Brinquedos e Coisas de criança | Entrevista – Cia. YinsPiração Poéticas Contemporâneas
Ouça essa notícia
|
Imagem – Luciano Sartoryi
Dentre os espetáculos vindos do Centro-Oeste brasileiro para a edição 2024 do Palco Giratório, o espetáculo O equilibrista (DF), da Cia. YinsPiração Poéticas Contemporâneas, com direção de Luciana Martuchelli e atuação de Filipe Lima, ganhou espaço no palco do Teatro Apolo.
O palco é uma ilha – onde o tempo não existe; as ruínas de um teatro incendiado – onde o tempo passou; a morada de Deus – onde o tempo está parado; o jardim do Imperador – onde o tempo voa. O espetáculo da Cia. YinsPiração Poéticas Contemporâneas teve temporadas em
Brasília e Rio de Janeiro e se apresentou nos festivais Cena Contemporânea e SOLOS FÉRTEIS.
Para saber um pouco mais sobre o processo de criação do espetáculo, o co-editor-chefe do Quarta Parede, João Guilherme de Paula, conversou com o ator Filipe Lima.
O espetáculo “O Equilibrista” aborda a transformação de um menino em homem e de um homem em artista. Como surgiu a ideia de explorar essas transições e quais foram as principais influências e referências para essa investigação temática?
O processo criativo começou quando, como exercício, a diretora Luciana Martuchelli pediu que cada um do nosso grupo de teatro fizesse o seguinte exercício: como se estivéssemos em um incêndio, tínhamos 5 minutos para pegar coisas em nossas casas (objetos, roupas etc.), colocar numa mala e levar para o próximo ensaio. Ao mostrar minha mala, havia apenas brinquedos e coisas de criança. A partir daí começamos a investigar o porquê da minha seleção. Essa pergunta pessoal se expandiu para uma pesquisa sobre crescer, a vida adulta, o amor, a morte, o tempo até culminar na pergunta que norteia o espetáculo: o que é ser homem?
Paralelo a isso, eu estava em formação como ator: estudava na universidade e fazia cursos livres de atuação. Neste momento, meu pai insistia para que eu fizesse concursos públicos para garantir um futuro estável. Não acreditava que a arte poderia ser um trabalho que trouxesse dinheiro. Ele dizia que teatro e cinema era para gente rica ou famosa. Então, o ofício de fazer teatro, de ser ator, de ser artista precisava também se defender. Eu ainda tinha dúvidas e, com essa referência em casa, também não acreditava que eu teria êxito. Assim, o processo de criação do espetáculo foi um rito de passagem nesses dois níveis: de menino em homem e de homem em artista.
A colaboração entre a diretora Luciana Martuchelli e o ator Filipe Lima é central no espetáculo. Como essa parceria artística contribui para a construção do personagem e para a dinâmica da narrativa?
Muitos dos elementos cênicos e textos vieram do ator, com seus conflitos pessoais e perguntas existenciais. Como ser do sexo masculino, trago perguntas e pontos de vista desse gênero e de uma geração de homens.
Porém a diretora Luciana Martuchelli desenvolveu a dramaturgia associando essas histórias pessoais a contos infantis, como “Peter Pan” (de J. M. Barrie) e “O Rouxinol e o Imperador Chinês” (de H. C. Andersen). Além disso, também integrou mitos (Orfeu e Eurídice e Arcanjos Cristãos) e ritos de passagem masculinos (tribais e urbanos). Dessa maneira, a obra saiu de um lugar unilateral (minha visão particular) e foi para um espaço arquetípico, que conversa em diferentes níveis com meninos e homens.
Então, a dramaturgia foi feita a partir da costura desses elementos. Como ator, no início, era muito difícil distinguir quem era cada personagem, em que momento do arco dramático cada um estava. Ainda é complicado. Mas percebo que é como se esses personagens também fossem uma só pessoa mostrando suas diferentes facetas. É como se o próprio público quisesse saber de algo e o personagem aparece para lhes contar.
O espetáculo aborda diferentes percepções do tempo no palco, como uma ilha onde o tempo não existe e as ruínas de um teatro onde o tempo passou. Quais foram os desafios ao explorar essas diferentes temporalidades na criação do espetáculo?
O maior desafio foi costurar todos esses ambientes. As cenas e imagens surgiram quase todas de uma vez, mas de maneira caótica, como uma grande explosão de possibilidades. As primeiras apresentações foram como uma aula-espetáculo: precisávamos explicar o que estávamos fazendo e quais eram as associações entre as cenas. Porém, na manhã que antecedia a estreia do espetáculo em um festival na Colômbia, em 2013, Luciana mudou a ordem das cenas, refez algumas conexões entre elas e fizemos uma estreia/ensaio geral para o público. Foi como se o espetáculo tivesse vida própria e nos falasse o que deveria ser feito. Então o próprio espetáculo nos mostrou como deveríamos “definir” essas temporalidades.
