Não dá pra sair ileso quando se é negro | Entrevista – Cia. de Teatro Negro MACACADA
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Imagem – Camila Ferreira
Nos dias 28 e 29 de junho a Cia. de Teatro Negro MACACADA apresenta as performances NONADA e DE MIM, CORRO BAMBA no MAMAM. Nascida no audiovisual, a performance NONADA agora ganha o formato presencial e ao vivo, onde o público é guiado pelos dois corpos que não carregam nada além de, cada um, seu colar de madrepérola, por uma travessia de condicionamentos humanos, buscando refletir o primitivo no contemporâneo. A performance DE MIM, CORRO BAMBA, por sua vez, demarca a realidade num espaço-tempo incontrolável, provocando reflexões sobre a conquista de territórios saturados.
Para saber mais sobre os processo de criação em torno das performances, o diretor Luiz Apolinário conversou com o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade.
Vocês podem falar um pouco sobre como foi o encontro de vocês e a formação da Cia. de Teatro Negro MACACADA?
A Cia. de Teatro Negro MACACADA surge em 2022, como um selo teatral da produtora cultural TINHA QUE SER NEGRO – esta que surge em 2020 –, ambos projetos idealizados por Luiz Apolinário, a fim de viabilizar e impulsionar artistas, produtores e narrativas negras e indígenas.
Como a produtora surge para abraçar todas as linguagens artísticas – trabalhamos com cinema, música, poesia-literatura e teatro – sinto a necessidade de abrir um selo voltado especialmente ao teatro, que sempre foi o meu caminho na arte e foi colocado em segundo plano devido à demanda e à falta de oportunidades para se fazer teatro em Pernambuco. Claro que também é difícil fazer música, cinema, literatura, mas o Funcultura tem um edital voltado exclusivamente ao audiovisual enquanto teatro fica dentro do edital geral, por exemplo.
A partir, então, da ideia de uma Cia. de Teatro Negro, a primeira coisa que busquei, enquanto idealização, foi um nome, que demorou a vir, mas MACACADA se apresentou como uma ótima opção, quando ouvi uma amiga usando esse termo de forma irônica, seguindo a mesma ideia da expressão TQSN, aí tudo casou.
Então fui reunindo pessoas. Diana Paraiso, idealizadora da produtora GRAVE!, que é nossa produtora desde sempre e alguns dos artistas que estão conosco, alguns em um projeto, em outro não, mas seguem fazendo parte. Claro, no começo não tínhamos orçamento nenhum e todos esses artistas (uns dez) foram reunidos pela loucura que é fazer arte, mas logo depois conseguimos um pequeno incentivo vindo de editais e deu pra segurar.
A abordagem das temáticas em torno das memórias das negritudes e das violências históricas, sociais, físicas transparece nos trabalhos de vocês. Como essas temáticas foram surgindo nos encontros de vocês?
Não dá pra sair ileso quando se é negro. É recorrente, às vezes nós mesmos cansamos, mas tudo está na maneira de nos expressar. Os temas são inerentes e por mais que se tente fugir já estamos demarcados pelas violências, então quando nos reunimos, no início, lá em 2022, algumas coisas estavam intrinsecamente pré-definidas, de acordo com a bagagem (especialmente a bagagem racial) de cada um, o trabalho era fugir do lugar comum. É onde surge a performance NONADA.
De lá pra cá, com a voraz necessidade de cuspir racismo devidamente controlada – não adormecida –, a Cia. agora estuda o caminho inverso, se começamos a partir das nossas subjetividades, agora estamos com sede do outro, o que naturalmente deságua em nós mesmos.
Além disso, o coletivo vem trabalhando com o atravessamento de linguagens como teatro, dança, audiovisual etc.. Como foi o interesse nessas conexões dentro do grupo?
Isso se dá muito porque a MACACADA surge como um selo da TQSN, uma produtora que lida com as múltiplas linguagens artísticas. Mas é algo que buscamos fazer com cuidado. Teatro é teatro. Ao vivo, na hora.
Quando realizamos algum projeto audiovisual e colocamos o selo da Cia. é porque a proposta é expandir a discussão teatral, não estar fazendo teatro propriamente dito. É cinema, mas cinema que se vale de dramaturgia, por exemplo, ou mesmo em formatos mais documentais.
No segundo semestre, vamos lançar a segunda edição de um projeto chamado MACACADA EXPERIMENTAL, onde produzimos vídeo-performances que dialoguem com o fazer teatral. Na primeira edição, foram performances que nasceram para a experiência ao vivo e registramos em vídeo-performance.
Agora, estamos com uma edição intitulada “Solilóquios”, onde grandes solilóquios do teatro mundial, numa curadoria de Luís Reis, foram filmados no palco do Teatro de Santa Isabel. Então, é teatro? Não acredito. Mas uma forma de trabalhar com ele, de fazer ele chegar em mais pessoas e provocá-las ao fazer, de fato, teatral. Estamos nessas vias, com projetos em audiovisual, que discutam teatro, e também com projetos de performances e espetáculos para serem lançados.
