Histórias que nossos corpos carregam | Entrevista – Na Bagagem Poesia
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Imagem – @barretinho.mov
No dia 13 de junho, às 13h, na Caixa Cultural Recife, as integrantes do espetáculo “Na Bagagem Poesia” compartilham com os participantes seus procedimentos de criação através da oficina Quanta Poesia Cabe na sua Bagagem?, que para além de técnicas, evoca um estado de sensibilidade que conduz o processo criativo. Para saber mais e se inscrever, acesse AQUI.
A vivência que provoca o resgate de memórias e acontecimentos importantes da vida de cada participante, através de uma linha do tempo que vai desde o nascimento até o momento presente. Com foco na estrada de vida e seus atravessamentos, propõe uma escrita criativa, também explicitada através de movimentos corporais, música e práticas sensoriais de contato com a cidade.
A oficina procura trazer um olhar poético da vida, a partir do cotidiano. Tudo isso com os estímulos das oficineiras, Camila Mendes, Kadydja Erlen e Lariar, atrizes do espetáculo, que aplicam elementos da vivência que tiveram na sala de ensaio, no processo de criação e construção do espetáculo, e sobretudo do olhar para as cidades de São José do Egito e Recife. Para saber um pouco mais sobre o processo de criação do espetáculo, a equipe conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
O que inspirou vocês a criarem o espetáculo “Na Bagagem Poesia” e como as músicas do grupo Em Canto E Poesia influenciaram a construção da dramaturgia?
A ideia surgiu a partir de um momento muito delicado vivido por uma das atrizes, Camila Mendes, que perdeu sua madrinha na pandemia da COVID-19, trazendo à ela um sentimento de amargura profundo. Com isso, nasce a necessidade de criar um caminho para sair desse lugar, e como uma boa artista, porque não a criação de um produto que a resgate desse estado de tristeza?
É nesse momento que as ideias vão se organizando e o Na Bagagem Poesia é parido. Inicialmente, a proposta era trazer poesia pelo viés teatral e abordar histórias e momentos bons das atrizes negras em cena. Estamos muito acostumadas a trazer pautas (extremamente pertinentes) sobre racismo, violência, superações… E na verdade, essa não é uma história única, também temos outros momentos, outras pautas, outros caminhos, e é isso que queríamos mostrar no palco, dar luz a esses acontecimentos muitas vezes marginalizados, pela urgência e necessidade de dar conta desses temas. Queríamos a partir da poesia, do simples, do sensível, tocar o público e aliviar essas dores do cotidiano, abraçando-os com uma música, com um cheiro, com uma fala.
Na decupagem do que seria inspiração, chega Kadydja Erlen, atriz que foi pensada pra estar no palco ressaltando o que foi dito acima, as histórias de luz do povo negro; para colaborar na contrução e na organização de todas as ideias. Mais pra frente, chega Lariar, completando o elenco e trazendo junto toda sua Bagagem artística para somar e formar esse trio que é pura poesia.
O Em Canto e Poesia entrou como inspiração por ser um grupo de grande admiração, por trazer poesia de uma forma muito bonita e por serem pessoas acessíveis, que sabíamos que poderíamos trocar e construir algo muito legal, além de propagarem a nossa cultura pernambucana. Separamos então algumas músicas como norte, para nos inspirarmos e escrever a dramaturgia, que é assinada por Camila e por Silvia Góes, diretora e encanadora do espetáculo.
Poderia nos contar mais sobre o processo de pesquisa realizado nas cidades de São José do Egito e Recife? Como essas investigações contribuíram para a linguagem e a narrativa do espetáculo?
O processo de pesquisa começou com uma viagem até SJE. A dinâmica se deu de maneira muito orgânica. Todos os dias, dividíamos nossos horários entre a sala de ensaio e a vivência na cidade. Se, pela manhã, visitávamos o Beco de Laura, no período da tarde estávamos na caixa cênica reagindo às provocações que aquele lugar nos trouxe. Já desse momento as primeiras cenas começaram a surgir. Nossos corpos ali, já eram a cidade do Recife indo ao encontro da Cultura de São José do Egito.
Nossa percepção de tempo parecia mudar ali no Sertão do Pajeú. A sensação era de ter mais tempo de qualidade, e apreciar os detalhes do mundo com um pouco mais de calma. Olhando o cotidiano como uma criança que acha tudo novidade. Ouvimos muitas histórias da Família Marinho e as canções de Em Canto e Poesia. Provamos da gastronomia local, conversamos com transeuntes que curiosamente sempre tinham um poeta na família, descobrimos que Poesia, em SJE é dada como matéria obrigatória nas escolas e nesse misto de atravessamentos encontramos a linguagem poética do nosso espetáculo.
Na volta para a cidade do Recife, o impacto destoante da atmosfera nos fisgou. E esse entrelaçamento com SJE continuou reverberando. Inevitável não lembrar do quintal de voinha, da comidinha gostosa na infância, do apelo fortíssimo a ancestralidade, ao amor e a nostálgica sensação de resgatar aqueles tempos que acendem a poesia interna. Assim se deu nossa linguagem acessível, lúdica, leve, dividida em motes. Mesclando as poesias do Em Canto e Poesia com as nossas próprias, criadas a partir da provocação daquela viagem. Assim nos acendemos e buscamos acender o público com esse espetáculo.
O espetáculo também traz vivências das atrizes Camila Mendes, Kadydja Erlen e Lariar, que contam suas histórias de saudade, amor e infância. Como foi o processo para acessar essas memórias e de alinhavá-las na dramaturgia?