Acho que para a direção, a dificuldade estava em como tornar palpável para o público esse novelo de momentos, tempos e imagens diferentes. Foram várias experimentações de como amalgamar o caos criativo e contar uma história com isso. Para mim como ator, a dificuldade foi transitar entre esses mundos tendo consciência de que fazia isso. Me confundia e recebia duras críticas da direção.
Quando se está inconsciente de quem se é, podemos simplesmente repetir o padrão de comportamento de um grupo ou de um contexto e, assim, somos uns iguais aos outros, sem identidade. Se isso acontece em cena, pode ser fatal para o viço do espetáculo. Nossa função, como artistas performáticos, é sempre manter viva cada ação, cada palavra. Dessa maneira, personalizamos o texto e o que fazemos em cena, despertando a atenção do espectador e, por consequência, o pulso cardíaco do espetáculo.
“O Equilibrista” utiliza elementos como máscaras balinesas, cenografia detalhada e recursos audiovisuais. Como vocês acreditam que esses elementos contribuem para discutir a mobilidade e a reconfiguração dos espaços físicos e virtuais nas artes da cena?
É sempre importante ter em mente que o espectador contemporâneo é muito inteligente, já viu de tudo. Além do teatro, da música e do cinema, ele tem acesso à internet – que oferece criatividade infinita o tempo todo. Então é importante se perguntar, como artista, como surpreender o público, como agarrar sua atenção.
O recurso de multilinguagem midiática e estética favorece a manutenção do interesse do espectador no produto cultural, seja ele qual for. Por outro lado, não utilizar esse recurso multilinguístico no fazer artístico é quase um desperdício, visto que hoje a tecnologia está muito avançada e nos permite criar ambientes dentro do teatro que há 50 ou 40 anos atrás eram impossíveis. É como se uníssemos dois mundos: um antigo e um novo, criando uma terceira possibilidade
E como quaisquer outras atividades humanas e ofícios, o teatro está o tempo todo se reinventando. Porque os fazedores de teatro mudam, se reciclam e porque os tempos pedem isso. Se ele não se recicla, morre. Como tudo. Porém, no teatro, existe uma mágica que em nenhum outro meio artístico acontece: a experiência ancestral de um humano contar uma história para outro. Presencial ou virtualmente, olhando um no olho do outro, independentemente da linguagem usada, se o espaço teatral é tradicional ou não, acredito que essa troca humana sempre irá existir.
Se pudessem deixar uma mensagem ou provocar uma reflexão no público após assistirem “O Equilibrista”, qual seria? Que tipo de diálogo ou questionamento esperam despertar nas pessoas ao saírem do teatro?
O próprio espetáculo já faz muitas perguntas e deixa que cada espectador as responda internamente. Fazer uma reflexão final seria reduzir as infinitas possibilidades interpretativas e até induzir ao erro de percepção. Todas as interpretações finais estão corretas porque vêm do conteúdo de cada um.
Porém, se temos um objetivo com o espetáculo, diria que queremos, no mínimo, fazer o espectador olhar para dentro e descobrir sua própria jornada de protagonista existencial, sejam homens ou mulheres, meninos ou meninas; lembrá-los de como querem passar seu precioso tempo neste planeta. Em um mundo cada vez mais dividido e polarizado, acredito que “O Equilibrista” busca, de forma gentil e quase inocente, juntar as partes e vislumbrar um mundo novo com habilidade de expressão criativa e artística.
_______________________________
Criada por Luciana Martuchelli em 2002, a Cia. YinsPiração Poéticas Contemporâneas foca seu trabalho no treinamento técnico do ator e da atriz, mitologia e os estados de representação do masculino e feminino. Espetáculos: “Parthenon Místico”, “Mare Serenitatis”, “Como Nossos Pais”, “O Equilibrista”, “Fahrenheit – Cantos e Contos de João de Ferro”, “Sonhos de Shakespeare”, “The Big Heart & Eros”, “Ars – As Mil Folhas Peladas dos Poemas”, “Elizabeth Tudo Pode”, “Medea – Gaia em Fúria”, “A Página em Branco” entre outros.
Filipe Lima é ator, cantor, professor de canto e atuação, em 2008, ingressou no grupo de pesquisa teatral “Physis – Dramatic Bodystorm Trainning”, que explora a antropologia teatral na criação de uma técnica autoral para o ator compositor e uma dramaturgia corporal e vocal, idealizado e dirigido pela atriz e diretora Luciana Martuchelli. Com a Cia. YinsPiração Poéticas Contemporâneas atuou em mais 10 espetáculos. Produtor da residência artística A ARTE SECRETA DO ATOR e do SOLOS FÉRTEIS – Festival Internacional de Mulheres no Teatro.