A volta no cão | Entrevista – Cia Bagagem Ilimitada
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Imagem – Chico Lima
Em 2024, a Cia Bagagem Ilimitada comemora nove anos de existência com muitos motivos para celebrar. Assistido por mais de 5 mil pessoas em seis temporadas no Rio de Janeiro, o premiado espetáculo Furdunço do Fiofó do Judas – Uma Opereta Popular Apimentada por Marinês volta em cartaz neste mês de junho em circulação pelos Teatros SESI, passando pelas unidades de CAXIAS (21), JACAREPAGUÁ (22), MACAÉ (27), CAMPOS (28) e ITAPERUNA (29).
Com dramaturgia do próprio grupo e direção de Jefferson Almeida, o musical foi indicado ao Prêmio de Humor – idealizado por Fábio Porchat – nas categorias de Melhor Peça, Melhor Texto e na categoria Especial pela introdução do repertório musical da cantora Marinês à dramaturgia, vencendo como Melhor Dramaturgia em 2020. Carregado de brasilidade, o enredo viaja até o interior do Nordeste para contar a história de quatro mulheres, Adelina, Antônia, Francisca e Gumercinda, prostitutas e donas de um bordel que recebem a visita de um forasteiro que vai abalar as estruturas do cabaré.
Para saber um pouco mais sobre os processos de criação do espetáculos, o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com PV Israel e Jacyara de Carvalho, intérpretes e responsáveis pela dramaturgia.
Como surgiu a ideia de criar “Furdunço do Fiofó do Judas – Uma Opereta Popular Apimentada por Marinês” e quais foram suas principais inspirações?
Todas as montagens da Cia. Bagagem Ilimitada respondem a uma vontade presente no que se refere ao que queremos falar, ao que nos atravessa. Somos uma companhia cuja linguagem se constrói pelo desenvolvimento de dramaturgias próprias oriundas de pesquisas teóricas e que se desdobram em pesquisa cênica. Este é o nosso tripé: a pesquisa, a escrita e a construção da cena. “Furdunço” foi criado respondendo ao nosso desejo de pesquisar (enquanto escrita e cena) o gênero musical. Nos interessava, então, que fosse algo genuinamente brasileiro, com referências da nossa cultura popular e trazendo muito humor.
Sem sombra de dúvida bebemos de Suassuna e também um pouco das novelas de realismo fantástico de Aguinaldo Silva, dos anos 1990. Um dia, sentados na sala e depois de tomarmos uma garrafa de vinho, fizemos um brainstorming do qual saímos com os três elementos principais: Deus, Diabo e prostitutas; figuras emblemáticas da cultura popular nordestina que criam um imaginário rico e potente. Dali mergulhamos em pesquisa teórica por cinco meses no Museu do Folclore, no Rio de Janeiro, garimpando referências em xilogravuras, cordéis, pesquisadores antigos e contemporâneos dos costumes do povo nordestino em relação a seu misticismo religioso.
Como foi o interesse em trazer mulheres protagonistas, especialmente prostitutas, para o centro da narrativa e quais os interesses de vocês nessas escolhas?
Dentro do universo estabelecido, pensemos assim: o amor romântico muitas vezes é usado para subjugar as mulheres. Nas nossas pesquisas, encontramos inúmeras referências a mulheres que davam a volta nessa realidade: mulheres que venciam o machismo, o patriarcado que eram, em geral, sintetizadas na máxima “mulher é bicho que se faz de doido pra enganar o Diabo”. Uma estratégia de sobrevivência que resolvemos colocar no centro da nossa ação dramática. Fomos ao extremo! Decidimos, então, que nossas protagonistas – que dariam “a volta no cão” – seriam prostitutas, que são marginalizadas e vulneráveis socialmente, conscientes da importância de fazer o que fazem e de serem o que e quem são.
Por oposição, o mesmo se daria com a figura do diabo: se ele é a personificação do homem sedutor que usa o sentimento para confundir e manipular, aqui, ele estará enredado pela trama. Colocando essas mulheres independentes, aguerridas, empresárias no centro da trama causa uma inversão de valores e joga o preconceito fora. São elas que tramam para “engabelar o capiroto”, unidas elas encontram formas de enfrenta-lo e se livrar do final trágico como a ida para o inferno. Nelas enxergamos potência, força, beleza, domínio dos seus sentimentos e muita garra.