Silvia Goes, diretora do Espetáculo em uma de suas tantas assertividades nos provocou “a gravidade que nos segura no chão, são as mãos de nossas ancestrais que nos sustentam”. Nós, atrizes deste espetáculo, com nosso corpo carregado de vivências na Cidade do Recife, ao entrar em contato com as histórias de ancestralidade do Sertão, nos sentimos provocadas a olhar para dentro e escutar nossas músicas internas também, e o que revelam sobre nossa trajetória de vida.
Percebemos em São José do Egito, principalmente nas canções do Em Canto e Poesia, o poder da oralidade. Poesias passadas de geração em geração através da palavra. E o dom de contar a própria história e passá-la adiante para futuras gerações. Com isso refletimos: Que histórias nossos corpos carregam? Que memórias, anseios, desejos, nossos corpos expressam o tempo inteiro? O que queremos dizer neste Espetáculo? Onde é o ponto de encontro entre os Poetas e as Poesias de SJE e nós, atrizes, poetas da Cidade do Recife? Foi assim que se deu o resgate de pontos importantes da nossa caminhada, que escolhemos com carinho para compor as cenas desta Peça Teatral.
Qual é a importância da relação entre corpo, literatura e música na proposta artística de “Na Bagagem Poesia”? De que maneira esses elementos se complementam no palco?
Ancorada em mais de uma década de estudos em práticas e trabalhos de autoconsciência corporal e também em sua experiência no palco e nas ruas como atriz e performer, a condução da artista Silvia Góes no desenvolvimento da obra é construída a partir de estímulos e provocações que oferecem diferentes perspectivas à pesquisa pessoal de cada atriz-pesquisadora, inspirados principalmente na prática e pensamento das diversas estruturas corporais e caminhos de movimentos (na relação com o público, os elementos cênicos e o espaço da pele para fora e da pele para dentro) unidos à composição textual como linguagem corporificada.
Na expansão do fazer artístico enquanto criação autônoma pelo reconhecimento, encontro e abertura de poéticas próprias, o corpo é também o universo simbólico da compositora/atriz e do compositor/ator e a palavra, sendo corpo junto, ganha novos sentidos, múltiplos, a partir da escrita vivencial de cada ser no mundo. Mover-se em composição é abrir espaços e reconhecê-los, busca de palavras, silêncios, gritos, cantos, passagens, esperas, movimentos e gestos, caça de imagens antigas redescobertas por dentro, lida no espaço, seja métrica restrita ou verso livre, pelo segredo de um ritmo próprio consciente de sua voz a cada aqui e agora. Abertura de novos acessos à escuta na composição da personagem/figura/persona.
São práticas corporais enraizadas nos estudos da improvisação, que acordam memórias, histórias, raízes, desnudando novas e antigas percepções, olhares, toques, (re)descobrindo peles e vestes que acompanham cada corpo vivo em movimento humano, do mundo ao dentro, da casa ao outro, dos muros às ruas de uma cidade, do um ao encontro. A condução da montagem caminha junto à expansão da consciência do como me percebo enquanto movimento e como descrevo as sensações que poeticamente se mostram, pele sobre peles, impregnada de afetos, memórias, histórias coletivas e singulares, dores e risos, convenções e transgressões, muros e potências, mortes e partos, permanências e partidas, saberes reunidos e desconhecimentos fartos.
É um convite à escuta do corpo a partir de experiências que exploram potências de cada atriz-compositora-pesquisadora em exercícios, provocações e métodos construídos por um bordado de práticas como Contato Improvisação, Movimento Autêntico, Jogos da Palhaçaria e Escrita Poética, entre outras, no reconhecimento da abertura da expressão, extraindo os elementos que podem compor a tecetura de uma dramaturgia singular compartilhada no desenvolvimento da corporeidade cênica como potência de atuação.
Nestes dois anos de trajetória do espetáculo, como foram as transformações pessoais e artísticas que vocês vivenciaram nesse período e como afetam a relação de vocês com o trabalho?
As mudanças foram muitas. O pessoal acaba interferindo diretamente no profissional, porque fazemos teatro, movemos poesia, lidamos diariamente com nossas vivências e muitas vezes a levamos pra o palco, transformando-as em material artístico. Nós mudamos, fomos atravessada por diversos acontecimentos que mudaram e aprimoraram nossa percepção, o espetáculo ganhou novas camadas e está a cada dia mais se aprofundando, sua pesquisa também continua sendo contínua e a cada mergulho descobrimos algo novo, elementos novos, passos novos que nos permitam expandir tudo que carregamos nessa Bagagem.
O espetáculo vem se maturando nas salas de ensaio mas principalmente na troca com o público. Em cada lugar que nos apresentamos, carregamos um sensação ímpar. Descobrimos também o poder que a obra tem com os adolescentes, que muitas vezes são carentes de espetáculos pensados para sua faixa etária. No meio do caminho a gente descobriu que eles também têm uma troca muito valiosa e se conectam muito intensamente. Acredito que essa foi uma das descobertas mais pontuais e surpreendentes; se deu quando a convite do Sesc Surubim, nos apresentamos no ginásio de uma escola que me foge a memória agora, mas que nos arrebatou com seu entusiasmo e com as trocas proporcionadas.
Seus professores fizeram de nossa apresentação uma atividade complementar, onde os alunos poderiam escrever e levar poesias pra recitar junto com a gente, foi um momento emocionante e muito singular, desde então buscamos formas viáveis de poder apresentar em escolas aqui em Recife e em outras cidades de Pernambuco. O nosso espetáculo é mutável, está sempre aberto (sem perder a força e a técnica) e caminhando com os nossos atravessamentos, acreditamos que isso nos fortalece e faz do nosso produto artístico algo verdadeiro, pulsante e sensível.