A performance NONADA transparece uma experiência de relação entre as ancestralidades, as descobertas e os enfrentamentos entre os corpos a partir de uma certa itinerância entre espaços distintos. O que interessava a vocês discutir como ponto de partida e como foi o desenvolvimento da performance?
NONADA surge, também, como uma maneira de brincar com o nome da Cia. – MACACADA –, que pode nos remeter ao primitivo. Assumindo que somos primitivos, então, qual a questão? Quais condicionamentos nos são postos? A existência – e só ela bastaria, mas – a fé, o desejo, as fomes, etc. Essas tão faladas características nos escancaram enquanto sociedade primitiva.
Quando cheguei com a ideia, e eu já sabia quase tudo (digo, a dramaturgia, a história que queria contar e os elementos com quais queria brincar, essa coisa de um elemento ir dando noutro) – com exceção do final e do título, Falik e Pato (que protagonizaram o filme). NONADA surge como um curta-metragem em 2022 e, apenas em 2024, decidi trazer ela pro formato ao vivo, acreditando que esse tempo foi fundamental para circulação do filme e maturação de como trazer para o ao vivo.
Eles toparam no ato e foram propondo também. Passamos por um processo imersivo de ensaios, testando possibilidades, e também diversos títulos surgiram até eu chegasse em NONADA, uma referência à Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. No Ao Vivo, permanecendo com Falik e chegando Sérgio Black pra dividir cena, além do desafio de trabalhar os corpos para performance, porque uma coisa é fazer cinema e outra fazer teatro, outros desafios surgem, como encontrar espaços que possam receber NONADA.
Para a gente é fundamental manter a itinerância da performance e Recife e Região Metropolitana não possuem muitos lugares que tenham arquitetura que caiba a performance ou, quando cabem, não aceitam nudez no espaço, que é outra questão recorrente nas nossas tentativas de levar a performance.
E o gostoso nisso é que essa é uma das questões levantadas por NONADA, onde os performers vão desaguando em condicionamentos involuntários mas especialmente quando caem em roupas, escolhem continuar sem elas, buscando o vestir no lugar de real-primitividade. Então, é ver que realmente não estamos tão longe da primitividade proposta na performance.
Acaba que NONADA reverbera e tem chegado nas pessoas de maneiras diversas, a ponto de conseguirmos realizar o que seria uma sequência da performance, intitulada TRAVESSIA – ainda em referência à Grande Sertão –, que nasce nesse 2024 como um curta-metragem, e em 2025 vai para o Ao Vivo. Agora protagonizado por um único performer (Roby Nascimento), TRAVESSIA discute as questões já apresentadas em NONADA, agora sob a ótica da contemporaneidade.
Em DE MIM, CORRO BAMBA, por outro lado, transborda uma relação conflituosa com o território e a memória com uma cena centralizada em um único espaço amontoado de cadeiras. Como vocês chegaram a estas escolhas de abordagem?
A construção de DE MIM, CORRO BAMBA é engraçada, porque ela surge dentro de um processo criativo onde estávamos em sala de ensaio estudando textos do teatro contemporâneo e muitos (dos que estávamos utilizando) traziam essa questão territorial, o que implica diretamente em questões identitárias. Esse é o ponto de partida. Estávamos tratando disso.
Então, como recurso para ampliar nossos estudos, realizei uma bateria de exercícios com Roby e Ruibeni e, ao final, disse que na semana seguinte eles apresentariam uma proposta de performance que trouxesse os elementos provocados nos exercícios. E nasceu. Claro que para ir ao público alterações foram feitas e os estudos foram aprofundados, mas os elementos que vemos hoje também estavam nessa primeira proposta.
A cadeira é um instrumento de demarcação, buscamos isso na brincadeira infantil de rodar e sentar na cadeira (onde também há conflito), porque pra esse jogo funcionar já tem que começar com mais pessoas do que cadeiras (sempre sobra alguém!), até que vai saindo um por um, retirando também uma cadeira, e o mais rápido vence. Isso é território. Claro, é simplesmente uma brincadeira muito divertida, mas também nos provocou.
E assim foi, os outros elementos foram surgindo e a performance foi se impondo bastante também… não tínhamos como sair em itinerância, por exemplo, quem vai abandonar o espaço que tanto demarca? Tanto que a performance não termina, os performers poderiam ficar toda uma eternidade parados, demarcando o espaço que lhes coube, por isso pedimos a retirada do público, diferente de NONADA, onde os artistas saem de cena, em DE MIM, CORRO BAMBA as personagens jamais abandonariam seu pedaço de terra.