Como foi seu encontro com as músicas de Marinês e o processo de introdução na dramaturgia do espetáculo?
O texto veio primeiro, escrito praticamente em duas semanas. Já as músicas foram um achado, pois inicialmente nossas referências eram mais românticas. Pesquisando, PV Israel chegou à música “Peba na Pimenta” e ficou encantado. Aquela música com seu duplo sentido, era perfeita pro universo e pra elaboração mesmo da história. Daí, ele mergulhou no universo de Marinês, intérprete da música, e descobriu tanto a história dessa cantora maravilhosa quanto as músicas que ela imortalizou. E essas, parecem que foram escritas para a peça (só que décadas antes). Cada música se tornou dramaturgia, pois colaborava com a trama de forma direta compondo ainda mais as relações entre as prostitutas e o Diabo. São 24 canções que abarcam essa teia sonora de forma sensual, sacana e deliciosamente brasileira.
Como foi o processo de investigação e caracterização desse universo do Nordeste brasileiro que vocês buscam representar?
Entre a conversa na sala, regada a vinho, e a criação do texto temos um intervalo de cinco meses. No Museu do Folclore mergulhamos fundo nas manifestações religiosas, culturais e sociais do povo nordestino com relação às três figuras míticas que nos interessavam: Deus, Diabo e prostituta. Ali encontramos um vasto material teórico, centenas de xilogravuras, esculturas, ditados populares, cordéis, causos narrados em áudio, registros de composições musicais antigas e recentes, um mar de possibilidades onde esses três pilares se manifestavam. Uma unanimidade se deu: só a puta era capaz de vencer o demo.
Ali entendemos a potência dessa feminilidade e decidimos reforçar ainda mais a presença dessas mulheres na trama do musical. Esse estofo, foi transportado para a dramaturgia. Já para a encenação, Jefferson Almeida, nordestino, trouxe toda a sua memória de infância, vivida no sertão paraibano, o ritmo e os meneios das suas conversas de família, o tipo de humor característico do nordeste e as cores, rendas, bordados que estão no seu universo de formação.
De que maneira a música, especialmente sob a direção de Deborah Cecília, ajuda a criar a atmosfera e a dinâmica do espetáculo?
Como falamos, as músicas foram se encaixando no texto como se tivessem sido criadas para essa dramaturgia. Marinês é uma cantora extraordinária, à frente do seu tempo, cantando música de duplo sentido num universo extremamente masculino. Então, nada mais coerente que a pasta musical estivesse à cargo de uma mulher. Convidamos, então, a cantora, compositora, arranjadora e multi-instrumentista Déborah Cecília pra somar ao projeto com todo seu talento, expertise e, claro, sua brejeirice baiana. Se Jefferson bordava sua formação em Teoria do Teatro ao afeto familiar, Déborah trançava as festas de família em torno da fogueira e sua formação em música clássica, na UFRJ; nos nossos arranjos, Marinês conversa com Bach e com a própria Déborah (que compôs um tema instrumental pra abertura da peça).
Déborah experimentou algumas liberdades, como, por exemplo, transformar o xote “Bate coração” em uma valsa, a serviço de imprimir uma atmosfera cômico-romântica à cena em que ela é cantada, ao mesmo tempo que buscou, na beleza da instrumentação e dos arranjos vocais, o diálogo com a opereta. Temos, então, as direções com dois nordestinos, Jefferson e Déborah, Paraíba e Bahia, Bom Sucesso e Piripá… Uma dupla que entrou em sintonia para trazer à montagem o cheiro, o gosto, o tempero da cultura popular de forma estética, dramática e sensorial.
SERVIÇO
Furdunço do Fiofó do Judas – Uma Opereta Popular Apimentada por Marinês
Temporada: 21/06 a 29/06 de 2024
Duração: 90 minutos
Classificação etária: 16 anos
Ingressos: R$30 inteira/R$15 meia-entrada
Venda online: site Sympla