudança de rotina para quem mora lá. Quem realizou trabalhos em suas casas sabem o quanto é preciso desapegar de certas coisas, pois a função é outra. Isso aconteceu, Kelen e Ricardo foram super generosos com a gente, mas não dava para ficar por muito tempo. Então, precisávamos ir para outro espaço. No Caramiolas Lab, é um novo processo: o espaço tem suas características próprias e nós tivemos que adaptá-lo bastante. Sabemos que tem elementos na encenação que não dá para abrir concessão, mas encontramos uma nova possibilidade. Tiveram coisas que nós, enquanto criadores, tivemos de nos desapegar, para que outras mais importantes surgissem. E assim depois de uma ótima estreia, percebemos que é outro espetáculo, com o mesmo ideal e vigor, mas o espaço muda e estamos felizes com a surpresa da mudança.
O espetáculo coloca muito em xeque nossa relação com a segurança e a vigilância. Vocês acham que vivemos certa espetacularização do medo e um consumo baseado nas nossas inseguranças?
DB: Vivemos tempos de terror psicológico jorrando por todos os meios e veículos de comunicação, os de alta e baixa tecnologia. Isso não é uma novidade. As páginas policiais sempre foram visitadas diariamente por muitos, os programas policiais de rádio são ouvidos costumeiramente no café da manhã e, se ainda não bastasse, temos a TV regando de vermelho sangue o almoço. Tudo isso acompanhado como se fosse uma novela. Recebemos essas informações trágicas a todo instante, mesmo sem querer. Ouvimos opiniões e conclusivas e precipitadas pelos comunicantes, gerando outras opiniões ainda mais equivocadas, construindo um pensamento rotulado que provoca na população uma sensação dilatada da violência. Essas notícias nos chegam desprezando elementos tão ou mais importantes das ações de violência, como a economia, a religião, o social, e etc., mas não estamos falando de sujeitos ingênuos no comando dessas informações. Não que não sejam apresentados esses dados, a questão é como. Em sua maioria, as relações são feitas cheias de conotações psicologizantes e preconceituosas. O grande risco nisso é perder a noção de totalidade do problema. Não são apenas problemas e motivações pessoais: existe uma conjuntura em que os cidadãos estão inseridos. Tudo isso constrói a uma naturalização e termina virando condição. Nossa cena pretende apresentar de forma dialética tais fatos para no mínimo levantar a outro posicionamento sobre a questão.